quarta-feira, 30 de maio de 2012

Os canhões de Monte Prano

20. 
O QG de Zenóbio, numa sala do único hotel de Camaiore, estava cheia de oficiais, todos com os olhos brilhantes e grandes sorrisos. Estacionou um jipe diante do hotel. Levava escrito Liliana no para-choque. Abriram passagem para o general Mascarenhas que chegou silencioso como sempre. Apertou mãos, concordou com a cabeça para uma quantidade de frases proferidas ao mesmo tempo, olhou Zenóbio nos olhos e todos silenciaram. “Nenhuma baixa, general”, disse Zenóbio. Os oficiais bateram palmas. “Alguns feridos, 15, ao que parece, nenhum grave. E 23 prisioneiros.” Novas palmas. “Nossos soldados e oficiais estão de parabéns, general Zenóbio, e o senhor de modo especial. Tomar Camaiore dos alemães, nossa primeira missão, foi bem sucedida, graças a Deus, mas isto é só o princípio. Avançamos um passo, agora precisamos avançar outro” disse Mascarenhas. “O Comando Aliado já nos deu a próxima missão: vamos nos mover para cerrar contra a Linha Gótica, que inicia aqui perto, nos contrafortes dos Apeninos. Para avançar, precisamos dominar o Monte Prano e silenciar os canhões que lá estão instalados. Eles têm um posto de observação de artilharia muito competente.” “Esses canhões estão nos dando trabalho, comandante”, disse Zenóbio, “mal terminamos a ponte para Camaiore e ela já foi atingida por cinco projéteis, tiros de canhão disparados do Monte Prano.” “Eles dominam toda a região lá de cima, e os canhões tem longo alcance. Vai ser uma subida dura, general. O senhor precisa estudar esse assunto.” Zenóbio inflou o peito de orgulho. “Já estou pensando nisso, comandante” e bateu uma continência vistosa, como se fosse um cadete recém-formado. Nesse momento uma gritaria chamou a atenção de todos. Aproximaram-se da janela. Centenas de cidadãos de Camaiore tomava a rua fazendo alvoroço, gritando e gesticulando. Três mulheres eram empurradas e espancadas. Tinham as cabeças raspadas, vestiam sacos de estopa e estavam sem sapatos, pisando a rua de pedra. As cabeças raspadas mostravam cortes e sangravam. “São colaboracionistas”, disse o major Brayner, “já impedimos dois linchamentos desde ontem.” “Isso é degradante”, disse Mascarenhas, “vamos impedir esses fatos a todo custo, quero reforço no policiamento. Se alguém tem de ser punido que seja pelos tribunais.” Olharam durante alguns instantes a chegada de PMs que tiveram muita dificuldade para separar as mulheres de seus espancadores. Zenóbio se afastou da janela. Zenóbio tinha dito a Mascarenhas que já estava pensando num plano de ataque, mas na verdade não havia muito em que pensar. O Monte Prano tem 1,2 mil metros de íngremes escarpas rochosas, coberta de vegetação rala, onde ninguém pode se ocultar. A subida é praticamente de peito aberto, e isso é suicídio puro. A única possibilidade é uma manobra envolvente; no fim da manhã essa proposta já estava claro na Ordem do Dia despachada pelo Estado-Maior do Destacamento Zenóbio. “Inicialmente envolver Monte Prano, se possível capturar Monte Prano pelo Oeste; conquistando em seguida a Linha Monte Valimona-Monte Acuto; finalmente, conforme as informações, retificar a linha de frente, na altura de Monte Prano.” Zenóbio reuniu seus oficiais, mostrou o mapa no cavalete: “Vamos envolver o Monte Prano com três batalhões justapostos. Estamos praticamente sem reservas, mas vamos fazer o que esperam de nós, sem lamúrias. O 1º Batalhão faz o desbordamento pelo Oeste, o 3º Batalhão pelo centro, vai subir o Rondinaja, um local medonho, cheio de minas, e o 2º Batalhão vai pela direita, o Segundo vai se lançar sobre as vilas de Fabiano e Austiciana. Iniciamos a manobra amanhã às sete. E vamos nos encontrar todos lá em cima, se Deus quiser.” O Destacamento Zenóbio, que a rigor era todo o 6º RI, começou a manobra envolvente ao Monte Prano no início da manhã do dia 20 de setembro, com um dia mais frio do que o habitual para essa época do outono, e com nuvens cinzas cobrindo os contrafortes da cordilheira. Os milhares de brasileiros avançavam cuidadosamente, cobrindo uma frente de 12 quilômetros. Diante deles, o terreno a palmilhar era áspero, todo em aclive. Passaram por localidades de poucas casas, todas de pedra, onde os moradores temerosos abanavam para os soldados. A subida pouco a pouco ficava mais íngreme. Passaram pelas localidades de Vado e Lombrici. A uma da tarde chegaram em Casoli, casas de pedra construídas ao lado da estrada. Fizeram uma parada para o rancho. “Daqui pra frente não sobe nem jipe”, disse o sargento Nílson, sentando no chão, costas contra uma parede, acendendo um cigarro. Olhou ao redor: a cordilheira agora realmente começava. Onde ele estava, rodeado de seus soldados, podia ver as imensidões se sucedendo em gigantescos contrafortes de pedra. A única estrada era estreita, cheia de curvas, e na beira de um precipício que causava calafrios. “Este lugar é bom para o turismo”, disse Nilson, mas todos estavam muito cansados para conversar. Cada um carregava em torno de 12 quilos, contando armas, munição, cobertor e a ração K. Esta ração era uma caixa embalada em papelão, que continha uma pequena caixa com pasta de carne, um pacote de bolacha, uma latinha com queijo, dois chocolates, uma caixa de chicletes, uma caixa de fósforos e três cigarros, palitos, balas, band-aid e papel higiênico. Todos começaram a abrir suas rações K, todos mastigavam olhando as montanhas se desdobrando interminavelmente. “Quanto tempo vamos levar até lá em cima, sargento?”, perguntou Quevedo, sentado a seu lado. “Pelo que ouvi falar só chegamos lá em cima depois de vinte horas de marcha”. “Então, só amanhã”. “Só amanhã. Por quê? Tá com pressa?”. “Pressa não digo, mas tô curioso pra ver os tais canhões”. Nesse instante ouviram o som dos canhões disparando para os alvos lá embaixo na planície. O ruído era assustador e todos se olharam. Sorriram, escondendo os sentimentos, mas pálidos. “Onde vamos dormir, sargento?”, perguntou Pedrinho. “Tem um hotel de luxo especialmente para ti, logo ali.” Todos deram risada. Os canhões tornaram a atirar. O som de morte se espalhou sobre os soldados sentados ao longo da estrada à beira do abismo. “Calma que eu tô chegando!”, gritou Quevedo. Deram novas risadas. O capitão Ernani passou por eles, parou um pouco, contemplou a imensidão. Falou olhando para Nilson. “Sargento, vamos recomeçar a marcha.” O sargento se pôs de pé, os soldados foram todos ficando em pé, e em pouco a enorme fila estava a subir a estrada cheia de curvas, onde começava a açoitar o vento frio.

domingo, 20 de maio de 2012

Horror em Camaiore

19.

Então agora estavam dentro daquilo que Zenóbio tinha chamado de arapuca mortal. Cada passo que davam era como pisar em areia movediça. Mas o chão era de pedra, irregular, as botinas escorregavam e havia alguns buracos traiçoeiros, onde se podia enfiar o pé e quebrá-lo. “N-n-não t-t-tô v-ve-vendo nada”. “Ninguém tá vendo nada, gago”, resmungou Quevedo. “Já disse pra não me chamar de gago, seu...” . “Tá bom, desculpe, me esqueci”. “S-sse me chamar de gago ou-ou-outra vez, n-n-não é só a-a-alemão que vai morrer hoje”. “Epa, ficou valente o catarina”. “Calem a boca vocês dois”, rosnou o sargento Nilson. “Es-es-esse ga-ga- aúcho t-tá m-me chamando de ga-ga-gago, sargento”. Estavam rodeados pela escuridão. O sargento Nilson suspirou. Sabia que os alemães estavam ali, a poucos metros, atrás de alguma esquina, em uma janela, num beco, esperando por eles. Sabia que os alemães tinham ordem de atirar primeiro nos sargentos, por comandarem grupos de combate, depois atirar nos oficiais comandantes de pelotão. Ele era um alvo preferencial, portanto. Ele e o capitão Ernani. Sabia que estava com medo. Ele, sargento Nilson, para ser honesto consigo mesmo, tinha que admitir que estava com medo. Com muito medo. Nenhum daqueles homens que avançavam rente à parede, atrás dele, tinha entrado em combate. Nenhum deles tinha atirado em outro homem. Eram todos garotos, de 18 a 22 anos. Velhos ali, só ele mesmo e o capitão. E ele, sargento Nilson, com uma dorzinha súbita no fundo da alma, porque sentiu, no ar escuro, cheiro da cozinha de sua casa em Saco dos Limões, Florianópolis. Tinha 24 anos e um pressentimento de morte no peito quando a explosão da granada iluminou o escuro e mostrou os olhos aterrorizados dos soldados atrás dele. Sucedeu-se uma rajada de metralhadora, depois outra, e logo outra granada caiu no piso de pedra – ouviram nitidamente o baque e, em seguida, o ruído do artefato deslizando. Todos imobilizados contra a parede. Os tiros pararam. A granada não explodiu. A rua estreita e em curva conduzia para uma escuridão ainda mais negra. “Cuidado”, disse o capitão Ernani, “que ninguém pise na granada”. Por mais que olhassem, que forçassem os olhos, nada viam. “Capitão, a gente precisa mesmo avançar?” Era a voz de Pedrinho, um fio de voz se desfazendo em medo. O capitão entendeu nesse instante o que era ser capitão. Ele era pai, irmão mais velho, mãe e amigo daqueles rapazes que estavam na rua escura, espremidos contra a parede, paralisados de medo, olhando para a escuridão que escondia a morte. Minha voz precisa ser calma, precisa ser ponderada, precisa ser enérgica, precisa ser voz de capitão e precisa responder duma só vez tudo o que eles querem ouvir. “Garoto, precisamos avançar, sim, mas não com pressa, entendeu?” “Sim, senhor”. “Vamos passo a passo, na malandragem, que a gente chega lá”. “Sim, senhor”. “Fica atrás de mim e do sargento Nilson que a gente chega lá”. Lá aonde?, ressoou a voz dentro dele quando uma explosão iluminou o pedaço de rua, e eles viram, pela primeira vez, os alemães, ou o que poderia ser os alemães – vultos que atravessaram a rua de lado a lado, correndo e disparando as metralhadoras. O capitão Ernani deu seu primeiro tiro na guerra. Apertou o gatilho sem raiva nem pressa, mais pela necessidade de praticar uma ação, e viu um vulto caindo e escutou o palavrão de júbilo do sargento Nilson bem em seu ouvido. “Istepô! Pegou um, capitão!”. O sargento Nilson deu uma rajada de metralhadora e soltou seu brado favorito: “Avançar, macacada!”. E os brasileiros avançaram em tropel pela escuridão, tropeçando, se empurrando, estremecendo com as explosões e as rajadas de metralhadoras que tornavam a noite um pesadelo. Pedrinho Diax e o Alemão, afoitos, avançaram demais e perceberam que não sabiam mais onde estavam os companheiros. A voz grossa do esclarecedor do grupo de combate, o soldado Bandeira, negro como a asa da graúna, disse: “Aqui, moçada, tem um beco aqui, à direita!”, e eles entraram no beco onde tênue luz deslizava de uma janela entreaberta. E ali no beco travou-se uma súbita e brutal troca de tiros quando uma porta se abriu e dois alemães saíram atirando como loucos, derrubando o esclarecedor Bandeira, que deu um grito, e dispararam para a rua, encontraram mais brasileiros e houve uma ininterrupta e assustadora troca de disparos de metralhadora, e os dois alemães caíram como bonecos de trapo. Pedrinho ficou ali olhando os corpos, mas foi empurrado para a frente pelo Alemão, agora um jipe avançava pela rua e seus faróis mostravam as paredes de pedra que os sufocava e constringia naquele labirinto escuro, e então um artefato atingiu em cheio o jipe, causando uma explosão, os soldados saltaram com gritos de pavor e, em seguida, o jipe pegou fogo. Pedrinho assistia estarrecido, foi derrubado por um dos soldados que escapavam do jipe, quando nova explosão aumentou as chamas, e a cidade de Camaiore apareceu nítida aos seus olhos: paredes cinzas, ruas estreitas, janelas fechadas. Quevedo o tomou pelo braço e o levantou, e eles foram indo para a frente, se empurrando, ouvindo tiros ao longe, explosões ao longe, gritos ao longe e percebendo que uma luz tímida, de um novo dia, começava a revelar a cidade. Havia alguns corpos caídos no fim da rua. Um soldado brasileiro que eles não conheciam se arrastava no chão, a boca cheia de sangue. Pedrinho e o Alemão o recolheram e puxaram para trás de uma esquina. O soldado não falava nem gritava, tinha os olhos arregalados numa expressão de espanto. A luz aumentava sobre Camaiore, e revelava uma névoa cinzenta, volátil, subindo lentamente. O capitão Ernani apareceu de repente. “Ninguém parado, ninguém parado, em frente!”. Prosseguiram se atropelando, dobraram uma esquina, um tanque apareceu como um monstro irreal no centro de uma pequena praça. “É americano!”, gritou o sargento Nilson. Não tinham ideia como aquele tanque tinha entrado na cidade, devia haver ruas mais largas. Quevedo se abaixou sobre o chafariz no centro da pracinha e bebeu água das mãos em concha. “Tá amanhecendo”, disse. “Passou tanto tempo assim?”, perguntou o Alemão. Pedrinho deu um passo, saiu da esquina e olhou ao redor. A névoa subindo revelava a grande curva da rua de pedra, as duras casas cinzas com suas janelas fechadas. Havia um vasto silêncio de amanhecer. Alguém passou correndo ao longe. Pedrinho olhou para Atílio e para Quevedo, que examinava as correias do tanque com ar de entendido. Pedrinho sussurrou: “Acho que tomamos a cidade”.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Batismo de fogo na noite escura

