sábado, 28 de janeiro de 2012

Terceiro Capítulo

A sociedade secreta



Com o Brasil alvo de ataques dos submarinos alemães, agente tenta se infiltrar em misterioso grupo nazista 

O Hotel Copacabana Palace 
resplandecia ao som 
dos 
metais de uma banda 
de jazz 
quando o 
capitão 
Marcos subiu os degraus 
da entrada, num terno de 
linho branco e sapato de duas cores. Parou 
no último degrau e colocou um cigarro 
na piteira. As pessoas passavam por ele 
exalando perfumes fortes, havia ombros e 
decotes bronzeados e tensão sexual. Parou 
na entrada e deu um olhar ao cartaz: Carmen 
Miranda e o Bando da Lua. Isto vai 
lotar, pensou. Atravessou o Salão Imperial 
e saiu para o pátio. Circulando a piscina, 
exatamente como lhe dissera ao telefone, 
viu a bela Adelaide. Entre centenas de 
mulheres belíssimas que transitavam por 
ali, Adelaide se destacava sem o menor 
esforço. Ela tomou seu braço: atrasado 
como sempre, capitão. Desculpe, querida, 
o dever. Estavas torturando algum pobre 
sindicalista? Piada sem graça, disse Marcos. 
Ui, meu capitãozinho é sensível, vem, 
vem que vou te apresentar nosso homem, 
ele tem a senha. Cada vez chegava mais 
gente ao Copacabana. Eu tinha pensado 
em entrevistar a Carmen para a coluna, 
mas hoje parece que não vai dar, disse 
Adelaide e de repente se eletrizou, olha 
ali, olha ali, o Adhemar Gonzaga, o dono 
da Cinédia, eu tenho uma ideia fantástica 
para uma comédia, preciso falar com ele. 
Depois, disse Marcos, vamos achar nosso 
homem. Lá está ele, disse Adelaide, aquela 
baleia rosadinha. Afundado num sofá estava 
um homem gordo, o corpanzil parecendo 
querer sair do terno de linho. Querido, 
te apresento Herr Ehrhardt Blücher, 
discípulo dileto do mestre Dietrich Eckart. 
O gordo fez um gesto casual, convidando 
Marcos a sentar. Apenas um humilde 
membro da Sociedade, capitão, muito 
prazer, a nossa Adelaide me falou muito 
no senhor, já vou lhe dizendo que fizemos 
uma pequena investigação a seu respeito 
e achamos que podemos convidá-lo para 
uma troca de ideias. Falava português 
com dificuldade mas segurança, e olhava 
Marcos direto nos olhos, com uma espécie 
de simpatia e desafio, meu carro está aqui 
perto, vamos andando? Havia um chofer 
que abriu a porta com cerimônia, Marcos 
sentou no banco detrás com Adelaide, 
o gordo Blücher disse desculpe, simples 
segurança e colocou um óculos escuro 
em seus olhos, os óculos estavam vedados com uma tarja preta e Marcos sentiu que o carro arrancava sem enxergar absolutamente nada. O trânsito está difícil, disse o motorista, há uma concentração muito grande lá perto do Catete. Dirija sem comentário, disse o gordo, obrigado. A Sociedade existe há mais de 700 anos, capitão, vários membros são iniciados na Doutrina, foi ela quem abriu os centros de visão do Führer. Marcos sentia a presença do mar à sua esquerda, estamos indo para o Sul, então. Eu admiro o seu país, tão ingênuo, tão prosaicamente paradisíaco, vocês são um gigantesco país agrícola que tem 3 mil tratores, na Alemanha, um país industrial, nós temos 80 mil e ainda achamos pouco, não digo isso com soberba, eu sei que tudo é fruto do Veem, sabedoria da raça ariana acumulada desde os tempos dos Cavaleiros Teutônicos, sabedoria para iniciados na nossa Sociedade Thule, um modesto braço do Partido, enterrado profundamente na nossa tradição mais pura. É que nós somos um povinho, disse Adelaide, uma típica sub-raça. Não diga isso, sussurrou Marcos. É verdade, insistiu Adelaide, sabe aquela história de que Deus fez um paraíso na terra, as melhores praias, as montanhas mais lindas etc. e como reclamassem de favorecimento Deus disse esperem para ver o povinho que eu vou botar lá e Adelaide deu uma gargalhada e Blücher a acompanhou, essa é boa, essa é muito boa. Vou botar essa história amanhã na minha coluna, o Rubem vai ficar maluco, as unhas de Adelaide se cravaram na palma de sua mão e Marcos fechou os olhos e os deixou fechados lembrando que a pistola ficara no apartamento, que estava sendo levado na noite escura por um desconhecido gordo cuja voz agora dizia temos grandes coisas a construir, capitão, nós o investigamos e sabemos que não é um homem violento, há uma violência que se origina do caos e nos dirige para o caos, e há uma violência cuja natureza é geradora de cosmos... é no sentido cosmo-criativo que desejamos discutir, uma conversa entre homens criativos, e não entre violentos. Marcos deixou de escutar, ficou atento aos ruídos fora do carro, apenas distinguia o murmúrio do mar, sentindo crescer dentro dele uma angustia que se traduzia num pensamento fixo: não fui treinado para isto. Meia hora depois o carro sacudia fazendo-o chocar contra o corpo macio de Adelaide, a estrada parecia ser de cascalho. Chegamos, disse o gordo, não tire os óculos, por favor.

