terça-feira, 27 de março de 2012

Décimo Primeiro Capítulo

O comandante em chefe


O general Mascarenhas de Moraes recebeu o envelope das mãos do mensageiro, em seu gabinete de comandante da Segunda Região Militar. Leu “Ministério da Guerra” embaixo do escudo. Examinou-o, preparando a antiga couraça que o protegia de surpresas. O telegrama era seco e direto como era Dutra. 25/H.1- Urgente - 9/VIII- 1943- Cifrado- Gen. Mascarenhas – São Paulo- Consulto prezado camarada se aceita comando de uma das Divisões que constituirão corpo expedicionário. Impõe-se resposta urgente porque, caso afirmativo, fará estágio Estados Unidos. – Gen. Eurico Dutra – Ministro da Guerra. Então era isso. Agora que todos os bonitões tinham recusado os convites, agora que os fanfarrões tinham alegado as desculpas mais risíveis, se voltavam para ele, o patinho feio, o velho, o obscuro general que não falava alto nem se desmanchava em mesuras nos salões de Getúlio. Pensou em Liliana. Se aceitasse, ficaria afastado de Liliana durante muito tempo. João Batista Mascarenhas de Moraes tinha pouco mais de metro e meio de altura e faria 61 anos de idade no próximo ano, mas se havia alguma coisa no mundo de que se orgulhava, profunda e completamente, era de ser um soldado. Talvez não fosse grande coisa, mas ser um soldado dera sentido a sua existência e ele tinha bem amadurecida a exata compreensão disso. Redigiu a resposta de próprio punho, procurando ignorar o júbilo que o acossava como a uma fraqueza nefasta. Passou a nota para seu secretário: Gen. Dutra – Rio – Urgentíssimo – De São Paulo – 0.40.10.VIII.1943, 17,15 hs. 345 – Muito honrado e com satisfação respondo afirmativamente consulta V. Excia. acaba fazer-me em rádio 25/H. Gen. Mascarenhas de Moraes – Cmt 2º RM. No arrastado e nervoso segundo semestre de 1943 os preparativos para organizar a FEB encontravam tantos obstáculos na máquina burocrática da ditadura de Vargas que pareciam irreais. Entretanto, a realidade era mais veloz e desencontrada que os boatos e as fofocas que inundavam o país. Os acontecimentos na Europa se precipitavam e anunciavam dias de mais fúria, perplexidade e horror. A guerra começava a mudar seu curso. A poderosa máquina de destruição alemã dava os primeiros sinais de vulnerabilidade. Os Aliados já planejavam a preparação das medidas para tomar a iniciativa e finalmente atacar o poderoso exército que se julgava inatacável. Para isso, qualquer ajuda seria valiosa, mesmo de um país pobre, sem presença política internacional e seguramente sem a infra estrutura necessária para participar de um conflito dessa natureza. No avião para o Rio, Mascarenhas meditava nessas coisas e percebia com certo humor semelhanças de sua pessoa com o país: obscuro, pobre, lutando para ser ouvido. Sua vida não fora nada fácil. Aos 14 anos saiu de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, para Porto Alegre, sozinho, praticamente sem um centavo no bolso. Trabalhou de dia como caixa de um armazém e estudou à noite. Conseguiu vaga na Escola Preparatória e Tática de Rio Pardo, no interior do Rio Grande, fronteira com a Argentina, onde tinha garantidas três refeições diárias e a rude camaradagem de