18.

"A ponte que dá acesso à estrada para Camaiore está destruída, senhor”, disse o sargento Nilson, olhando para o capitão Ernani com insistência. “E essa agora”,pensou o capitão Ernani, “sempre tem uma novidade ruim, e é esse sargento que vem me trazer”. “Destruída? Como, destruída? Uma hora atrás não estava destruída”. “Foi bombardeada, senhor, não temos como passar o rio”. O capitão Ernani sabia que Camaiore era uma cidade antiga, muito antiga. Do tempo dos romanos. E no latim ancestral, queria dizer Campus Maior, como explicou o general Zenóbio. Lá estava ela, lá longe, do outro lado do rio. Era uma coisa maciça e cinzenta, toda de pedra. Casas de dois andares rigorosamente iguais. Ruas estreitas e labirínticas. “Recebemos ordens de tomar Camaiore dos alemães. E o senhor, capitão Ernani, vai comandar o ataque”, disse Zenóbio. “Eles ocupam a cidade há mais de um ano. Entrar lá é entrar numa arapuca mortal. Mas isso todos já sabemos”. O rosto insondável do capitão Ernani escondia a angústia de estar dividido entre dois sentimentos: a euforia de ser indicado para a primeira verdadeira missão da FEB e o pavor legítimo de avançar contra uma fortaleza totalmente blindada, onde se ocultavam membros da 148, a famosa divisão que combatera na Rússia, na África e agora estava na Itália para interceptar a invasão aliada. “A ponte está destruída?”. “Foi bombardeio, capitão”. “A nado é que não vamos atravessar”. Claro que não, pensou o sargento Nilson, olhando para o capitão Ernani. A correnteza era muito forte, a profundidade ignorada e ali perto tinha acabado de explodir um projetil lançado por um canhão. Súbita sucessão de explosões assustou os brasileiros, que se encolheram contra o chão, atrás dos tanques, caminhões e jipes, atrás de árvores e de pedras. A primeira missão difícil começava difícil. O capitão mascava alguma coisa, o sargento olhava para ele. Será que esse capitãozinho está com medo? “Liguem para o pelotão de Engenharia”, disse o capitão, “precisamos de botes.” O sargento Nilson ficou observando o capitão falar ao rádio. Parecia calmo e incisivo, mas terminou com certa petulância. “Não sei como vão conseguir, mas consigam!”. Quase uma hora depois, três caminhões chegaram com barcos de borracha. Eram 12 e cabiam 12 homens em cada barco. A travessia começou no meio da tarde, quando o outono começa a ficar velho, e a brisa, mais fria. Os pracinhas desembarcavam na outra margem e corriam para a estrada, postando-se agachados nos dois lados da via. Os bombardeios caíam mais ao longe. “Acho que não perceberam ainda nossa presença nesta posição”, murmurou o capitão Ernani para o tenente Molina, agarrados ao bote inflável, que sacudia nas águas da corredeira. Desembarcaram e correram para a  argem da estrada esburacada. Deste lado do rio, a cidade de pedra parecia maior, mais ameaçadora. “Não vamos ficar parados, vamos indo”, ordenou o capitão ao tenente. “Faça o pessoal se mexer”. “Mas não vamos ter a proteção dos tanques, capitão”. “Certo, vamos sem proteção, tenente”. À medida em que a tropa transpunha o rio, a fila na estrada ia se tornando cada vez maior. Agora subiam uma lomba acentuada,   cansaço começava, as pernas doíam. Das casas de pedra na margem da estrada, apareciam cabeças de velhos, curiosas, tensas. Ouviam cantos de galos, algum balido de ovelha. O sargento Nilson levantou a mão. “Alto!”. O capitão se aproximou. “O que foi?” .“Minas, capitão”. Foi necessário esperar um engenheiro de minas. Pacientemente ele foi localizando as minas, marcando com fitas uma passagem segura. A aproximação do objetivo continuou, mais lenta ainda. Chegaram ao alto da lomba, olharam para trás. A fila estava enorme e desprotegida. Mas o pior era o que estava diante deles. A descida da lomba era abrupta, longa e toda esburacada. Terminava aos pés da cidade. Pedro Diax, Atílio e o Alemão olharam para o fim do declive com um arrepio de pavor. O capitão, o tenente e o sargento, sem abrirem a boca, pensavam o mesmo: vai ser a coisa mais maluca que já fiz na vida, mas, de um jeito ou outro, vamos ter de descer essa lomba e ir bater na porta de Camaiore. Foi quando ouviram o vozeirão de Zenóbio. “Então, moçada, por que estão aí parados?” Antes que o capitão tentasse uma resposta, Zenóbio falou: “Jipes. Quero jipes aqui, agora, todos os que puderem trazer”. Era um espanto um general estar ali, na primeira linha, prestes a avançar contra o inimigo entrincheirado. Mas Zenóbio tinha aquele estilo que era só dele, fazendo as coisas com um sorriso e mascando o charuto. Os jipes foram chegando. Tinham atravessado o rio em barcaças que a Engenharia construiu com rapidez. “Já vai escurecer”, disse Zenóbio, “e não vamos descer essa lomba a pé.” No primeiro jipe, subiram Pedro, Atílio, Alemão, Quevedo, o esclarecedor do pelotão, o negro Bandeira, gaúcho de Caçapava do Sul, o sargento Nilson, o tenente Molina e o capitão Ernani. O motorista era o Cego Aderaldo. “A toda velocidade!”, berrou Zenóbio, sinalizando com o braço a partida. O jipe arrancou. Pedrinho sentiu aquele frio inevitável no estômago, quando se desce uma rampa em alta velocidade. Todos se agarravam e mordiam o grito. O capitão fechou os olhos. “Alea jacta est!”, dissera Zenóbio, que andava com fumos intelectuais nas últimas preleções. Aí iam eles, como se estivessem num parque de diversões, numa montanha russa, descendo desamparadamente, ao encontro da mutilação, da loucura ou da morte. O Cego Aderaldo se agarrava ao volante e rezava. Zenóbio comandou mais uma partida. “Agora, vai!”. O segundo jipe partiu, com 10 dentro dele. Depois, o terceiro, o quarto. Iam chegando e se amontoando uns sobre os outros nas primeiras ruas, rolavam, deitavam-se no chão, ficavam imóveis, examinando se estavam com os ossos inteiros. Um jipe perdeu a estrada bem próximo deles e virou, com os soldados saltando para todos os lados. “Vejam se há feridos”, gritou o capitão Ernani, “chamem os padioleiros.” O capitão Ernani ficou de pé e empunhou seu rifle. Camaiore estava completamente às escuras. Nem uma luz havia em nenhum lugar. “Vamos entrar na cidade, em fila, rente às paredes”. Constatou com susto que todos olhavam para ele. “Os alemães têm grupos de combate espalhados pelas ruas, nos becos, nas vielas. Tanques, metralhadoras, obuses. Estão nos esperando”. Não conteve a vontade de fazer uma bravata: “Vamos ver se esses alemães são tão bons como dizem”. E lançou um olhar aos homens sob seu comando. Era um grupamento misto composto da 2ª Companhia do 6º Regimento de Infantaria, de um pelotão de Engenharia e de um grupo de tanques e carros de combate americanos que finalmente chegaram. O capitão pensou por um segundo de que adiantavam os tanques se eles não cabiam nas vielas estreitas. Sacudiu a cabeça. Aquilo era assunto da Infantaria. Entrar nessa cidade é assunto da Infantaria. Então, é com a gente mesmo. O capitão Ernani Ayrosa, 29 anos, disse, bem alto: “Vamos, macacada”. E deu o primeiro passo para entrar na cidade coberta pela escuridão da noite.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A porta do inferno está aberta




17.