Quando tiraram meus óculos eu não acreditei no que via. Estava numa sala de pé direito muito alto, estandartes nazistas nos quatro cantos da sala, um baita retrato do Hitler numa parede e um círculo de pessoas com capuzes e batas que iam até o chão. Bem vindo a nossa Sociedade, disse um sujeito atrás de uma mesa, sentado, com um livro aberto na frente dele. Achei aquilo tudo muito ridículo, coronel, mas o que eu sentia mesmo era o medo crescendo na minha barriga. Por que na barriga? Sei lá, era ali que eu sentia uma pontada gelada, a Adelaide não estava e nem o gordo Blücher, quer saber, coronel, eu não fui treinado para isso. Nenhum de nós foi. Pois é, eles começaram a fazer perguntas sobre o Serviço, disseram que eu devia ser sincero, que era apenas um teste, disseram que sabiam como a gente opera, e sabiam mesmo, isso é coisa do Filinto Müller, com certeza. Deixa o Filinto fora disso, já temos problemas demais, parece mesmo que vão declarar guerra à Alemanha, o Filinto está em palpos de aranha. Está no papo do Aranha, disse Marcos e se arrependeu imediatamente sentindo-se idiota. Trocadilho genial, disse o coronel com gélida ironia, deu para saber onde fica a tal casa? Vou rastrear, esta tarde vou tentar refazer o caminho, o Palma vai dirigir. E a Adelaide? Vamos deixar ela em paz por enquanto, coronel, não podemos desperdiçar esse trunfo, ela conhece todos esses nazistas e vai nos levar até eles. Sim, meu filho, e se ela for parar na cadeia você vai perder o seu... e o coronel fez um gesto obsceno. O capitão Marcos, irritado, colocou um cigarro na piteira. Quero um relatório, Marcos, por escrito e completo, até meio-dia, aqui na minha mesa. 

Próximo capítulo: O horror da guerra chega a Maceió

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Segundo Capítulo


Esqueçam essa guerra!
Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1942



Enquanto os militares discutem como responder aos ataques alemães, um adolescente recolhido numa praia do Rio conta uma história surpreendente.