seus colegas. Não era o aluno mais brilhante, nem se destacava nos esportes, mas dura e silenciosamente ia vencendo as etapas, até que passou nos exames para a Escola Militar do Brasil, conhecida como Escola da Praia Vermelha, no Rio. Tornou-se oficial do exército brasileiro. Tinha orgulho de si mesmo e dos valores que aprendera na vida. Na revolução de 30 foi leal ao presidente deposto Washington Luiz e por isso foi preso pelos rebeldes liderados por Getúlio. Agora ia ter uma conversa em particular com o próprio, o estranho ditador, amado e odiado, cordial e perverso. Dutra o esperava na antessala do gabinete. “O presidente quer falar a sós contigo, Mascarenhas, mas vamos entrar juntos, depois eu saio”. Achou curiosa aquela cerimônia toda, mas não teve muito tempo para tentar se acostumar com o clima de poder e pompa que imperava no palácio do Catete. Em breve estava a sós com Getúlio, seu sorriso, seus pequenos olhos brilhantes, seu terno bem cortado. “Essa expedição de guerra não é um capricho, general. Será uma missão de alto nível, de extrema complexidade, e não quero me meter a sabichão em assuntos militares, mas acho que será a empreitada mais difícil em toda a história de nossas Forças Armadas”. “Assim me parece, presidente”. “O que vou lhe dizer por enquanto é estritamente confidencial, mas eu confio no senhor, totalmente, sem restrições, e olhe que, 10 anos atrás, em 1932, o senhor foi preso pela segunda vez, por apoiar uma revolta militar e civil contra mim.” “Fiquei com a legalidade, presidente, como me cabia.” “O senhor conspirou contra mim.” “Não tenho esse hábito, presidente. Não sou conspirador. Existem sob suas ordens homens melhores do que eu nessa prática.” “É verdade, sei disso, por isso o que desejo do senhor não são suas qualidades de conspirador, desejo para esta missão essa sua firmeza de gaúcho e de homem de pequena estatura.” A máscara habitualmente impassível de Mascarenhas se sobressaltou. Getúlio percebeu e soltou sua famosa gargalhada, súbita e estrondosa, que assustava e maravilhava as pessoas. “Me perdoe a intimidade, general, mas nós, baixinhos, nos entendemos”. Estendeu-lhe um charuto. “Obrigado, presidente, não fumo.” “Tinha esquecido. Então vou pedir que preparem um mate pra nós. Acho que temos muito para prosear, porque, general, vou lhe dizer: quero que o senhor seja o comandante em chefe da expedição.” Examinou o impassível rosto enrugado de Mascarenhas, já recomposto da súbita intimidade que manifestara. “A honra é minha, presidente.” “Vou lhe dizer o que penso antes de chamar o Dutra para nossa conversa. Eu lhe garanto uma coisa, João Batista: essa é a pior e mais difícil incumbência que eu já dei para alguém”. “Sim, senhor.” “Vai ser uma missão longe da pátria, sob um comando estrangeiro e, possivelmente e, mais ainda, com toda certeza, arrogante e autoritário, e o senhor vai receber as tarefas mais duras e até mesmo as irrealizáveis e vai sentir a inveja e o ciúme e a traição rondando por todos os lados. Lá, seja onde for esse lá, vai conhecer uma coisa que eu conheço muito bem, a solidão. O senhor vai se sentir só, meu general, como nenhuma criatura já se sentiu na face da terra”.