A ordem era sucinta, mas Brayner teve que ler duas vezes para entender com clareza seu conteúdo: “Substituir os elementos do II/370 Regimento de Infantaria, às 19 horas do dia 15 de setembro, na região Vecchiano-Massacinccali-Filetole. Manter contato com o inimigo e sondar seu dispositivo por meio de vigorosa ação de patrulha. Caso o inimigo se retire, persegui-lo mediante ordem deste IV Corpo. Manter contato com a 1ª Divisão Blindada que opera a Leste”. Finalmente. Depois de dois meses de instrução e exercícios, chegara a hora do batismo. Brayner reuniu o Estado-Maior e solicitou a presença do comandante-em-chefe general Mascarenhas de Moraes. A coisa tinha que ter um viés de solenidade. Iam entrar em ação. Mascarenhas chegou e deu uma notícia confortadora: “O segundo escalão já está no mar, viajando para cá”. Reuniram-se ao redor da mesa, Zenóbio abriu o mapa. Zenóbio tinha gotas de suor na testa. Zenóbio ia comandar. Aquilo era missão da Infantaria. “O terreno é todo escarpado, o caminho minado e o inimigo não se apresenta, estará o tempo todo à espreita”, disse Zenóbio. “Que ninguém se engane, vai ser duro.” “Quem está lá é a 148. É uma Divisão famosa, com veteranos da Rússia. Eles não vão se expor”, disse o coronel Segadas Viana, comandante do 6º Regimento de Infantaria, destacado para a missão, “só vão atacar quando for favorável a eles, o que significa que vamos avançar por um corredor de morte.” Zenóbio não gostou do comentário: “É a guerra, coronel”. “Desculpe, mas não estou reclamando, general, só constatando.” “Quando substituirmos os americanos vamos ficar responsáveis por uma frente de nove quilômetros”, disse Brayner. “Se ficarmos só na defensiva já é muito, mas na ofensiva é simplesmente absurdo”, disse Segadas Viana, olhando para Zenóbio, que sustentou o olhar. “Sei disso muito bem, mas essa é a nossa primeira missão nesta guerra, coronel Viana, e vamos começar imediatamente, sem queixas nem indecisões. Vamos atacar em três linhas. Olhem este mapa: o Primeiro Batalhão do 6º inicia a marcha para tomada de contato com o inimigo na direção de Filetole-Monte Ghilardona, dois vilarejos, com poucas casas de pedra. É  uma subida íngreme e aí poderemos ter surpresas; o Segundo segue pela direita, na direção de Bozzano-Vecoli, deve haver resistência moderada, segundo os partiggiani; e o Terceiro sai da reserva para avançar sobre Le Corti-Bozzano. A população desses povoados pode ser hostil, não sabe quem nós somos, tem medo de todos, dos alemães, dos americanos, dos partiggiani, e agora vêm esses estranhos com cara de índios. Eles devem estar aterrorizados, fartos dessa guerra que não compreendem. Vamos com prudência, vasculhando o terreno, que é todo minado, ainda segundo informação dos partiggiani. Quem serão seus comandantes de batalhão, coronel Segadas?” Zenóbio sabia perfeitamente quem eram os comandantes dos batalhões, mas estava um tanto solene e gostaria de ouvir isso da boca do oficial encarregado da missão. “Os majores Gross, Silvino Nóbrega e Abílio Pontes.” “Muito bem, que eles saibam que essa estrada que vamos percorrer é a nossa entrada na História pela porta da frente, meu coronel. Ponha seus homens em forma. Vamos marchar de madrugada.” De madrugada, a porta da frente da História estava tomada por uma cerração forte que a encobria totalmente. Nada era visível da estrada. Os montes dourados de Toscana, que os rodeavam, eram apenas vultos. O major Abílio pensava com certa ironia nas palavras do chefe da infantaria. Todos sabiam que Zenóbio era fanfarrão espalhafatoso, mas essa sua veia poética não era conhecida. O major Abílio era homem de leituras, e os oficiais mais velhos estavam de olho nele porque dissertava com certo entusiasmo sobre as teorias de Marx, esse alemão judeu. O major  Abílio tinha 30 anos e nenhuma experiência de combate. O 6º RI avançava encolhido dentro dos caminhões e amontoado nos jipes. Era uma longa coluna de veículos, avançando sem pressa na estrada cheia de curvas. Pedrinho, Atílio, o Alemão e Quevedo estavam encostados uns nos outros, apertando seus fuzis numerados. Cada um já sabia o número do seu fuzil de cor, e a ordem era não largá-lo, não perdê-lo, não emprestá-lo porque no último dia da guerra teriam de devolvê-lo mediante recibo ao órgão provedor. E enquanto sacudiam na carroceria, e vagamente sentiam enjoo devido a tantas curvas na estrada, enquanto tinham na memória o espanto das coxas das mulheres nos becos escuros de Nápoles, ouviram a primeira explosão. Pedrinho fechou os olhos e num relance se viu a bordo do Baependy, sacudido pela explosão. Mas o caminhão continuava intacto. A explosão foi longe. Abriu os olhos e seus companheiros estavam um tanto pálidos, naturalmente angustiados, escutando. Nova explosão, mais forte. “Começou a guerra pra nós”, murmurou o Alemão. “Já estava demorando”, disse Quevedo. “T-t-tá ch-chechegando a hora.” O caminhão parou. A porta de lona se abriu, e o sargento Nilson enfiou a cara para dentro do caminhão. “Vamos desembarcar, macacada, e ir se postando em fila de um ao longo da estrada. Temos uma bela subida a nossa espera e vamos fazer isso com nossos belos sorrisos de dentes cariados.” O sargento Nilson era um tanto barroco ao falar, mas isso – e o humor misturado de ironia – era legado açoriano dos legítimos manezinhos da Ilha de Santa Catarina. Deu uma olhada nos dois garotos de Imbituba. “Quero ver vocês fazendo bonito.” “Sim, senhor, sargento”, disse Pedrinho. “Quero ver vocês indo pra frente, sempre pra frente e nada mais do que pra frente, entendido?” “Sim, senhor, sargento.” Outra explosão sacudiu as paredes da montanha, os pracinhas se encolheram, se olharam, mas o gago Atílio deu um empurrão em Pedrinho, e começaram a se apressar, a pular para fora do caminhão, atentos e ansiosos. De todos os caminhões e jipes os homens começaram a saltar. Iam entrando em fila nos dois lados da estrada. Os capitães comandavam aos gritos para começar a marcha, os tenentes corriam de um lado para o outro, os sargentos berravam e empurravam, Pedrinho olhou para sua frente, para a névoa que se desmanchava e permitia ver entre raios de luz a longa coluna de homens a pé, fuzis nas mãos, curvados, silenciosamente subindo a estrada estreita e cheia de curvas.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Numa terra estranha

16.

Zoé, Dulce e Virgínia voaram do Rio para Natal, de onde seguiriam imediatamente para Dacar. Mas após uma série de confabulações misteriosas entre os oficiais da FAB e os comandantes do Corpo de Enfermagem, acompanhadas por elas com ouvidos atentos, souberam que deveriam ficar em Natal, “talvez por alguns dias”. Enquanto arrastavam suas mochilas para os alojamentos no outro extremo da pista ouviram que um avião tinha sido abatido nesse mesmo dia, na rota que tomariam para Dacar. Somente decolaram três dias depois e pousaram após 12 horas de voo numa faixa estreita de terra que tinha o nome de Ilha de Ascensão. Abastecido o aeroplano, levantou para Acra, capital da Costa do Ouro. Pernoitaram em Dacar, mas após novas confabulações misteriosas foram para Atar, abasteceram, rumaram para Robert Field, depois Marrakesh, onde foram atropeladas por um camelo na saída do aeroporto. As 25 enfermeiras chegaram a Casablanca num final de tarde avermelhado, onde descansaram por três dias, em meio ao calor infernal, o pó da rua onde ficava o hotel e o alarido dos vendedores. Finalmente levantaram voo mais uma vez e aterrissaram em Alger. Era 12 de julho, tinham saído do Rio na madrugada do dia 2 e todas estavam confusas e atemorizadas. Elza, a mais despachada e influente do Corpo de Enfermeiras, disse “Vamos para Nápoles. O 1º Escalão já está lá”. Era verdade. O 1º Escalão já estava lá, mais exatamente nos arredores da cidade, em Agnano, acampado no barro, sem barracas, sem cozinha, sem mantas para se cobrir. Era pleno verão, mas a noite parecia de gelo. Estavam acampados na cratera do vulcão Astronia, abaixo do nível do mar, o que aumentava a sensação de frio. A maioria dos 5.800 homens não sabia desses detalhes. Estenderam-se no chão, cobriram-se com seus casacos. Foi oferecido aos generais Mascarenhas de Moraes e Zenóbio da Costa hospedagem no Parco Hotel de Nápoles, mas eles recusaram terminantemente. Foram montadas duas barracas onde passaram a noite com a tropa. Seria uma longa noite, ouviam-se tosses, gemidos, algum palavrão em voz contida. Os homens sonhavam com a devastação do porto de Nápoles, com os estranhos balões presos por cordas ao longo de todo o litoral, a fim de atemorizar voos rasantes de aviões inimigos. Súbito, irrompeu um alarido agudo e iniciou um corre-corre no lado direito do acampamento. Um oficial se aproximou da barraca de Mascarenhas. “Tentativa de suicídio”, disse o oficial, “já foi dominado.” “Quem era?” O oficial olhou para a tropa deitada na escuridão do chão enlameado. “O tenente-médico Soares Silva, ele teve um surto, algo assim, apanhou o revólver e tentou obrigar seu ordenança a atirar nele. Já está tudo sob controle, comandante.” “Muito bem, obrigado.” O oficial fez continência e se afastou. Mascarenhas procurou Zenóbio, ambos se olharam em silêncio. “Começamos mal, companheiro” disse Zenóbio. “Não vou subestimar este episódio” respondeu Mascarenhas, “mas já esperava algo parecido. A viagem foi muito tensa, estamos parecendo um bando de mendigos, vamos ter muito trabalho, meu amigo.” Zenóbio bocejou, apanhou um charuto. “Um médico, hein? Quem diria.” “Nossos tenentes vêm da turma de aspirantes a oficiais que deixou Agulhas Negras três meses atrás, Zenóbio, às vésperas de partir. Foram promovidos a 2º-tenentes no dia do embarque. Tudo era festa de estudantes. A maioria desses oficiais nunca viu um corpo de tropa, nunca entrou numa caserna.”  E agora estão aqui.” “Numa terra estranha, numa noite escura, no chão enlameado. Vamos ter muito trabalho, meu amigo.” Recolheram-se a suas barracas, mas foi difícil dormir. A frase “A viagem foi muito tensa” ficou repercutindo em seus ouvidos. Mascarenhas lembrava-se de que estava na sala de oficiais do General Mann ouvindo o noticiário da BBC quando o locutor anunciou: “Aproxima-se de Nápoles, navegando pelo Mediterrâneo, o comboio conduzindo o primeiro contingente de tropas brasileiras para participar da luta no Teatro de Operações europeu.” Era absurdo, mas verdadeiro. A operação mais secreta e sigilosa do exército brasileiro era anunciada aos quatro ventos pelos poderosos microfones da BBC. Um coronel americano esbravejou: “Ingleses filhos da mãe! Nos entregaram aos alemães!” E esse possível exagero do coronel logo se tornou realidade. O oficial de ligação do navio estendeu um telegrama para o major Brayner. “Um forte esquadrão de bombardeiros inimigos, oriundo do norte da Itália, devidamente protegido, voa na direção do comboio, que poderá ser atingido dentro de uma hora, caso não seja interceptado. Todos os meios de interceptação, das bases do norte da África, Sicília, Nápoles e Sardenha, foram acionados e deverão dar a cobertura ao comboio. Convém estar preparado para a luta antiaérea.” Mascarenhas lembra o olhar atento dos americanos para a reação dos brasileiros. Ele e Brayner ficaram impassíveis, mas a notícia se espalhou. Houve um calafrio na tropa amontoada nos porões, mas o ataque não aconteceu. Agora na sua barraca, sente o chão duro, dores no corpo. Pudera. Está com 61 anos, não é idade de ir para a guerra. No dia anterior sofrera uma humilhação inesperada, que ainda remoía.  Já passara uma semana do desembarque, continuavam amontoados no porto, via com apreensão os homens se misturando às prostitutas e aos proxenetas, às crianças famintas, às mulheres desesperadas. E nada de o comando americano lhes fornecer as armas do acordo firmado. Protelavam, davam desculpas, Mascarenhas olhava os soldados vagando sem objetivo, tomou uma decisão, chamou Brayner. “Major, vamos falar com o órgão provedor. Temos um acordo, eles nos devem.” Rumaram de jipe para o antigo e imponente Palácio Real, no bairro de Caserta, onde funcionava a base de suprimento. Esperaram mais de uma hora numa saleta barroca, olhando o quadro a óleo de um antigo e afetado monarca italiano. Enfim apareceu o general Harris, comandante do órgão. Denotava pressa, e brandiu no ar com desprezo a lista de petições enviada a ele. “Afinal de contas, o que vocês trouxeram para lutar?” O major tradutor se esforçou para amenizar a atitude do general americano, chegando a lembrar que Mascarenhas organizara a defesa do nordeste brasileiro para a América. “Para a América, não,” disse Mascarenhas, “para o mundo ameaçado pelo nazismo, meu senhor. E essa petição é produto do acordo firmado em Washington pelos nossos governos. Apenas isso.” Mas o clima da reunião estava definitivamente abalado, embora o general Harris tenha moderado seu tom. Mascarenhas e Brayner voltaram em silêncio no jipe, olhando a paisagem ferida, as ruínas e as pessoas vagando sem rumo.