"O Baependy, senhor ministro, afundou em três minutos e meio, o radiotelegrafista não teve tempo de mandar uma mensagem de socorro, não houve tempo de lançar botes e baleeiras ao mar, foi tudo muito rápido, dois torpedos em cheio no casco”, disse o major Brayner, com uma folha de papel na mão.“No Baependy estimam-se 270 mortos. Uma hora depois, foi a vez do Araraquara, também navio de passageiros, senhor ministro, 131 mortos. E depois, o Aníbal Benévolo, 154 pessoas a bordo, quatro sobreviventes. Três navios em oito horas,senhor ministro.E nos dois dias que se seguiram, o Itagiba, o Arará e o Jaciba. Todos com a bandeira brasileira pintada nos dois lados do casco. Pode haver sobreviventes agarrados a destroços, a Marinha está buscando, mas já contamos 607 mortos até o momento.” O ministro da Guerra, general Dutra, mexeu sem saber o que fazer com os papéis sobre a mesa.“Capitão Marcos, o que a Inteligência tem a nos dizer?” O capitão Marcos, sentado numa poltrona a um canto da sala, sacudiu a cinza do cigarro no cinzeiro. “Senhor ministro, desde o princípio deste ano Hitler é dono de um território que vai do Círculo Ártico às praias do Mediterrâneo. Hoje ele é senhor da Noruega, da Dinamarca, Holanda, Bélgica, França, Luxemburgo, Iugoslávia, Grécia, Tchecoslováquia, Polônia, Ucrânia e pelo menos quase metade da Rússia. O adversário da vez são os Estados Unidos. Ele sabe que na prática nós somos aliados dos EstadosUnidos.” “Somos?”, interrompeu o ministro. “Senhor, Adolf Hitler tem grandes planos para o continente sul-americano, não esconde isso e, na minha opinião, vai atacar com tudo.”O major Brayner, de frente para a janela, olhando o mar, se voltou e disse:“Já está atacando, capitão”. O ministro da Guerra suspirou.“Mesmo que nos ataquem, como vocês dizem, o que podemos fazer? Se nós vamos comparar nossas forças com as da Alemanha é até humilhante. Temos uma costa de 8 mil quilômetros de comprimento, e vocês sabem quantos navios? Claro que sabem: dois encouraçados velhos comprados de segunda mão, dois cruzadores nas mesmas condições, um submarino, sete contratorpedeiros, dois navios hidrográficos, um navio-escola, e por aí vai. Tudo velho e obsoleto. 1,4 mil homens é o efetivo da nossa Marinha. É ridículo! Como vamos entrar em uma guerra? A Alemanha tem milhões de soldados bem preparados! E temos indústria para construir armamentos? Nada. Nada de nada. Essa é a realidade, senhores. Esse é o nosso país. Não temos o que fazer nessa guerra. Esqueçam essa guerra.” “Não temos como esquecer, senhor ministro”, disse o capitão Marcos, esmagando o cigarro no cinzeiro com gesto um tanto pedante, marca do seu estilo,“o povo não deixa”. O ministro tornou-se pálido num repente.“O povo não deixa?” “O povo está nas ruas protestando”, disse o capitão,“os estudantes organizam passeatas, os sindicatos estão tramando ações, os políticos...” O ministro interrompeu com um sussurro que foi crescendo:“Os políticos que se danem, os estudantes que se danem, os sindicatos que se danem. Não temos marinha, não temos aviação, não temos sequer infantaria. Me surpreende que vocês, dois dos mais inteligentes oficiais do meu gabinete, venham com essas insanidades. Guerra! Vamos fazer guerra com o quê? Com as mãos? Jogando pedras no maior exército da História de todos os tempos?”.



O capitão Marcos e o major Brayner tomavam cafezinho melancolicamente na cantina dos oficiais.“O pior é que ele tem razão”, dizia Brayner, “entrar nessa guerra é uma insanidade”.“Então qual é a alternativa, major? Assistir ao massacre de braços cruzados, botar a culpa nos americanos ou nos comunistas ou sei lá em quem?” “Estamos numa sinuca de bico, meu amigo”, disse o major. Sorriram com amargura, o capitão Marcos consultou o relógio de pulso,“Bem, preciso ir, vou interrogar um dos sobreviventes”. “Onde?” “Aqui. Foi encontrado boiando perto da praia, bem em frente ao quartel.” “Mas como? Os ataques foram no Nordeste.” “É isso que eu quero pôr em pratos limpos. O rapaz foi recolhido por uma patrulha costeira. Ele diz que veio dentro de um submarino.”