Próximo capítulo: Três Senhores da Guerra

sábado, 17 de março de 2012

Décimo Capítulo


A geografia sagrada


“Boa noite, herr Blücher”, disse Marcos, parando o carro ao lado da calçada. Erhardt Blücher entrou rapidamente. “Boa noite, capitão, que prazer vê-lo justamente nesta noite.” Marcos engrenou a marcha, e o carro começou a avançar pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana. “Justamente? Que tem esta noite de tão importante?” “Além de nossos pequenos negócios se aproximando de um fim harmônico e previsível, muitas outras coisas estão acontecendo, capitão, a História mudando, o Grande Aniversário acontecendo, e um presente guerreiro está sendo gestado.” “Grande aniversário? De quem?” “Posso perdoá-lo por esse lapso, capitão, mas hoje, 20 de abril, é o aniversário do Chefe, todos devemos comemorar.” “Desculpe, herr Blücher, mas minha agenda não é tão completa assim.” “Depois que eu lhe mostrar os papéis que trago comigo, capitão, quem sabe poderemos erguer um brinde ao Führer, no Espaço Imperial do Copacabana.” “Tem os papéis aí?” “Claro, podemos estacionar num local discreto da avenida?” Marcos estacionou diante do mar, Blücher abriu a pasta e tirou vários papéis dobrados. “São planos originais, capitão, e devem ser estudados com muito sigilo. Como o senhor deve saber, dois anos atrás, precisamente no dia 20 de janeiro  de 1941, o coronel Heydrich, assistente de Himmler, apresentou, no castelo de Wannsee, para 15 altos oficiais do partido, o projeto de uma solução final para a questão judaica.” “Sim, sim.” “Sei que o senhor sabe, embora isso seja altamente secreto; foi apresentado na reunião um elaborado esquema para a eliminação de 11 milhões de judeus, base para a criação da Sexta Raiz Racial.” “Sim, sim.” “Pesquisas recomendaram o uso do gás como o meio mais eficiente e barato, a indústria alemã se beneficiou com excelentes contratos com o governo, como espero o mesmo aconteça conosco; houve uma concorrência, e os vencedores foram Topf e Cia, de Erfurt, que apresentaram um crematório de alta capacidade, que poderia queimar 2.000 corpos a cada 12 horas, aqui está a planta; como o senhor pode ver, é de simples execução, mas aí vem o detalhe criativo: a Topf ganhou o contrato porque idealizou uma maneira de economizar combustível.” “É? Como foi isso?” “Gordura humana. Matéria prima não faltava. Não é genial?” Marcos passou a mão lentamente na testa. Havia uma palmeira na frente deles, e a brisa do mar agitava suas palmas. “A Armamentos Alemães Inc. ganhou o contrato para a fabricação das câmaras de gás, e o gás, aqui está o nome dele, Zyclon-B, foi fornecido pela German Vermin-Combating Corporation. Nossa célula em Santa Cruz tem a fórmula; e se me permite, fiz mais um modesto estudo que quero passar para suas mãos, um mapa das grandes linhas geométricas que unirão as unidades de produção através do país, de maneira a harmonizá-las com as sutis correntes de energia que passam acima e abaixo da superfície, um estudo de geomancia, que delimita a geografia sagrada de nossos empreendimentos.” Blücher estendeu com as duas mãos gordinhas a folha de papel dobrado, Marcos a apanhou e guardou-a no bolso. Pensou: às 11 preciso estar no Cassino da Urca, assistir ao show do Dick Farney, a Dulce adora o Dick Farney. O trânsito fluía ronronando suavemente nas costas deles. Marcos observou uma gota de suor se formando na testa de Blücher. “O senhor conhece o Dick Farney?” O rosto de Blücher se mostrou preocupado. “Não, quem é ele?” “Um pianista.” Percebeu a dúvida no olhar do gordo. “Não tem importância; que presente guerreiro é
esse que mencionou, herr Blücher?” “O senhor soube dos acontecimentos de Varsóvia, o levante no gueto judeu comandado pelo tal de Mordechai? Isso já se arrasta há semanas.” “Vi um telegrama hoje, lá no escritório”. “Pois é, o presente para o Führer será o total esmagamento do levante, o brigadeiro Stroop anunciou que comandará pessoalmente a invasão do gueto (e Erhardt Blücher consultou o relógio) para esta noite. Já deve estar acontecendo, lá é madrugada. Vão bombardear e incendiar tudo, não vai sobrar pedra sobre pedra! Esse será o presente.” “O senhor não acha um desperdício de munição e energia, considerando que a Alemanha começa a enfrentar dificuldades cada vez maiores na guerra? Afinal, em fevereiro os russos romperam o cerco de Leningrado, e, ao que parece...” “Meu rapaz, permita que o chame assim devido a nossa diferença de idades, é preciso entender que a guerra é apenas um meio, não um fim em si mesmo; acabar com os judeus é mais importante que a própria guerra, é o começo de uma Nova Era Racial; mesmo que a Alemanha perca esta guerra, a prioridade é a higienização do planeta, base para nosso destino de forjar uma nova raça, uma forma superior de existência; acima das religiões e da moral burguesa, o novo homem impulsionará as fronteiras de uma civilização baseada numa tecnologia infinitamente mais sofisticada do que as técnicas conhecidas no presente.” Marcos tocou no bolso do paletó de linho, sentiu o contato do papel dobrado: “Tecnologia como a destes fornos crematórios?” Blücher sorriu, deu um tapinha na coxa de Marcos: “Caro capitão, nosso projeto vai transcender a condição humana, vamos ganhar um poder ilimitado sobre o universo e vencer a morte, vamos nos tornar deuses”. “É uma meta ambiciosa, herr Blücher.” “Mais que ambiciosa, é científica; neste momento os tanques estão entrando no gueto; se eu fechar os olhos, posso vê-los; meu rapaz, em 1923, num discurso proferido em Colônia ao qual eu tive a honra de assistir, nosso então futuro Führer previu com lucidez sua meta, nossa meta, dizendo em alto e bom som que a libertação exige mais do que economia política; mais do que suor; para nossa libertação precisamos de orgulho, vontade, desafio, ódio, ódio e mais ódio!” Marcos observou a gota de suor deslizando na testa ampla e rosada de Blücher e perguntou, com tal gentileza na voz que o surpreendeu mais do que o ato que sabia iria em segundos cometer: “Como é mesmo o nome desse judeu lá do gueto?” “Mordechai”. “Herr Blücher, em nome de Mordechai, feliz aniversário do Chefe.” E acertou o tiro de 9mm bem no centro da testa, onde a gota de suor descia.