domingo, 22 de abril de 2012

Alguns homens a mais

15.

No segundo dia da viagem, Atílio descobriu a função das duplas de PM americanos musculosos que ficavam de prontidão na porta do dormitório. “S-s-se o na-navio f-for t-t-totorpedeado, eles nos fecham aqui dentro.” Atílio era o melhor ouvido do batalhão. Ficava sentado quieto num canto, olho parado, e nem o mais leve sussurro a 10 metros de distância passava despercebido. Porque assim como sua fala era truncada, sua inteligência era rápida e musculosa, capaz de acionar as mais diversas informações e organizá-las com precisão de matemático. “N-no-nosso alojamento fica cinco metros abaixo da li-li-linha d’água.” “Os torpedos batem direto onde nós estamos”, intrometeu-se uma voz na conversa, “abrem um rombo do tamanho de uma porteira e o compartimento se enche de água. Esta banheira vai ao fundo em cinco minutos.” Atílio, Pedrinho e o Alemão olharam um tanto surpresos para o praça que se intrometera na conversa deles, com forte sotaque gaúcho. “É por isso”, continuou o praça, “que botaram aqueles dois postes de vigia, para fechar a porta imediatamente.” “Mas, por quê?”, perguntou Pedrinho alarmado. “Porque, índio velho, se eles fecham as portas, a água não passa para o resto do navio, e eles ganham tempo pra dar o fora.” “E nós?” “Nós? Nós morremos afogados.” Pedrinho puxou a coberta para o queixo. Escutou o navio. Agora estava silencioso, flutuando no meio do oceano. Lembrava da primeira noite. Depois que Getúlio foi embora cercado por uma corte de homens de terno e de farda que distribuía sorrisos e afagos, depois que todos estavam instalados em seus catres, depois que as luzes tinham se apagado e uma sombra melancólica descia sobre os 5 mil homens inquietos e cansados, a voz do capitão, em inglês, invadiu o navio através dos altofalantes, seguida por uma voz em português, rápida, traduzindo. “Soldados brasileiros! Sois a força sul-americana que primeiro deixou seu continente para combater em ultramar, com destino ao teatro de guerra europeu, constituindo um novo exército de homens livres, que se vêm juntar a tantos outros na luta pela liberdade dos povos oprimidos...” Atílio ouviu perfeitamente o praça de sotaque gaúcho dar uma risadinha: “Homens livres? Esse gringo tá brincando com a gente”. Atílio se mexeu inquieto: “P-por que? Vovo- você não é um homem livre?”. O praça sorriu no escuro. Tinha oponente. “Boa pergunta, gago.” “N-nnão me chama de gago que eu não gosto.” “Tá bueno, desculpe, não te chamo mais de gago. Como é teu nome?” “A-a-atílio.” “Atílio, certo. O meu é Quevedo. Não existem homens livres.” “O quê?” “Não existem homens livres.” “... Quem poderá avaliar da suprema importância que podereis representar no campo de batalha?”, continuava o comandante. E sua voz rouca encerrou a mensagem, flutuando nas sombras: “...não será a primeira vez na História que a adição de alguns homens a mais, num determinado setor da luta, fizesse pender definitivamente para ele o fiel da balança e os louros da vitória”. “P-p por que você dd-diz isso?” “Gato escaldado tem medo de água fria. Tu vem de onde, che?” “Imbituba.” “Nunca ouvi falar. Tu sabe de onde eu venho?” “N-n-não sou adivinho.” “De Uruguaiana. Mas não é pra me exibir.” Alemão Wolper, no catre em cima, deu um suspiro acintoso e murmurou em tom suficiente para ouvirem ao redor. “Agora sim, vamos ganhar a guerra.” Quevedo deu uma risadinha: “De pleno acordo, companheiro”. Finalmente a bruma foi levantando, e Nápoles começou a aparecer. O US General Mann estava cercado de destroços retorcidos e queimados de navios, dezenas e dezenas de gigantescas embarcações transformadas em monstros disformes, meio submersos na água oleosa, fruto dos ataques da força aérea aliada na batalha pela posse do porto. Os pracinhas foram descendo a rampa, sacos às costas, olhando com perplexidade e medo para aquelas ruínas. Algo espantoso, algo enorme e terrível tinha acontecido ali. No porto, pequena multidão silenciosa e em farrapos os examinava com desconfiança descendo a rampa. Aqueles soldados não carregavam armamento, a cor de suas fardas era verde, na mesma tonalidade usada pelo exército alemão, e não tardou para que fossem confundidos com prisioneiros alemães. A hostilidade começou com gritos de longe, tedeschi!, em seguida alguns mais valentes se aproximaram e gritavam rente a eles. Eram em sua maioria sujos, barba por fazer, olhos no fundo e com expressões de nojo, rancor e fome, que assustou e espantou a fila de homens morenos, saco às costas, se equilibrando no estreito caminho de tábuas sobre a lama. Um deles cuspiu num pracinha. Depois outro. E outro. Uma pedrada voou de longe, batendo numa cabeça, que começou a sangrar. O sangue despertou a ira da pequena multidão que começou a despejar pedras com fúria cada vez maior sobre os pracinhas estupefatos. A intervenção dos PM americanos foi rápida e brutal, avançando contra os esfarrapados e os afastando com golpes de coronha. Um oficial americano, falando italiano perfeitamente, gritava bem alto que os recém-chegados eram “aliados, aliados do Brasil, que vieram lutar pela Itália contra Hitler!”. Quando a compreensão se fez, os apupos mudaram em aplausos, em seguida se ouviam gritos de “bravo, bravissimo brasiliani!”. Quando, horas depois, sentado na calçada junto com os outros soldados, em longa fila, costas apoiadas na parede destruída do armazém, Pedrinho ainda relembrava  o episódio e pensava como enquadrá-lo em seu entendimento, viu, na sua frente, a poucos metros, várias mulheres com crianças de colo, olhando para eles. Olhavam para eles buscando captar suas atenções até sentirem que eram vistas, e então começaram a mastigar. Nada tinham para colocar na boca, porém mastigavam e mastigavam, caladas, olhando fixo para os soldados. Aquilo foi  surpreendente, e eles a princípio acharam graça. Mas as mulheres os olhavam nos olhos e moviam as bocas, salivando, num ritual silencioso. Pedrinho se levantou e se afastou para trás do armazém, nauseado. Uma mulher o seguiu, colocou-se na frente dele olhando-o nos olhos, um olhar duro e sem tradução, a boca se movendo. Pedrinho afastou-se, a mulher o seguiu. Ele dava meia-volta, ela persistia, ela escorregou, quase caiu, equilibrando a criança em seus braços, Pedrinho afastou-se para o meio da lama e a mulher o seguiu, escorregando, buscando seu olhar, mastigando, mastigando, mastigando sem parar.