O capitão Marcos notou medo nos olhos do rapaz. Já conhecia a sombra nos olhos de quem sentava naquela cadeira, mas a expressão do rapaz denotava que ele tinha visto algo bem mais assustador do que a polícia secreta do Getúlio.“Bom dia, jovem, eu sou o capitão Marcos.Vamos conversar um pouquinho. Qual é seu nome?” “Pedro.” “Só Pedro?” “Pedro Diax.” “Você é de onde, Pedro Diax?” “De Imbituba.” “Imbituba, Santa Catarina?” “Sim, senhor.” “Então somos vizinhos. Eu sou gaúcho. De Porto Alegre.” “Sim, senhor.” “Você estava no Baependy, Pedro?” “Sim, senhor.” “Você fazia o quê no navio?” “Eu era garçom.” “Que idade você tem, Pedro?” “Vou fazer 17 na semana que vem.” “Você sabe, Pedro, que a maioria das pessoas que estavam no Baependy morreram?” “Sim, senhor, eu tinha um irmão a bordo, não sei se ele está vivo ou morto.” “Vamos ver isso para você, Pedro. Mas me diga uma coisa, como foi que você se salvou?” “Eu caí na água quando houve a explosão e me agarrei num pedaço de tábua.” “E depois?” “Apareceu o submarino e eles me jogaram uma boia. Me levaram lá para dentro.” “Quanto tempo você ficou lá dentro, Pedro?” “Não sei com certeza.” “Pelos nossos cálculos você ficou dois dias, o Baependy foi afundado diante de Maceió e você foi recolhido aqui no Rio de Janeiro. É importante, Pedro, que você nos conte tudo o que aconteceu lá dentro.” “Sim, senhor.” “Como vocês se comunicaram?” “Eles tinham um oficial que falava nossa língua.” “Falava bem?” “Mais ou menos, dava para entender.” “O que ele queria saber?” “Sobre mim, de onde eu era. Depois sobre o navio, sobre o Lloyd, quanto tempo eu trabalhava nele. Sobre o porto de Imbituba, quando eu falei que era de Imbituba. Me perguntou o que eu achava da Alemanha, eu disse que não sabia. Perguntou se eu conhecia algum alemão em Imbituba ou em algum outro lugar.” “E você conhece?” “Não, senhor, quer dizer, conhecer conheço, mas não são alemães de verdade, são brasileiros.” “Ele disse alguma coisa especial,mandou algum recado? “Ele disse que o povo alemão é nosso amigo, que nós não precisamos ter medo de nada, que nosso inimigo são os americanos.” “E você, o que disse?” “Eu não disse nada, mas fiquei pensando que ele era meio louco.” “Meio louco? Por que, Pedro?” “Tinham acabado de afundar nosso navio, matado todos os meus amigos e nem ligava para isso.”


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Leticia Wierzchowski fala sobre folhetim VOCÊ SABE DE ONDE EU VENHO na ZH

Muito bacana o texto da Leticia Wierzchowski hoje na ZH, sobre o folhetim VOCÊ SABE DE ONDE EU VENHO. Ficamos bem felizes!




Programa de sábado


Tabajara Ruas é, sem dúvida nenhuma, um dos maiores ficcionistas em atividade no nosso país. A sua rosa, vigorosa e ardente, não deixa nenhum leitor acomodado no sofá. Quem leu Amor de Pedro por João
Os Varões Assinalados ou Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez sabe muito bem sobre o que eu estou falando: um grande livro traz consigo inquietude e deslumbramento, deixa-nos faminto pela próxima página, faz com que o leitor leve para a cama os seus personagens, e sonhe com eles, sonhe com eles entre as cobertas, a cabeça no travesseiro; e sonhe com eles de olhos abertos no dia seguinte, afundado numa poltrona, no banco do ônibus, na sala de embarque do aeroporto lotado, na cadeira de praia à beira-mar. E se, às vezes, sinto com tristeza que a literatura moderna sofre de uma certa “anemia”, de uma fraqueza narrativa, de um vazio de grandes personagens, então eu penso num dos livros do Tabajara, rememoro alguma das suas frases certeiras, passeio pela agudeza da sua narrativa, e me alegro, e sossego a minha angústia, porque sim, ainda existem – e o Taba é um exemplo disso – autores que não têm medo do personagem, que jogam com ele, e dançam sua dança com a mesma majestade que o Al Pacino dançou Por una Cabeza naquela cena memorável de Perfume de Mulher. Porque o Tabajara é uma espécie de Al Pacino da literatura. 

Mas o Tabajara Ruas anda um pouco sumido dos livros. Faz uns dois anos, publicou O Detetive Sentimental. Tabajara também é cineasta, e me atrevo a dizer que a única coisa mais trabalhosa do que fazer um livro é fazer um filme. Então, com que alegria recebi a notícia de que o Tabajara Ruas começou a publicar um folhetim neste mesmo jornal que me acolhe quinzenalmente. Você Sabe de Onde Eu Venho, o novo folhetim do Tabajara Ruas, vai sair na Zero Hora todos os sábados. É uma história sobre a Segunda Guerra Mundial. Sobre o Brasil na Segunda Guerra Mundial. O primeiro capítulo já disse ao que veio... Recomendo aos meus parcos leitores que não percam essa joia. Que leiam, todos os sábados, o folhetim do Taba. Para o leitor desavisado, preciso lembrar que o último folhetim que ele escreveu foi Os Varões Assinalados. E não preciso dizer mais nada, hein? Salve, Tabajara Ruas!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Veja vídeo de Tabajara Ruas e Celito de Grandi falando sobre folhetins:

Primeiro Capítulo

O início desta emocionante saga você lê aqui.