Próximo capítulo: O comandante em chefe

sábado, 10 de março de 2012

Nono Capítulo


Pedrinho se alista na Infantaria

Pedro Diax voltou para Imbituba e para sua vidinha de antes de embarcado, ou seja, passava os dias vagando na praia, pescando de vez em quando e ajudando os pescadores a recolher suas redes e barcos, polindo lampiões e consertando tarrafas, redes e covos. Jogava futebol no Imbituba Football Club como ponta-direita, fazendo tabelas com Atílio, meia-direita, baixo, forte, gago e seu melhor amigo. Nos fins de semana, missa com a família, depois olhava o jogo de dominó dos mais velhos na pracinha, espiava de longe o baile nos fundos da igreja. O luto o impedia de dançar e de ir a festas, e ele sabia que seu isolamento não era uma mera formalidade social, um costume em honra aos mortos. Havia sofrido um impacto brutal em sua compreensão da vida e lutava amargamente para assimilar essa experiência. A todo momento se flagrava a lembrar de Rita Maria cantando com voz veludosa Besame Mucho, a brincar durante alguns segundos com a fantasia de tirar aquele vestido cor de rosa de cima do corpo pequeno e quente da cantora, e que nem tivera tempo de sentir remorso sobre o fato de que ela era a garota do seu irmão Dico, quando foi arrebatado pela vaga queimante e inesperada. Nada no mundo podia sugerir que aquilo pudesse acontecer. Havia, claro, conversas sobre a guerra, e murmú- rios dos marinheiros no bar sobre submarinos, mas tudo isso era tão distante, tão em outras terras, outros mundos. E de repente estava na água revolta, sem fôlego, vendo tudo arder e gritar e se contorcer. Nesses dias sombrios passava longas horas sentado num cômoro numa enseada de Imbituba, olhando a dança das baleias ao longe. Foi quando pensou, pela primeira vez com horror, que seus companheiros de toda a vida que se aproximavam dos grandes animais para arpoá-las, tinham alguma semelhança com aquele submarino alemão que os afundou, chegando sorrateiro e sem aviso, matando sem motivo no momento em que se entregavam ao prazer e ao trabalho. Prometeu a si mesmo duas coisas: nunca caçaria baleias e iria se alistar para combater os nazistas de Hitler. Não queria pensar nisso como um ato de vingança por seu irmão. Era muito mais. Era uma atitude. Algo que fazia não apenas pela memória de seu irmão Dico, já que tantas vezes o padre Heitor o avisara contra o enorme pecado que era a vingança (“Deixa a vingança nas mãos de Deus, meu filho”), mas porque alguma coisa muito grave e muito grande estava em andamento contra seu país e contra tudo que ele amava, e essa coisa era brutal, e ele sabia muito bem: maligna. Ele sabia. Aqueles sujeitos engomadinhos do submarino sorriam para ele, ofereciam café e chocolate, chegaram a colocar um cobertor nas suas costas, mas tinham por sua dor uma indiferença que o assustava mais do que qualquer coisa. Iria se alistar na tal força expedicionária que estavam montando. Esperou muito tempo a prometida indenização pelo afundamento do Baependy, percebeu que era conversa fiada e papelada demais e juntou os trocados que tinha guardado no colchão, contou junto com Atílio o dinheiro de que dispunham, dava para comprar duas passagens para o Rio de Janeiro. Abraçou pai e mãe chorando e chegaram ao Rio dois dias depois, debaixo dum temporal. Trataram de arrumar quarto numa pensão perto da rodoviária e na manhã seguinte se informaram sobre o ônibus para Realengo/Vila Militar. Pelo jeito não havia muita gente querendo ir para a guerra, pois depois de explicar o que eles pretendiam a uma sentinela no portão do quartel, foram mandados para falar com o sargento mau humorado, que começou imediatamente a debochar de sua origem: catarinas! " Com vocês não vamos ganhar guerra nenhuma, mas vão passando, ô catarinas, vão passando, precisamos mesmo de bucha de canhão". Ambos tinham agora 18 anos, foram aprovados nos exames médicos e logo estavam experimentando os uniformes, os coturnos, os cinturões e se sentindo importantes. Pedro estava acostumado com a disciplina rígida dos navios mercantes, mas estranhou a maneira brutal como os praças eram tratados por sargentos e oficiais. A experiênciade bordo era um passeio de férias diante do dia a dia massacrante do quartel. Alvorada, ordem unida, exercícios, aprendizado das normas e dos manuais, exercícios de tiro e montagem de armas de fogo, um trabalho exaustivo com sargentos e oficiais em cima deles, exigindo e escarnecendo. Ficaram amigos de João Wogler, um alemão de Vacaria, no Rio Grande, baixo e forte como o Atílio, que não desdenhava de suas origens de catarinenses e nem de ninguém, mas era afoito e duro para assimilar uma ordem. Era o favorito dos sargentos para receber reprimendas e castigos de exemplo, até o dia em que encontrou o tenente De Líbero. Este tenente era o janota mais vaidoso e autoritário que jamais vestiu a farda de oficial do Exército, e, quando percebeu em Joãozinho Wogler o olhar de desafio, exultou intimamente.“Vais limpar o chão da cozinha com a língua para aprender a respeitar teus superiores, alemão batata.”João cuspiu no chão, rente à botina brilhante do tenente. O tenente empalideceu. “Sargento, sargento!” E, enquanto o alarmado sargento Onda se aproximava para saber a causa dos gritos do tenente: “Quero este alemão amarrado no poste lá na estrebaria, eu mesmo vou dar vinte chicotadas no lombo dele”. Ao desfechar a quarta chicotada, a que abriu profundo corte nas costas de João Wogler, os poucos soldados que assistiam começaram a protestar. Chegaram mais soldados, aumentaram os protestos e logo um tumulto começou a se espalhar na estrebaria. Talvez só então o tenente De Líbero tenha percebido a dimensão da sua fúria irracional: estava cercado por 40 soldados enfurecidos, que gritavam palavrões e o ameaçavam. O sargento Onda chamou mais três sargentos e alguns cabos e soldados veteranos, que a custo mantiveram os soldados afastados, enquanto o tenente se paralisava com o cinto na mão, pálido, já arrependido do seu ato.“Isso vai dar o que falar”, disse o sargento Onda entre dentes para o cabo, “vai sobrar para todos nós”.