sábado, 14 de abril de 2012

Embarque para o desconhecido

DÉCIMO QUARTO CAPÍTULO


O major Brayner olhou demoradamente a rua silenciosa lá embaixo, pela janela do seu quarto. Só estavam ele e a mulher na casa, os empregados foram dispensados nesse dia. Formavam um casal sem filhos, e talvez por isso conviviam numa espécie de redoma de melancolia, ou talvez fosseapenas o caráter introspectivo do major. O carro chegou. Consultou o relógio, 1h30min. Apanhou o quepe, colocou-o na cabeça. Tivera que ser muito carinhoso para que o choro dela fosse silencioso e digno. Trocaram um beijo rápido, como se fosse uma despedida de poucas horas. “Vamos precisar de muita coragem, meu amor, nós dois.” Saiu e fechou a porta. O ordenança o esperava no carro, trocaram continência mas não falaram. O carro avançou pelas ruas desertas em direção ao porto. Tinha sido uma semana intensa. As notícias chegavam a toda hora, os boatos circulavam esencontrados, alguns afirmavam que o Dia D tinha sido acionado, que a invasão da Europa pelos Aliados tinha começado, que Hitler tinha sido morto num atentado. Era preciso muito sangue frio, era preciso examinar com calma cada uma dessas histórias, porque agora o que se aproximava realmente de sua vida era a partida para a guerra, e ele, Brayner, como chefe do Estado Maior da FEB, fora o oficial designado para a missão de coordenar o embarque do 1º Escalão. Quando o carro se aproximou do portão do cais, tornou a olhar o relógio. 2 horas emponto. Estava na hora de colocar os soldados no trem. E era o que acontecia, longe dali, na Vila Militar. “Acorda, vagabundo.” A mão pesada do sargento Onda quase derruba Pedro Diax do seu beliche. Pedrinho esfrega os olhos no susto do despertar e então se dá conta: “É hoje.” Sentou na cama e sentiu todo o corpo estremecer. “Puxa vida.” Não precisavam dizer nada, ele sabia. “É hoje. Não adianta choro nem reza.” 29 de junho, madrugada, escuridão. Sob o comando dogeneral Zenóbio da Costa, espremidos nos vagões da Central do Brasil, as aberturas completamente lacradas, sete composições sucessivas seguem da Estação de Deodoro, na Vila Militar, para o cais do porto. Na quarta delas, apertados no segundo banco da direita, Pedro, Atílio e João Wogler bocejam. “Vamos embarcar”, disse o alemão, “estamos indo para a guerra”. O rancho tinha sido rápido, mal enfiaram na boca uma bolacha e engoliram o café preto. Estamos indo para a guerra, pensou Atílio, e percebeu que estava com dores no corpo, com sono, com fome, vontade de chorar. Vou para a guerra, pensou, sou gago, podia ser dispensado, podia ficar em casa comendo rapadura e indo aos bailes da igreja no fim de semana. Estou indo para a guerra, pensou Pedrinho. Posso ficar aleijado, posso ficar louco, posso morrer. O trem sacudia levando milhares de homens de 18 a 25 anos de Pernambuco, da Bahia, do Rio, do Amazonas, do Piauí e de todos os recantos do Brasil que pensavam “estou indo para a guerra, posso ficar aleijado ou louco ou morrer. A metade dos que estão dentro deste trem vão morrer. Talvez mais, talvez todos”. O alemão Wogler ressonava de boca aberta. “Vamos para a morte. Este trem está nos levando para a morte.” Não muito longe, no carro que as levava para o aeroporto, Dulce, Zoé e Virgínia apertadas no banco de trás, entrelaçavam seus dedos, olhavam a cidade do Rio de Janeiro mais bela do que nunca ir passando deserta e silenciosa, como se também estivesse adormecida. “Todos estão dormindo.” “O que?” “Todos estão dormindo.” “É claro, sua boba. Émadrugada.” “Nossa partida é secreta?” “Ai, Zoé, tu me dá nos nervos com essas perguntas. E secreta é uma palavra muito idiota.” “Pela conversa do major Ernestino é mais ou menos secreta.” “Ou é secreta ou não é secreta.” “Ontem eu perguntei para ele para onde a gente vai e sabe o que ele me disse?” “É melhor não me dizer, começo a conhecer o major Ernestino e não estou gostando.” “Vamos para a base de Natal, depois para Dacar, depois só Deus sabe.” “O Marcos disse pra a gente não confiar no major Ernestino.” “Eu não confio é no bonitão do capitão Marcos.” E as três deram risadas, o carro avançou um sinal vermelho na madrugada enquanto o capitão Marcos olhava a roleta girar. A mão de unhas pintadas da estupenda Adelaide acariciava as fichas sobre a mesa, ao fundo Dick Farney acariciava um piano. “Soubeste do triste fim do nosso amigo gordinho?” “Nosso, vírgula. Teu amigo gordinho”. “Eu marquei outro encontro teu com ele.” “É, mas ele não apareceu.” “Apareceu. Morto na praia.” “O Rio é uma cidade perigosa.” A roleta parou de girar. “Bem, querida, perdi meu último centavo. Hora de partir.” “É cedo, meu capitão. Não é tua hora habitual.” “É que hoje vou pegar um avião”, e o capitão Marcos deu seu sorriso mais sedutor. Adelaide estudou-o inquieta, desconfiada. “Um avião? Que beleza! E para onde, pode-se saber?” “Ah, minha querida, para um lugar maravilhoso, mas vou te deixar com esse gostinho na memória, pra tu ficar saboreando enquanto eu vou saindo. Tchauzinho!” E o capitão Marcos se afastou entre os homens de terno de linho branco e as mulheres de vestidos com profundos decotes, a melodia do jazz de Dick em seus ouvidos, no momento exato em que o trem do 1º Escalão chegava no porto. Os 5 mil soldados ficaram fechados ali dentro quase duas horas, com as cortinas cerradas, até que um oficial abriu a porta e comandou: “Em fila, emordem e em silêncio!” Era um navio gigantesco, parado ali com sua enorme porta aberta, onde a fila de homens ia sumindo. Pedrinho, Atílio e João Wogler caminharam pela rampa carregando seus sacos, aproximando-se da boca escancarada, leram num costado o nome do monstro:”US Gen. Mann”. Ficariam amontoados na barriga dele durante 15 dias, à mercê dos submarinos e dos aviões da Alemanha, pensando em mutilação, loucura e morte, viajando através do mar para um lugar do mundo que nenhum deles sabia qual era.

terça-feira, 10 de abril de 2012

O Dia D está próximo


Décimo Terceiro Capítulo

No segundo domingo de maio de 1944, os praças Pedrinho, Atílio e João Wogler, que agora todos
chamavam de Alemão, saíram cedo do quartel e pegaram o ônibus para Laranjeiras. Estavam dominados por um entusiasmo quase infantil: iriam assistir Fluminense x Botafogo pelo Campeonato Carioca. Era a primeira vez que os três assistiriam a um clássico carioca. As equipes do Rio de Janeiro dominavam as imaginações jovens e tomavam um espaço enorme do afeto nos corações pelo Brasil todo. Os nomes dos craques cariocas retumbavam como tambores nas árduas discussões sobre futebol no quartel: Heleno de Freitas, Perácio, Barbosa, Biguá eram emblemas de uma alegria e glória que eles não sabiam definir. Em Imbituba e nas alturas geladas de Vacaria, ouvir o Campeonato Carioca pelo rádio era um rito que confortava a alma e acalmava a imaginação. O Alemão Wogler era um dissidente cauteloso nessas discussões, pois o futebol gaúcho era forte e competitivo, e ele alternava as escutas do campeonato carioca com o gaúcho. Mas seu clube, o Grêmio, não passava por um bom momento há muitas temporadas. O Internacional montara uma máquina de jogar futebol, arrogantemente chamada de Rolo Compressor, e isso, para o Alemão, era uma triste verdade: o Colorado simplesmente esmagava quem passava em seu caminho. Seus craques tinham nomes que ultrapassavam as fronteiras do Estado e despertavam a cobiça dos grandes do Rio, de São Paulo e de Buenos Aires. Carlitos, Tesourinha, Nena, Ruy e Villalba eram mais do que nomes e apelidos, se revestiam da aura mítica dos invencíveis. O Alemão não queria saber disso, e seus amigos tampouco. Numa parada da viagem, entraram no ônibus três moças bonitas e queimadas de sol, com uniformes de enfermeiras do Exército. Os três se inquietaram e trocaram olhares coniventes, mas sem muito entusiasmo. “Vamos convidar elas para o jogo”, sussurrou o Alemão, que era o mais despachado. As três enfermeiras passaram altivas, indiferentes, e os pracinhas sentiram sua condição de provincianos na grande cidade. Era verdade, e eles sabiam. Adoravam, aos domingos e dias de folga, pegar um ônibus e circular pela cidade, olhando-a com seus olhos juvenis, fáceis ao espanto. Sabiam intuitivamente que entre eles e aquelas garotas havia um áspero e grosso muro social que os separava. Dulce e Zoé estavam mais bonitas do que nunca, e sua amiga Virginia tinha olhos verdes e os cabelos louros: sua mãe era inglesa, casada com um engenheiro carioca. Conheceram-se num Carnaval, e a turista pálida e frágil ficou para sempre na cidade. As três moças não olharam nem repararam nos três pracinhas. Seu destino era Copacabana, passear na beira-mar, dar uma recorrida no Cassino e voltar para casa. Na segunda-feira bem cedo, recomeçaria a estafante rotina de treinamento. Perto das Laranjeiras perceberam a agitação das torcidas chegando para o jogo, e os três pracinhas se levantaram precipitadamente. O casquete de Pedrinho caiu e quando ele foi levantá-lo uma mão branca, pequena, apanhou-o antes e o estendeu. Os olhos de Pedrinho encontraram os de Virginia. Ele corou, sem remédio. Murmurou “Obrigado”, e enquanto era arrastado por Atílio e Alemão se perguntava se ela também tinha sorrido para ele ou fora apenas impressão. Já na calçada, olhou com ínfima esperança. Ela o olhava! Deu um adeusinho, e o ônibus se foi no meio do trânsito e da multidão que chegava. Pedrinho ajeitou o casquete com cuidado, pensativo, no exato momento em que o major Brayner ajeitava seu quepe, entrando no elevador do Ministério da Guerra. Outro oficial acelerava o passo para tomar o elevador, e Brayner segurou a porta para esperá-lo. Reconheceu o tenente-coronel Castello Branco, o Humberto de Alencar, considerado intelectual e influente em algumas áreas do Exército. Trocaram continências, mas não falaram. Quando foram apertar o botão de comando os dedos de ambos procuraram o número 10. Curioso. No 10º andar do Ministério ficava o Gabinete Secreto do Ministro da Guerra, e para ir até lá só com convite especial. Subiram em delicado silêncio até o 10º e quando saíram do elevador encontraram, refestelados nas poltronas do saguão, o general Mascarenhas de Moraes, o coronel Henrique Lott e o tenente-coronel Amaury Kruel. Todos tinham recebido convites sigilosos e individuais. Não havia justificativa ou definição de finalidade. E nenhum sabia que o outro tinha sido convidado. Logo juntou-se a eles o general americano Hayes Kröner, adido militar dos Estados Unidos, acompanhado de dois tenentes-coronéis também americanos. A porta do gabinete se abriu, e o coronel José Bina Machado, chefe de gabinete do general Dutra, convidou-os a entrar. Dutra cumprimentou um por um e passou para seu lugar na grande mesa no centro da sala. “Senhores”, começou, “agradeço a presença e a pontualidade de todos. Este é um encontro totalmente sigiloso, como podem deduzir, e sem mais delongas vou passar a palavra ao general Kröner, com quem deliberei sobre convocar esta reunião”. Brayner mentalmente classificou o americano de “enigmático e autoritário”. Era muito magro, e não conseguia esconder certo ar superior, que colocou um invisível e tênue mal-estar no ambiente. “Senhores, comunicados oficiais alemães desde ontem já anunciam ao mundo que o Brasil enviará tropas de seu Exército ao Teatro Europeu”, começou Hayes. “Esses comunicados avisam, ou melhor, ameaçam que nenhum combatente brasileiro tomará pé em terras da Europa. Ou seja, o barco que os transportar será afundado por seus submarinos. Quero dizer aos senhores que o governo dos Estados Unidos afirma o contrário.” Fez uma pausa (teatral, pensou Brayner), e olhou seus interlocutores, que sequer piscaram. “O governo dos Estados Unidos assume a responsabilidade e o risco de transportar as tropas brasileiras para qualquer lugar a que sejam destinadas. Mas, senhores, isso exige um grave compromisso de todos nós. E por isso, pedi ao senhor ministro da Guerra que nos reunisse aqui, no mais absoluto caráter sigiloso. Os oficiais que aqui se encontram, neste momento, não podem transmitir a quem quer que seja o que se vai debater e decidir. Nem mesmo as esposas poderão ouvir confidências sobre o que aqui for tratado. Se alguma desgraça acontecer, na partida ou na travessia do Atlântico, a responsabilidade ficará conosco, pela inconfidência de algum de nós. A preparação final ficará a cargo do Estado-Maior da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária.” Olhou para Brayner, que assentiu com a cabeça. “O navio que transportará o 1º Escalão é americano. Seu nome, onde se encontra, quando chegará, nada sabemos, por enquanto. Mas esse dia, posso afirmar, está próximo.”