Ataque no mar do Nordeste - Costa da Bahia, 15 de agosto de 1942.

Seu Antenor, o chef, consultou o relógio de pulso, 19 em ponto, lançou um olhar crítico para a pequena vela de cera azul fincada no centro do bolo sobre a mesa e ordenou: “Leva, Pedrinho”. O rapaz saiu como um raio por entre o pessoal da cozinha, desviou de dois garçons que vinham entrando e subiu em três saltos a escada que levava para o salão. Ainda ouviu a voz de seu Antenor (“Não vai derrubar o bolo, guri”), quando os acordes da orquestra chegaram até ele. Tocavam Carinhoso, e junto aos acordes vinha o burburinho do salão, aquele ruído de vozes de gente que tinha jantado e bebido com prazer e que agora sussurravam uns aos outros coisas mornas enquanto deslizavam pela pista de dança e a luz das lâmpadas amarelas caía sobre eles. Não podia ter outra temperatura o que os homens sussurravam com lábios úmidos rente às orelhas perfumadas das mulheres, pensa Pedrinho, equilibrando o bolo e olhando os casais dançando suavemente, parecendo flutuar na temperatura sensual, os corpos se roçando com delicadeza e trocando calor, o calor que dava esse desejo lânguido de sussurrar coisas mornas e que acompanhava o balanço
do Baependy ao som de Carinhoso.

Pedrinho passou perto da orquestra, percebeu o olhar guloso e cômico de seu Oscarito, o flautista, que lhe piscou o olho, e aproximou-se da mesa do capitão Silva. “Fósforo, fósforo”, sussurrou o capitão em voz áspera, e vários fósforos e isqueiros foram acesos e logo uma pequena chama crepitava na ponta da vela azul. Algumas palmas se ouviram, mas o capitão Silva levantou um braço, olhando para a orquestra. Com um gesto, o maestro encerrou bruscamente o Carinhoso, os casais pararam de dançar e olharam na direção da mesa do capitão, que batia com uma colherinha na sua taça de champanha. “Vamos fazer um brinde ao nosso imediato, senhor Antônio Diogo de Queiroz, que hoje cumpre 32 anos, 15 dos quais vividos como legítimo homem do mar.” Palmas e vivas, as taças foram erguidas, e os camaradas do imediato Queiroz disseram piadas e bateram nas suas costas e começaram a cantar Parabéns a Você no exato momento em que Harro Schacht, comandante do submarino alemão U-507, observando pelo periscópio o perfil iluminado do Baependy, ordenou, com leve tremor de excitação na voz, “Preparem os torpedos”.

O Baependy era um navio do Lloyd Brasileiro que fazia a linha costeira regular da empresa e tinha saído de Salvador às 7 da manhã, com destino a Recife. Estava prestes a atracar no seu primeiro porto de parada, Maceió. O navio tinha 4.801 toneladas de deslocamento, camarotes confortáveis para passageiros e certa imponência um tanto pesada, fruto de sua origem: fora fabricado na Alemanha. Era antigo troféu da I Guerra Mundial, herdado pelo Lloyd numa nebulosa questão diplomática decidida em favor do Brasil. Enquanto os amigos do imediato Queiroz entoavam o Parabéns a Você, o Baependy navegava a 20 milhas marítimas do farol do Rio Real e transportava 233 passageiros. Desses, a maior parte era de militares do Exército. Era o 7º Grupo de Artilharia, comandando pelo major Landerico de Albuquerque Lima, que conduzia seus comandados de Dorso a Recife, para exercícios de tiro. Os tripulantes do Baependy eram 73 homens, fora os 12 da orquestra, que nesse momento fazia menção de retomar a atividade. Pedrinho parou para olhar e seu coração deu um pulo: Maria Rita, vestido cor de rosa e grande orquídea no cabelo estava diante do microfone. A orquestra começou a tocar Besame Mucho, e o coração de Pedrinho se contorceu de algo que era bom e angustiante, quando sentiu um toque no ombro: “Vai fazer tua obrigação, guri”. Era o cabo Dico, seu irmão mais velho que lhe arrumara este emprego e que arrumara empregos para mais sete membros da família em diversos navios do Lloyd. Quando Pedrinho descia as escadas de volta à cozinha o comandante Harro Schacht, debruçado sobre o periscópio, ordenou fogo. O experiente Korvetkapitän sentiu no corpo o leve tremor do submarino quando os dois torpedos foram acionados. No fim da escada, no corredor que ligava à cozinha, Pedrinho viu pela escotilha a lua cheia surgindo no céu e associou-a à voz de Maria Rita, que começara a enfeitiçar o ar com as palavras do Besame Mucho quando percebeu a coisa brilhante que avançava em direção ao Baependy, alguns centímetros abaixo da superfície do mar. Golfinhos, pensou, mas sabia que esse pensamento era uma grande besteira, a coisa brilhante que avançava para eles não eram golfinhos nem nada parecido.