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segunda-feira, 5 de março de 2012

Oitavo Capítulo

Dulce e Zoé entram na FEB



Os instrutores lá embaixo pareciam miniaturas. Cinco metros, meu Deus do Céu, se escorrego e caio quebro todos os ossos. Exagero? Não. Cinco metros de altura não é uma distância confortável para uma queda. Trêmula, Zoé se equilibrava sobre o pórtico de concreto, estreito, com malditos e exatos cinco metros de altura. Os instrutores lá embaixo pareciam, sim, miniaturas. Na frente de Zoé, Dulce avançava impávida, como se toda sua vida tivesse atravessado pórticos de concreto estreitos e com cinco metros de altura. De todos os exercícios com que as torturavam, fora levantar de madrugada, lutar com bastão, pular obstáculos, mais a Falsa Baiana, ridículo teste de equilíbrio sobre uma corda com outra sobre a cabeça para segurar, e as corridas intermináveis ao redor do campo de treinamento da Fortaleza de São João, na Urca, de todos os exercícios o que dava pesadelos noturnos para Zoé era a travessia do pórtico. Era a primeira vez que o Exército tinha mulheres em seus quadros, e para estabelecer uma convivência mais harmoniosa foram necessários alguns ossos femininos partidos, constantes luxações e cansaço permanente. Para entrar no curso de enfermeiras, as duas tiveram que travar um duro combate com suas famílias. Tanto o empertigado general, pai de Zoé, quanto o polido advogado, pai de Dulce, deixaram de falar com as filhas, como crianças amuadas. O preço de suas vontades era caro, e as duas pagavam sem se queixar: moravam em Laranjeiras, em casa da tia de Zoé, e estagiavam das 8 até meio-dia no Hospital Central do Exército, em Benfica. Depois, saíam em disparada para pegar o bonde para as aulas teóricas no Ministério do Exército até as 3 da tarde, quando corriam mais uma vez para chegar no horário (16 em ponto, senhoras!) para as aulas de educação física na Fortaleza de São João. Mastigavam um sanduíche durante os deslocamentos, e passavam o tempo todo com fome. Zoé ficava boquiaberta quando, à noite, Dulce ainda tinha fôlego para ir ao Centro, assistir à reprise de ...E o Vento Levou no Cine Metro. O filme tem quatro horas de duração, berrava Zoé, mas tem Clark Gable, retrucava Dulce, quatro horas de Clark Gable. As duas garotas ainda estudavam inglês duas vezes por semana, à noite, com uma professora particular, e nos fins de semana circulavam com os primos e amigos pelos cassinos e bares da cidade, repletos de shows e espetáculos internacionais. O Rio de Janeiro se tornava uma cidade internacional. Milionários europeus fugindo do teatro da guerra compravam casas e apartamentos nos bairros nobres, homens de negócios desembarcavam no Galeão de olho na decisão de Getúlio sobre compra de armamentos, espiões de Hitler e de Mussolini arregimentavam aliados, a cidade fervia de intrigas e boatos, mais feliz do que nunca. Quem não estava de nenhuma maneira feliz eram as famílias das duas meninas. A todos horrorizava o fato de elas andarem o dia todo em convívio com soldados. O general pai de Zoé chegou a interpelar asperamente seu sobrinho, o