terça-feira, 3 de abril de 2012

Décimo Segundo Capítulo

Três senhores da guerra


“O exército alemão já foi batido na União Soviética, disso não há mais dúvida, foram escorraçados da periferia de Stalingrado, estão refluindo para a Europa Central e Ocidental”, disse Mascarenhas. “No estágio em Washington percebi, várias vezes, membros do Alto Comando Americano expressarem a urgência da nossa presença como reforço imediato.” Mascarenhas falava como de habitual, pausadamente, olhando nos olhos seus dois interlocutores, os generais Cordeiro de Farias e Zenóbio da Costa. Ambos estavam sentados em poltronas diante dele, fumando. Zenóbio, seu tradicional e enorme havana perfumado, e Cordeiro, um rústico cigarro de palha, um palheiro dos nossos, como disse para Mascarenhas quando lhe ofereceu, sabendo que o outro recusaria. “Os americanos não me disseram, é claro, mas eu sentia isso claramente nas nossas conversas e nas aulas a que assisti. Eu tenho a convicção de que eles precisam desesperadamente de reforços, por menor que seja o contingente, por menos preparado que esteja. Eles precisam recompor o IV Corpo de Exército, que está reduzido à 6ª Divisão Blindada Sul-africana e algumas frações de tropa antiaérea americana, agindo como infantaria, vejam só que precariedade, com o rótulo de Task Force 45, sem qualquer eficiência ou combatividade. Eles precisam de gente para combater.” “Precisam é de carne para canhão”, disse Zenóbio, “e o que eu gostaria de saber é para onde pensam em nos mandar. Meu palpite é a Itália, eles já tomaram Nápoles e se preparam para avançar para o norte da península. A França vai ser invadida a partir da Inglaterra, disso não há dúvida, só resta saber quando será o famoso Dia D e em que parte da costa vai ser a invasão”. “Acho que você está certo, Zenóbio”, disse Mascarenhas, “não é por nada que o Rommel está montando uma linha de defesa impressionante na Normandia”. Cordeiro de Farias, levantou-se da poltrona e se dirigiu para o mapa da Europa preso no cavalete. Era o mais jovem dos três generais, tinha 42 anos, e aparentemente o que tinha mais experiência em ação de combate, fruto de sua participação nas várias revoluções brasileiras das últimas décadas, incluindo a marcha da Coluna Prestes. Esticou a jaqueta com um rápido estirão e apontou o dedo para um lugar no mapa. “A lenda do Afrikan Korps acabou. Os alemães foram batidos na África. O aclamado Rommel está comandando a construção da linha de defesa da Normandia, mas ele agora é um fantasma, uma imagem gasta daquele herói que os alemães idealizavam.” “Exatamente. E é ali que a guerra vai se decidir, na França e na Itália. A invasão da Europa pelos Aliados será por esses países”, disse Zenóbio. “O ataque terá que ser pelo Mediterrâneo e pelo Adriático, com os russos vindos do norte”, continuou Cordeiro, “os aliados vão tentar recuperar a França e a Itália em um intervalo pequeno de tempo. A Alemanha vai ficar encurralada. E nós, general Mascarenhas, nesse jogo de xadrez, onde é que nós entramos, no seu ponto de vista?”. “O Zenóbio disse que nós vamos ser bucha de canhão. É deprimente conjeturar que aliados pensem assim de nós, mas vamos ter que encarar isso como uma possibilidade concreta, sem idealismo tolo, sem ressentimento. Se querem saber, acho que vão nos mandar para onde haja necessidade de boi de piranha.” “Isso não interessa, essa é a guerra que nos coube. Graças a Deus vamos para uma guerra de verdade.” “Tem gente que pensa diferente”, e Cordeiro de Farias estendeu para Mascarenhas um jornal com uma matéria assinalada em vermelho. A manchete anunciava com estardalhaço a queda de Benito Mussolini, no dia 25 de julho de 1943, poucos dias antes do afundamento do U-199 pelos aviões da FAB. Cordeiro indicou com o dedo uma sessão assinada por Adelaide Scoraro. A deslumbrante Adelaide escrevia artigos publicados em vários jornais do país: “Se é verdade, como dizem por aí, que o destino da imaginária expedição do Brasil à guerra será a Itália, então é bom guardar os tamborins e fazer o desfile por aqui mesmo, pois se nossos galantes futuros heróis forem para a Itália será para fazer turismo”. “A quinta-coluna continua ativa e fazendo graça.” “Essa senhora está fazendo piada um tanto atrasada”, disse Mascarenhas. “As coisas se precipitaram, senhores, e eu não tenho clareza, ainda, para dizer onde ficamos no meio dessa poeira toda. Hoje chegou um telegrama dando conta de que um comando alemão libertou Mussolini da prisão e o levou para uma reunião em Berlim com Hitler. Parece um folhetim rocambolesco, mas foi assim. Vamos aguardar, senhores, vamos aguardar. Não podemos dar um passo em falso ou seremos esmagados pela imprensa, pela direita, pela esquerda, pelos americanos e pelos alemães.” “Sabem o que andam dizendo por aí? Sabem por que não embarcamos logo?”, perguntou Zenóbio. “Porque o comandante em chefe é De Moraes, o comandante da Infantaria é Da Costa, e o comandante da Artilharia não é de briga, pois é Cordeiro.” Zenóbio jogou a grande cabeça para trás e deu a gargalhada que fazia a delícia de seus comandados, quando estava de bom humor. “Essa é boa, essa é muito boa, mas a melhor mesmo...” Mascarenhas fez um ruído discreto com a garganta, deu um de seus raros sorrisos, como pedindo desculpas: “Com licença, Zenóbio, mas preciso acrescentar um pequeno detalhe para encerrarmos a reunião, e é justo a respeito dessa demora e dos entraves ao nosso trabalho que enfrentamos no dia a dia. A natureza da nossa missão é extremamente simples: junto com os Aliados, ajudar a derrotar o nazismo. O lado complexo, e delicado, e mesmo antagônico dessa premissa é que, e isso é uma ideia que circula em todas as rodas pensantes do país, é que derrubando o nazismo estaremos também derrubando o governo que nos manda para o teatro de operações. Todos nós sabemos disso. É um dos motivos de tanto entrave para nossa preparação e para nossa partida. Portanto, senhores, seja lá o que cada um de nós pense a respeito desse assunto, e todos somos livres para pensarmos o que bem entendermos, vamos deixar a política de lado, e como muito bem disse o Zenóbio, vamos cuidar só da guerra que nos coube lutar”.

Próximo capítulo: o Dia D está próximo

terça-feira, 27 de março de 2012

Décimo Primeiro Capítulo

O comandante em chefe


O general Mascarenhas de Moraes recebeu o envelope das mãos do mensageiro, em seu gabinete de comandante da Segunda Região Militar. Leu “Ministério da Guerra” embaixo do escudo. Examinou-o, preparando a antiga couraça que o protegia de surpresas. O telegrama era seco e direto como era Dutra. 25/H.1- Urgente - 9/VIII- 1943- Cifrado- Gen. Mascarenhas – São Paulo- Consulto prezado camarada se aceita comando de uma das Divisões que constituirão corpo expedicionário. Impõe-se resposta urgente porque, caso afirmativo, fará estágio Estados Unidos. – Gen. Eurico Dutra – Ministro da Guerra. Então era isso. Agora que todos os bonitões tinham recusado os convites, agora que os fanfarrões tinham alegado as desculpas mais risíveis, se voltavam para ele, o patinho feio, o velho, o obscuro general que não falava alto nem se desmanchava em mesuras nos salões de Getúlio. Pensou em Liliana. Se aceitasse, ficaria afastado de Liliana durante muito tempo. João Batista Mascarenhas de Moraes tinha pouco mais de metro e meio de altura e faria 61 anos de idade no próximo ano, mas se havia alguma coisa no mundo de que se orgulhava, profunda e completamente, era de ser um soldado. Talvez não fosse grande coisa, mas ser um soldado dera sentido a sua existência e ele tinha bem amadurecida a exata compreensão disso. Redigiu a resposta de próprio punho, procurando ignorar o júbilo que o acossava como a uma fraqueza nefasta. Passou a nota para seu secretário: Gen. Dutra – Rio – Urgentíssimo – De São Paulo – 0.40.10.VIII.1943, 17,15 hs. 345 – Muito honrado e com satisfação respondo afirmativamente consulta V. Excia. acaba fazer-me em rádio 25/H. Gen. Mascarenhas de Moraes – Cmt 2º RM. No arrastado e nervoso segundo semestre de 1943 os preparativos para organizar a FEB encontravam tantos obstáculos na máquina burocrática da ditadura de Vargas que pareciam irreais. Entretanto, a realidade era mais veloz e desencontrada que os boatos e as fofocas que inundavam o país. Os acontecimentos na Europa se precipitavam e anunciavam dias de mais fúria, perplexidade e horror. A guerra começava a mudar seu curso. A poderosa máquina de destruição alemã dava os primeiros sinais de vulnerabilidade. Os Aliados já planejavam a preparação das medidas para tomar a iniciativa e finalmente atacar o poderoso exército que se julgava inatacável. Para isso, qualquer ajuda seria valiosa, mesmo de um país pobre, sem presença política internacional e seguramente sem a infra estrutura necessária para participar de um conflito dessa natureza. No avião para o Rio, Mascarenhas meditava nessas coisas e percebia com certo humor semelhanças de sua pessoa com o país: obscuro, pobre, lutando para ser ouvido. Sua vida não fora nada fácil. Aos 14 anos saiu de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, para Porto Alegre, sozinho, praticamente sem um centavo no bolso. Trabalhou de dia como caixa de um armazém e estudou à noite. Conseguiu vaga na Escola Preparatória e Tática de Rio Pardo, no interior do Rio Grande, fronteira com a Argentina, onde tinha garantidas três refeições diárias e a rude camaradagem de seus colegas. Não era o aluno mais brilhante, nem se destacava nos esportes, mas dura e silenciosamente ia vencendo as etapas, até que passou nos exames para a Escola Militar do Brasil, conhecida como Escola da Praia Vermelha, no Rio. Tornou-se oficial do exército brasileiro. Tinha orgulho de si mesmo e dos valores que aprendera na vida. Na revolução de 30 foi leal ao presidente deposto Washington Luiz e por isso foi preso pelos rebeldes liderados por Getúlio. Agora ia ter uma conversa em particular com o próprio, o estranho ditador, amado e odiado, cordial e perverso. Dutra o esperava na antessala do gabinete. “O presidente quer falar a sós contigo, Mascarenhas, mas vamos entrar juntos, depois eu saio”. Achou curiosa aquela cerimônia toda, mas não teve muito tempo para tentar se acostumar com o clima de poder e pompa que imperava no palácio do Catete. Em breve estava a sós com Getúlio, seu sorriso, seus pequenos olhos brilhantes, seu terno bem cortado. “Essa expedição de guerra não é um capricho, general. Será uma missão de alto nível, de extrema complexidade, e não quero me meter a sabichão em assuntos militares, mas acho que será a empreitada mais difícil em toda a história de nossas Forças Armadas”. “Assim me parece, presidente”. “O que vou lhe dizer por enquanto é estritamente confidencial, mas eu confio no senhor, totalmente, sem restrições, e olhe que, 10 anos atrás, em 1932, o senhor foi preso pela segunda vez, por apoiar uma revolta militar e civil contra mim.” “Fiquei com a legalidade, presidente, como me cabia.” “O senhor conspirou contra mim.” “Não tenho esse hábito, presidente. Não sou conspirador. Existem sob suas ordens homens melhores do que eu nessa prática.” “É verdade, sei disso, por isso o que desejo do senhor não são suas qualidades de conspirador, desejo para esta missão essa sua firmeza de gaúcho e de homem de pequena estatura.” A máscara habitualmente impassível de Mascarenhas se sobressaltou. Getúlio percebeu e soltou sua famosa gargalhada, súbita e estrondosa, que assustava e maravilhava as pessoas. “Me perdoe a intimidade, general, mas nós, baixinhos, nos entendemos”. Estendeu-lhe um charuto. “Obrigado, presidente, não fumo.” “Tinha esquecido. Então vou pedir que preparem um mate pra nós. Acho que temos muito para prosear, porque, general, vou lhe dizer: quero que o senhor seja o comandante em chefe da expedição.” Examinou o impassível rosto enrugado de Mascarenhas, já recomposto da súbita intimidade que manifestara. “A honra é minha, presidente.” “Vou lhe dizer o que penso antes de chamar o Dutra para nossa conversa. Eu lhe garanto uma coisa, João Batista: essa é a pior e mais difícil incumbência que eu já dei para alguém”. “Sim, senhor.” “Vai ser uma missão longe da pátria, sob um comando estrangeiro e, possivelmente e, mais ainda, com toda certeza, arrogante e autoritário, e o senhor vai receber as tarefas mais duras e até mesmo as irrealizáveis e vai sentir a inveja e o ciúme e a traição rondando por todos os lados. Lá, seja onde for esse lá, vai conhecer uma coisa que eu conheço muito bem, a solidão. O senhor vai se sentir só, meu general, como nenhuma criatura já se sentiu na face da terra”.