“Dico”, gritou com desespero, “Dico!” Foi arrebatado pela explosão e ensurdecido pelo estrondo pavoroso. Sentiu a roupa arrancada do corpo pela lufada queimante que corroeu sua pele e logo mergulhava na água morna do oceano e achou que estava bem, tudo ia ficar bem, afinal era o fim, pensou em Dico e em sua mãe, sentiu revolta e dor e pensou outra vez que era o fim, melhor se deixar levar para o fundo sem pensar em nada e de repente estava outra vez na superfície respirando com ânsia e desejando ferozmente viver e se agarrou a um pedaço de tábua que flutuava a sua frente, a tábua bateu em sua testa, deixando-o dolorido e humilhado, com vontade de gritar e de chorar. Por um instante se aquietou, achando estranha a quietude do mar, olhando os destroços flutuantes, ouvindo sons e vozes que não decifrava. Então o mar começou a se agitar bem perto, um ruído veio subindo do fundo, o pavor se apoderou dele quando a menos de dois metros começou a surgir a ponta de aço do submarino, quando a enorme máquina emergiu respingando água, brilhante e cinza, um monstro marinho insensível e poderoso. Numa súbita alucinação lembrou as baleias que via no inverno de sua infância em Imbituba, Santa Catarina. Mas aquilo não era uma baleia. Era um submarino e estava com o dorso todo acima da água. O garoto de 16 anos pôde ler as iniciais U-507 e, pintada no casco, viu a enorme e assustadora suástica. Uma tampa circular foi levantada e surgiram três marinheiros, armados de metralhadoras. Fizeram gestos para ele se aproximar. Um deles jogou uma boia salva-vidas presa a um cabo. Pedrinho vacilou, mas os homens gritavam sem parar e apontaram as metralhadoras. Pedrinho colocou o salva-vidas e se deixou rebocar. Ao ser içado, sentindo sob os pés o casco duro do monstro, percebeu que estava completamente nu. Foi empurrado escada abaixo.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Você sabe de onde eu venho

Leia a partir do próximo sábado 
uma história que poucos conhecem. 
Saiba como será aqui:


É noite de lua cheia sobre o Atlântico, na costa de Pernambuco, e a orquestra do Baependy, cargueiro do Lloyd Brasileiro, de 4.801 toneladas, toca Carinhoso no salão repleto de pares aos rodopios. Embalado pela música e pela visão da cantora Maria Rita, que se posiciona diante do microfone em frente à orquestra, o jovem Pedrinho, recrutado pelo irmão mais velho para o serviço de bordo, espia pela escotilha e percebe uma forma brilhante que se aproxima do navio, centímetros abaixo da superfície.

É 15 de agosto de 1942, e o Baependy estará em minutos no fundo do mar, na maior tragédia brasileira da II Guerra Mundial. O afundamento do cargueiro, a primeira de 33 embarcações de bandeira brasileira atingidas por torpedos de submarinos alemães, foi um dos fatores responsáveis pela entrada do Brasil na II Guerra Mundial. 