capitão Marcos, quando soube que ele tinha intermediado algumas gestões para que elas ingressassem no curso de enfermeiras. Exigiu relatórios pormenorizados sobre as atividades da filha, deixando o capitão com um preocupante sentimento de culpa. Era legítimo o sentimento, porque o capitão Marcos andava sentindo uma atração cada dia mais irresistível pela delicada Dulce, a dos olhos azuis, de pele alva, agora com cor de mel pela constante exposição ao sol. Dulce achava o capitão Marcos romanticamente misterioso, além de que tinha um bigode que o deixava muito parecido ao Clark Gable. Marcos era bom estrategista e achou correto preservar sua retaguarda. Para isso convidou o herói da temporada, o tenente Torres, para as excursões noturnas pela noite do Rio com as duas garotas. O tenente Torres, todos o chamavam de Betinho, também considerava a jovem Zoé, miúda e elétrica, uma companhia adorável, e todos eles começaram a sair juntos nos fins de semana. Foi numa noite dessas, quando assistiam a um show de Dircinha Batista, que se aproximou da mesa deles a eletrizante Adelaide, “a jornalista mais fofoqueira do Rio”, sussurrou Betinho, tão cheia de sensualidade e calor que assustou as duas meninas. “Oi, gente, que surpresa, dois másculos oficiais com duas ingênuas beldades, soltos na noite pecaminosa.”. Deu uma gargalhada e disse: “Desculpem, meninas, me perdoem, eu sou assim mesmo, brinco com todo mundo, mesmo com quem não conheço, muito prazer Adelaide Scoraro”. As duas se deslumbraram, “Adelaide, a jornalista, a da coluna social?”. “Ela mesmo; tenente Torres, bravo piloto da pátria, hoje estou feliz.” “É mesmo, por quê? Que maldade fizeste?” “Fiz uma entrevista maravilhosa com o Adhemar Gonzaga, o dono da Cinédia, e ainda apresentei para ele a ideia de um musical, filmado aqui mesmo no Cassino da Urca, com o Colé e a Virgínia Lane, mais a Dircinha, com quem eu tomei o café da manhã às três da tarde.” E deu outra gargalhada, puxou Marcos para perto de si e murmurou com a piteira dourada entre dentes: “Tens visto nosso comum amigo, Herr Blücher?”. “Nunca mais o vi, desde aquele show a fantasia naquela mansão misteriosa.” Adelaide deu uma risadinha contida: “Posso marcar outro encontro”. E, voltando-se para as duas garotas: “Quer dizer então que vocês estão se preparando para ir para a guerra, que maravilha, escutaram a última, o famoso Dia D foi marcado para depois de amanhã, mas acho que é boato, me confirma isso, capitão Marcos?”. “Não posso confirmar, querida, o Churchill não me consultou... ainda.” Outra gargalhada espantosa, e Adelaide encarou Dulce e Zoé: “Sorte para vocês, meninas, quando forem para a guerra, seja lá onde for, aliás, vocês já sabem para onde vão? Onde é mesmo que fica essa guerra, Marcos? África, Ásia ou quem sabe Portofino? Querem saber mesmo quando vocês vão embarcar, meus amores, pois eu digo, tomem nota e depois me cobrem: será no Dia de São Nunca, ou quem sabe quando galinha criar dente, ou, melhor ainda”, e soprou com displicência a fumaça da piteira dourada no rosto delas, “quando cobra fumar”.

Próximo capítulo: Pedrinho se alista na Infantaria.