Próximo capítulo: Três Senhores da Guerra

sábado, 17 de março de 2012

Décimo Capítulo


A geografia sagrada


“Boa noite, herr Blücher”, disse Marcos, parando o carro ao lado da calçada. Erhardt Blücher entrou rapidamente. “Boa noite, capitão, que prazer vê-lo justamente nesta noite.” Marcos engrenou a marcha, e o carro começou a avançar pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana. “Justamente? Que tem esta noite de tão importante?” “Além de nossos pequenos negócios se aproximando de um fim harmônico e previsível, muitas outras coisas estão acontecendo, capitão, a História mudando, o Grande Aniversário acontecendo, e um presente guerreiro está sendo gestado.” “Grande aniversário? De quem?” “Posso perdoá-lo por esse lapso, capitão, mas hoje, 20 de abril, é o aniversário do Chefe, todos devemos comemorar.” “Desculpe, herr Blücher, mas minha agenda não é tão completa assim.” “Depois que eu lhe mostrar os papéis que trago comigo, capitão, quem sabe poderemos erguer um brinde ao Führer, no Espaço Imperial do Copacabana.” “Tem os papéis aí?” “Claro, podemos estacionar num local discreto da avenida?” Marcos estacionou diante do mar, Blücher abriu a pasta e tirou vários papéis dobrados. “São planos originais, capitão, e devem ser estudados com muito sigilo. Como o senhor deve saber, dois anos atrás, precisamente no dia 20 de janeiro  de 1941, o coronel Heydrich, assistente de Himmler, apresentou, no castelo de Wannsee, para 15 altos oficiais do partido, o projeto de uma solução final para a questão judaica.” “Sim, sim.” “Sei que o senhor sabe, embora isso seja altamente secreto; foi apresentado na reunião um elaborado esquema para a eliminação de 11 milhões de judeus, base para a criação da Sexta Raiz Racial.” “Sim, sim.” “Pesquisas recomendaram o uso do gás como o meio mais eficiente e barato, a indústria alemã se beneficiou com excelentes contratos com o governo, como espero o mesmo aconteça conosco; houve uma concorrência, e os vencedores foram Topf e Cia, de Erfurt, que apresentaram um crematório de alta capacidade, que poderia queimar 2.000 corpos a cada 12 horas, aqui está a planta; como o senhor pode ver, é de simples execução, mas aí vem o detalhe criativo: a Topf ganhou o contrato porque idealizou uma maneira de economizar combustível.” “É? Como foi isso?” “Gordura humana. Matéria prima não faltava. Não é genial?” Marcos passou a mão lentamente na testa. Havia uma palmeira na frente deles, e a brisa do mar agitava suas palmas. “A Armamentos Alemães Inc. ganhou o contrato para a fabricação das câmaras de gás, e o gás, aqui está o nome dele, Zyclon-B, foi fornecido pela German Vermin-Combating Corporation. Nossa célula em Santa Cruz tem a fórmula; e se me permite, fiz mais um modesto estudo que quero passar para suas mãos, um mapa das grandes linhas geométricas que unirão as unidades de produção através do país, de maneira a harmonizá-las com as sutis correntes de energia que passam acima e abaixo da superfície, um estudo de geomancia, que delimita a geografia sagrada de nossos empreendimentos.” Blücher estendeu com as duas mãos gordinhas a folha de papel dobrado, Marcos a apanhou e guardou-a no bolso. Pensou: às 11 preciso estar no Cassino da Urca, assistir ao show do Dick Farney, a Dulce adora o Dick Farney. O trânsito fluía ronronando suavemente nas costas deles. Marcos observou uma gota de suor se formando na testa de Blücher. “O senhor conhece o Dick Farney?” O rosto de Blücher se mostrou preocupado. “Não, quem é ele?” “Um pianista.” Percebeu a dúvida no olhar do gordo. “Não tem importância; que presente guerreiro é
esse que mencionou, herr Blücher?” “O senhor soube dos acontecimentos de Varsóvia, o levante no gueto judeu comandado pelo tal de Mordechai? Isso já se arrasta há semanas.” “Vi um telegrama hoje, lá no escritório”. “Pois é, o presente para o Führer será o total esmagamento do levante, o brigadeiro Stroop anunciou que comandará pessoalmente a invasão do gueto (e Erhardt Blücher consultou o relógio) para esta noite. Já deve estar acontecendo, lá é madrugada. Vão bombardear e incendiar tudo, não vai sobrar pedra sobre pedra! Esse será o presente.” “O senhor não acha um desperdício de munição e energia, considerando que a Alemanha começa a enfrentar dificuldades cada vez maiores na guerra? Afinal, em fevereiro os russos romperam o cerco de Leningrado, e, ao que parece...” “Meu rapaz, permita que o chame assim devido a nossa diferença de idades, é preciso entender que a guerra é apenas um meio, não um fim em si mesmo; acabar com os judeus é mais importante que a própria guerra, é o começo de uma Nova Era Racial; mesmo que a Alemanha perca esta guerra, a prioridade é a higienização do planeta, base para nosso destino de forjar uma nova raça, uma forma superior de existência; acima das religiões e da moral burguesa, o novo homem impulsionará as fronteiras de uma civilização baseada numa tecnologia infinitamente mais sofisticada do que as técnicas conhecidas no presente.” Marcos tocou no bolso do paletó de linho, sentiu o contato do papel dobrado: “Tecnologia como a destes fornos crematórios?” Blücher sorriu, deu um tapinha na coxa de Marcos: “Caro capitão, nosso projeto vai transcender a condição humana, vamos ganhar um poder ilimitado sobre o universo e vencer a morte, vamos nos tornar deuses”. “É uma meta ambiciosa, herr Blücher.” “Mais que ambiciosa, é científica; neste momento os tanques estão entrando no gueto; se eu fechar os olhos, posso vê-los; meu rapaz, em 1923, num discurso proferido em Colônia ao qual eu tive a honra de assistir, nosso então futuro Führer previu com lucidez sua meta, nossa meta, dizendo em alto e bom som que a libertação exige mais do que economia política; mais do que suor; para nossa libertação precisamos de orgulho, vontade, desafio, ódio, ódio e mais ódio!” Marcos observou a gota de suor deslizando na testa ampla e rosada de Blücher e perguntou, com tal gentileza na voz que o surpreendeu mais do que o ato que sabia iria em segundos cometer: “Como é mesmo o nome desse judeu lá do gueto?” “Mordechai”. “Herr Blücher, em nome de Mordechai, feliz aniversário do Chefe.” E acertou o tiro de 9mm bem no centro da testa, onde a gota de suor descia.