Esse episódio verídico, mas pouco conhecido, é o pano de fundo do primeiro capítulo do folhetim Você Sabe de Onde Eu Venho, que o escritor e diretor Tabajara Ruas publica em Zero Hora a partir do dia 14. Com 51 capítulos, a serem apresentados aos leitores todos os sábados ao longo deste ano, no Cultura, o folhetim acompanhará a trajetória de personagens fictícios e reais. A maior parte da ação transcorre durante a campanha da Itália, da qual o Brasil participou com os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Leia a seguir uma entrevista do autor sobre a obra:



Zero Hora – De onde vem o seu interesse pela história da FEB?
Tabajara Ruas – É quase um interesse da vida inteira. Eu sou de 1942, toda minha infância ouvi histórias da II Guerra contadas por meu pai, que trabalhava na Capitania dos Portos. Ele era prático do rio Uruguai e amava a Marinha. Boa parte da minha vida eu tive uma visão infantil e heroica da guerra. Depois, amadureci e pensei que essa guerra foi talvez o maior horror acontecido na história da Terra. Hoje, ainda perplexo, vou chegando à triste percepção de que os homens talvez gostem da guerra como de um brinquedo. Este folhetim é também uma tentativa de por em ordem essas ideias.

ZH – Seus personagens foram inspirados em figuras reais?
Tabajara – No folhetim haverá uma galeria de personagens reais e outra de personagens fictícios. Sem os personagens reais, famosos ou não, seria impossível escrever uma história verdadeira, sem a ficção seria impossível dar credibilidade ao real.

ZH – Escrever um folhetim é muito diferente de produzir um roteiro de cinema ou redigir um romance. O senhor pode resumir como é o seu processo de trabalho?
Tabajara – Um romance é um processo livre de criação, sem amarras e limites. A gente escreve quando quer, como quer e a narrativa vai ao sabor da invenção do escritor. Uma peça de teatro, um roteiro ou um folhetim obedecem procedimentos rígidos, submetidos a tempo e espaço. O folhetim terá 51 capítulos, com uma média de mil palavras por capítulo. Minha imaginação tem de se submeter a essas medidas. Mas não há o que lamentar. É um procedimento tão antigo e nobre quanto a própria literatura, desde os textos de Sófocles e Aristófanes na Grécia Antiga.

ZH – O senhor vive entre Porto Alegre e Florianópolis, onde, no ano passado, foi localizado um submarino alemão abatido pela aviação aliada. Episódios como esse serviram ou servem de inspiração?
Tabajara – A II Guerra está a todo momento aparecendo à nossa frente e, portanto, servindo de inspiração. Quando viajamos à Europa, em cada esquina de Paris, Roma ou Londres encontramos placas que informam que “aqui morreram em combate fulano e sicrano em defesa de nossa cidade”. No Brasil houve a Batalha do Litoral. Foram afundados mais de 30 navios brasileiros, de passageiros e de carga, por submarinos alemães. Um total de 957 mortos. Quando o país organizou sua Marinha e Aeronáutica para enfrentá-los, afundou 13 submarinos alemães e acabou com as operações dos nazistas no nosso litoral.

ZH – Passados quase 70 anos do final da II Guerra, muitos relatos ainda estão emergindo. Na sua opinião, o que falta contar? 
Tabajara – O maior enigma da guerra, para mim, continua sendo Adolf Hitler. Apesar das inúmeras e gigantescas biografias, é difícil entender como um maníaco com ideias toscas e desprezíveis, baseadas nos preconceitos mais baixos, pôde empolgar a nação de Goethe, Beethoven e Bach, e mais, quase toda a Europa, berço sofisticado da cultura ocidental e cristã. Quando os alemães romperam a Linha Maginot, Camus escreveu: o que tínhamos a opor-lhes? É claro que ele não se referia a armamentos, mas à moral e dignidade.

ZH – Um dos aspectos importantes da participação da FEB na campanha da Itália foi o contraste entre as relações raciais no interior da força brasileira e a segregação reinante no exército americano. Isso será abordado no folhetim? 
Tabajara – Sessenta anos atrás o Brasil já tinha algumas virtudes a oferecer ao mundo. Claro que havia racismo e preconceito no exército brasileiro, como de resto em toda a sociedade, mas havia a miscigenação, que é marca de nosso país. Os brasileiros lutaram incorporados ao exército americano. Os gringos aprenderam muito com o nosso convívio, e os brasileiros aprenderam muito com eles.

ZH – Qual foi a descoberta mais surpreendente do senhor na pesquisa preliminar para o folhetim?
Tabajara – Sem dúvida foi constatar o desconhecimento geral das pessoas sobre a participação do Brasil na II Guerra. Vencemos preconceitos, nosso profundo subdesenvolvimento, a ditadura de Vargas, as doenças crônicas, a falta de infraestrutura, o clima. Espero contar a história de maneira que os leitores tenham uma visão total da nossa aventura guerreira. Foi uma grande história de superação. A partir do capítulo 10 todos os personagens já estarão participando do folhetim e dando unidade à narrativa.