Próximo capítulo: O comandante em chefe

sábado, 10 de março de 2012

Nono Capítulo


Pedrinho se alista na Infantaria

Pedro Diax voltou para Imbituba e para sua vidinha de antes de embarcado, ou seja, passava os dias vagando na praia, pescando de vez em quando e ajudando os pescadores a recolher suas redes e barcos, polindo lampiões e consertando tarrafas, redes e covos. Jogava futebol no Imbituba Football Club como ponta-direita, fazendo tabelas com Atílio, meia-direita, baixo, forte, gago e seu melhor amigo. Nos fins de semana, missa com a família, depois olhava o jogo de dominó dos mais velhos na pracinha, espiava de longe o baile nos fundos da igreja. O luto o impedia de dançar e de ir a festas, e ele sabia que seu isolamento não era uma mera formalidade social, um costume em honra aos mortos. Havia sofrido um impacto brutal em sua compreensão da vida e lutava amargamente para assimilar essa experiência. A todo momento se flagrava a lembrar de Rita Maria cantando com voz veludosa Besame Mucho, a brincar durante alguns segundos com a fantasia de tirar aquele vestido cor de rosa de cima do corpo pequeno e quente da cantora, e que nem tivera tempo de sentir remorso sobre o fato de que ela era a garota do seu irmão Dico, quando foi arrebatado pela vaga queimante e inesperada. Nada no mundo podia sugerir que aquilo pudesse acontecer. Havia, claro, conversas sobre a guerra, e murmú- rios dos marinheiros no bar sobre submarinos, mas tudo isso era tão distante, tão em outras terras, outros mundos. E de repente estava na água revolta, sem fôlego, vendo tudo arder e gritar e se contorcer. Nesses dias sombrios passava longas horas sentado num cômoro numa enseada de Imbituba, olhando a dança das baleias ao longe. Foi quando pensou, pela primeira vez com horror, que seus companheiros de toda a vida que se aproximavam dos grandes animais para arpoá-las, tinham alguma semelhança com aquele submarino alemão que os afundou, chegando sorrateiro e sem aviso, matando sem motivo no momento em que se entregavam ao prazer e ao trabalho. Prometeu a si mesmo duas coisas: nunca caçaria baleias e iria se alistar para combater os nazistas de Hitler. Não queria pensar nisso como um ato de vingança por seu irmão. Era muito mais. Era uma atitude. Algo que fazia não apenas pela memória de seu irmão Dico, já que tantas vezes o padre Heitor o avisara contra o enorme pecado que era a vingança (“Deixa a vingança nas mãos de Deus, meu filho”), mas porque alguma coisa muito grave e muito grande estava em andamento contra seu país e contra tudo que ele amava, e essa coisa era brutal, e ele sabia muito bem: maligna. Ele sabia. Aqueles sujeitos engomadinhos do submarino sorriam para ele, ofereciam café e chocolate, chegaram a colocar um cobertor nas suas costas, mas tinham por sua dor uma indiferença que o assustava mais do que qualquer coisa. Iria se alistar na tal força expedicionária que estavam montando. Esperou muito tempo a prometida indenização pelo afundamento do Baependy, percebeu que era conversa fiada e papelada demais e juntou os trocados que tinha guardado no colchão, contou junto com Atílio o dinheiro de que dispunham, dava para comprar duas passagens para o Rio de Janeiro. Abraçou pai e mãe chorando e chegaram ao Rio dois dias depois, debaixo dum temporal. Trataram de arrumar quarto numa pensão perto da rodoviária e na manhã seguinte se informaram sobre o ônibus para Realengo/Vila Militar. Pelo jeito não havia muita gente querendo ir para a guerra, pois depois de explicar o que eles pretendiam a uma sentinela no portão do quartel, foram mandados para falar com o sargento mau humorado, que começou imediatamente a debochar de sua origem: catarinas! " Com vocês não vamos ganhar guerra nenhuma, mas vão passando, ô catarinas, vão passando, precisamos mesmo de bucha de canhão". Ambos tinham agora 18 anos, foram aprovados nos exames médicos e logo estavam experimentando os uniformes, os coturnos, os cinturões e se sentindo importantes. Pedro estava acostumado com a disciplina rígida dos navios mercantes, mas estranhou a maneira brutal como os praças eram tratados por sargentos e oficiais. A experiênciade bordo era um passeio de férias diante do dia a dia massacrante do quartel. Alvorada, ordem unida, exercícios, aprendizado das normas e dos manuais, exercícios de tiro e montagem de armas de fogo, um trabalho exaustivo com sargentos e oficiais em cima deles, exigindo e escarnecendo. Ficaram amigos de João Wogler, um alemão de Vacaria, no Rio Grande, baixo e forte como o Atílio, que não desdenhava de suas origens de catarinenses e nem de ninguém, mas era afoito e duro para assimilar uma ordem. Era o favorito dos sargentos para receber reprimendas e castigos de exemplo, até o dia em que encontrou o tenente De Líbero. Este tenente era o janota mais vaidoso e autoritário que jamais vestiu a farda de oficial do Exército, e, quando percebeu em Joãozinho Wogler o olhar de desafio, exultou intimamente.“Vais limpar o chão da cozinha com a língua para aprender a respeitar teus superiores, alemão batata.”João cuspiu no chão, rente à botina brilhante do tenente. O tenente empalideceu. “Sargento, sargento!” E, enquanto o alarmado sargento Onda se aproximava para saber a causa dos gritos do tenente: “Quero este alemão amarrado no poste lá na estrebaria, eu mesmo vou dar vinte chicotadas no lombo dele”. Ao desfechar a quarta chicotada, a que abriu profundo corte nas costas de João Wogler, os poucos soldados que assistiam começaram a protestar. Chegaram mais soldados, aumentaram os protestos e logo um tumulto começou a se espalhar na estrebaria. Talvez só então o tenente De Líbero tenha percebido a dimensão da sua fúria irracional: estava cercado por 40 soldados enfurecidos, que gritavam palavrões e o ameaçavam. O sargento Onda chamou mais três sargentos e alguns cabos e soldados veteranos, que a custo mantiveram os soldados afastados, enquanto o tenente se paralisava com o cinto na mão, pálido, já arrependido do seu ato.“Isso vai dar o que falar”, disse o sargento Onda entre dentes para o cabo, “vai sobrar para todos nós”.

Próximo capítulo: A geografia sagrada

segunda-feira, 5 de março de 2012

Oitavo Capítulo

Dulce e Zoé entram na FEB



Os instrutores lá embaixo pareciam miniaturas. Cinco metros, meu Deus do Céu, se escorrego e caio quebro todos os ossos. Exagero? Não. Cinco metros de altura não é uma distância confortável para uma queda. Trêmula, Zoé se equilibrava sobre o pórtico de concreto, estreito, com malditos e exatos cinco metros de altura. Os instrutores lá embaixo pareciam, sim, miniaturas. Na frente de Zoé, Dulce avançava impávida, como se toda sua vida tivesse atravessado pórticos de concreto estreitos e com cinco metros de altura. De todos os exercícios com que as torturavam, fora levantar de madrugada, lutar com bastão, pular obstáculos, mais a Falsa Baiana, ridículo teste de equilíbrio sobre uma corda com outra sobre a cabeça para segurar, e as corridas intermináveis ao redor do campo de treinamento da Fortaleza de São João, na Urca, de todos os exercícios o que dava pesadelos noturnos para Zoé era a travessia do pórtico. Era a primeira vez que o Exército tinha mulheres em seus quadros, e para estabelecer uma convivência mais harmoniosa foram necessários alguns ossos femininos partidos, constantes luxações e cansaço permanente. Para entrar no curso de enfermeiras, as duas tiveram que travar um duro combate com suas famílias. Tanto o empertigado general, pai de Zoé, quanto o polido advogado, pai de Dulce, deixaram de falar com as filhas, como crianças amuadas. O preço de suas vontades era caro, e as duas pagavam sem se queixar: moravam em Laranjeiras, em casa da tia de Zoé, e estagiavam das 8 até meio-dia no Hospital Central do Exército, em Benfica. Depois, saíam em disparada para pegar o bonde para as aulas teóricas no Ministério do Exército até as 3 da tarde, quando corriam mais uma vez para chegar no horário (16 em ponto, senhoras!) para as aulas de educação física na Fortaleza de São João. Mastigavam um sanduíche durante os deslocamentos, e passavam o tempo todo com fome. Zoé ficava boquiaberta quando, à noite, Dulce ainda tinha fôlego para ir ao Centro, assistir à reprise de ...E o Vento Levou no Cine Metro. O filme tem quatro horas de duração, berrava Zoé, mas tem Clark Gable, retrucava Dulce, quatro horas de Clark Gable. As duas garotas ainda estudavam inglês duas vezes por semana, à noite, com uma professora particular, e nos fins de semana circulavam com os primos e amigos pelos cassinos e bares da cidade, repletos de shows e espetáculos internacionais. O Rio de Janeiro se tornava uma cidade internacional. Milionários europeus fugindo do teatro da guerra compravam casas e apartamentos nos bairros nobres, homens de negócios desembarcavam no Galeão de olho na decisão de Getúlio sobre compra de armamentos, espiões de Hitler e de Mussolini arregimentavam aliados, a cidade fervia de intrigas e boatos, mais feliz do que nunca. Quem não estava de nenhuma maneira feliz eram as famílias das duas meninas. A todos horrorizava o fato de elas andarem o dia todo em convívio com soldados. O general pai de Zoé chegou a interpelar asperamente seu sobrinho, o capitão Marcos, quando soube que ele tinha intermediado algumas gestões para que elas ingressassem no curso de enfermeiras. Exigiu relatórios pormenorizados sobre as atividades da filha, deixando o capitão com um preocupante sentimento de culpa. Era legítimo o sentimento, porque o capitão Marcos andava sentindo uma atração cada dia mais irresistível pela delicada Dulce, a dos olhos azuis, de pele alva, agora com cor de mel pela constante exposição ao sol. Dulce achava o capitão Marcos romanticamente misterioso, além de que tinha um bigode que o deixava muito parecido ao Clark Gable. Marcos era bom estrategista e achou correto preservar sua retaguarda. Para isso convidou o herói da temporada, o tenente Torres, para as excursões noturnas pela noite do Rio com as duas garotas. O tenente Torres, todos o chamavam de Betinho, também considerava a jovem Zoé, miúda e elétrica, uma companhia adorável, e todos eles começaram a sair juntos nos fins de semana. Foi numa noite dessas, quando assistiam a um show de Dircinha Batista, que se aproximou da mesa deles a eletrizante Adelaide, “a jornalista mais fofoqueira do Rio”, sussurrou Betinho, tão cheia de sensualidade e calor que assustou as duas meninas. “Oi, gente, que surpresa, dois másculos oficiais com duas ingênuas beldades, soltos na noite pecaminosa.”. Deu uma gargalhada e disse: “Desculpem, meninas, me perdoem, eu sou assim mesmo, brinco com todo mundo, mesmo com quem não conheço, muito prazer Adelaide Scoraro”. As duas se deslumbraram, “Adelaide, a jornalista, a da coluna social?”. “Ela mesmo; tenente Torres, bravo piloto da pátria, hoje estou feliz.” “É mesmo, por quê? Que maldade fizeste?” “Fiz uma entrevista maravilhosa com o Adhemar Gonzaga, o dono da Cinédia, e ainda apresentei para ele a ideia de um musical, filmado aqui mesmo no Cassino da Urca, com o Colé e a Virgínia Lane, mais a Dircinha, com quem eu tomei o café da manhã às três da tarde.” E deu outra gargalhada, puxou Marcos para perto de si e murmurou com a piteira dourada entre dentes: “Tens visto nosso comum amigo, Herr Blücher?”. “Nunca mais o vi, desde aquele show a fantasia naquela mansão misteriosa.” Adelaide deu uma risadinha contida: “Posso marcar outro encontro”. E, voltando-se para as duas garotas: “Quer dizer então que vocês estão se preparando para ir para a guerra, que maravilha, escutaram a última, o famoso Dia D foi marcado para depois de amanhã, mas acho que é boato, me confirma isso, capitão Marcos?”. “Não posso confirmar, querida, o Churchill não me consultou... ainda.” Outra gargalhada espantosa, e Adelaide encarou Dulce e Zoé: “Sorte para vocês, meninas, quando forem para a guerra, seja lá onde for, aliás, vocês já sabem para onde vão? Onde é mesmo que fica essa guerra, Marcos? África, Ásia ou quem sabe Portofino? Querem saber mesmo quando vocês vão embarcar, meus amores, pois eu digo, tomem nota e depois me cobrem: será no Dia de São Nunca, ou quem sabe quando galinha criar dente, ou, melhor ainda”, e soprou com displicência a fumaça da piteira dourada no rosto delas, “quando cobra fumar”.

Próximo capítulo: Pedrinho se alista na Infantaria.