ZH – Tem expectativa de que esse folhetim possa ser vertido para o cinema?
Tabajara – É uma história muito longa e com muitos personagens para se transformar num filme. Leva mais jeito de série de TV. Mas estou pensando um roteiro, reunindo alguns episódios da trama, para fazer um filme com Leonardo Machado e Marcos Verza.

ZH – O senhor está trabalhando em outros projetos paralelamente ao folhetim?
Tabajara – Em fevereiro e março sairão dois livros novos. O segundo volume da trilogia infanto-juvenil Diogo e Diana, A Trilha da Lua Cheia, que estou escrevendo com Nei Duclós. E também um álbum de fotografias produzido por Pedro Longhi, Pátria Gaúcha. Faço o texto para o trabalho de 16 fotógrafos. É um álbum belíssimo. Meu filme Os Senhores da Guerra, baseado no romance de José Antônio Severo, terá a primeira parte finalizada em junho. A segunda será filmada ainda este ano. E ele acaba de me passar um magnífico roteiro chamado Santa Maria, sobre um dos episódios do romance não contemplados nas partes 1 e 2.

Ponto de mudança na história
Para o historiador Eric Hobsbawm, foi o ponto de divisão entre a Era da Catástrofe, marcada pela I Guerra Mundial e a ascensão do nazismo e do fascismo, e a Era de Ouro, na qual o mundo foi abençoado com três décadas de crescimento econômico ininterrupto. Para o escritor belgo-russo Victor Serge, foi a “meia noite no século”, o momento em que a barbárie se apoderou da Europa e ameaçou engolfar o mundo. Para o britânico J. G. Ballard, foi o “difícil casamento entre a razão e o pesadelo”. Ao se encerrar, a II Guerra Mundial legou à humanidade 50 a 70 milhões de mortos (entre os quais 13% da população da hoje extinta União Soviética), dezenas de países arrasados, o horror do Holocausto e do aniquilamento nuclear.

Foram apenas seis anos, mas aqueles que os viveram sempre se recordarão deles como uma prova definitiva de força e sobrevivência. Passados mais de 60 anos, a participação do Brasil na guerra ainda é tema de investigação e controvérsia. Quando a Alemanha invadiu a Polônia, em setembro de 1939, o regime de Getúlio Vargas se dividia entre simpatizantes do Eixo (os generais Pedro Aurélio de Góes Monteiro e Eurico Dutra) e dos aliados (Osvaldo Aranha), com a balança pendendo para os primeiros. Os comunistas, na ilegalidade, se abstinham de atacar Hitler em razão de um pacto de não-agressão germânico-soviético.

Em dois anos, esse sistema de forças tinha se invertido em favor dos aliados, e em junho de 1942, sob pressão americana, o Brasil declarou guerra à Alemanha. A decisão, que havia sido reivindicada mesmo pelos opositores de Vargas, acabou mudando também a história brasileira. Sem a II Guerra Mundial, não haveria parque siderúrgico nacional (o financiamento da criação da usina de Volta Redonda foi uma das condições da adesão de Vargas aos aliados) nem a Constituição de 1946, que marcou o fim da ordem autoritária inaugurada em 1930.

O Brasil, que havia participado da I Guerra Mundial apenas com observadores e enfermeiros, enviou uma força expedicionária de 25 mil homens à Itália. Gente tão diversa como o futuro marechal Cordeiro de Farias e a escritora Clarice Lispector, o economista Celso Furtado e o empresário Camilo, o pintor Carlos Scliar e o jogador de futebol Perácio. Teve 451 baixas fatais e, driblando as carências de equipamento e treinamento, se tornou a força combatente no Exterior mais reverenciada da história brasileira. A legenda da FEB é mantida viva por veteranos como o porto-alegrense Armando Veiga Marques, 90 anos, que recebeu a Cruz de Combate (condecoração por bravura em ação). – Perdi companheiros, mas participei de um acontecimento da história. Os brasileiros saíram da Itália respeitados – afirma o expedicionário. Você Sabe de Onde Eu Venho tomará emprestados da história os episódios que marcaram a participação da FEB na guerra. Não perca essa epopeia brasileira.