domingo, 22 de abril de 2012

Alguns homens a mais

15.

No segundo dia da viagem, Atílio descobriu a função das duplas de PM americanos musculosos que ficavam de prontidão na porta do dormitório. “S-s-se o na-navio f-for t-t-totorpedeado, eles nos fecham aqui dentro.” Atílio era o melhor ouvido do batalhão. Ficava sentado quieto num canto, olho parado, e nem o mais leve sussurro a 10 metros de distância passava despercebido. Porque assim como sua fala era truncada, sua inteligência era rápida e musculosa, capaz de acionar as mais diversas informações e organizá-las com precisão de matemático. “N-no-nosso alojamento fica cinco metros abaixo da li-li-linha d’água.” “Os torpedos batem direto onde nós estamos”, intrometeu-se uma voz na conversa, “abrem um rombo do tamanho de uma porteira e o compartimento se enche de água. Esta banheira vai ao fundo em cinco minutos.” Atílio, Pedrinho e o Alemão olharam um tanto surpresos para o praça que se intrometera na conversa deles, com forte sotaque gaúcho. “É por isso”, continuou o praça, “que botaram aqueles dois postes de vigia, para fechar a porta imediatamente.” “Mas, por quê?”, perguntou Pedrinho alarmado. “Porque, índio velho, se eles fecham as portas, a água não passa para o resto do navio, e eles ganham tempo pra dar o fora.” “E nós?” “Nós? Nós morremos afogados.” Pedrinho puxou a coberta para o queixo. Escutou o navio. Agora estava silencioso, flutuando no meio do oceano. Lembrava da primeira noite. Depois que Getúlio foi embora cercado por uma corte de homens de terno e de farda que distribuía sorrisos e afagos, depois que todos estavam instalados em seus catres, depois que as luzes tinham se apagado e uma sombra melancólica descia sobre os 5 mil homens inquietos e cansados, a voz do capitão, em inglês, invadiu o navio através dos altofalantes, seguida por uma voz em português, rápida, traduzindo. “Soldados brasileiros! Sois a força sul-americana que primeiro deixou seu continente para combater em ultramar, com destino ao teatro de guerra europeu, constituindo um novo exército de homens livres, que se vêm juntar a tantos outros na luta pela liberdade dos povos oprimidos...” Atílio ouviu perfeitamente o praça de sotaque gaúcho dar uma risadinha: “Homens livres? Esse gringo tá brincando com a gente”. Atílio se mexeu inquieto: “P-por que? Vovo- você não é um homem livre?”. O praça sorriu no escuro. Tinha oponente. “Boa pergunta, gago.” “N-nnão me chama de gago que eu não gosto.” “Tá bueno, desculpe, não te chamo mais de gago. Como é teu nome?” “A-a-atílio.” “Atílio, certo. O meu é Quevedo. Não existem homens livres.” “O quê?” “Não existem homens livres.” “... Quem poderá avaliar da suprema importância que podereis representar no campo de batalha?”, continuava o comandante. E sua voz rouca encerrou a mensagem, flutuando nas sombras: “...não será a primeira vez na História que a adição de alguns homens a mais, num determinado setor da luta, fizesse pender definitivamente para ele o fiel da balança e os louros da vitória”. “P-p por que você dd-diz isso?” “Gato escaldado tem medo de água fria. Tu vem de onde, che?” “Imbituba.” “Nunca ouvi falar. Tu sabe de onde eu venho?” “N-n-não sou adivinho.” “De Uruguaiana. Mas não é pra me exibir.” Alemão Wolper, no catre em cima, deu um suspiro acintoso e murmurou em tom suficiente para ouvirem ao redor. “Agora sim, vamos ganhar a guerra.” Quevedo deu uma risadinha: “De pleno acordo, companheiro”. Finalmente a bruma foi levantando, e Nápoles começou a aparecer. O US General Mann estava cercado de destroços retorcidos e queimados de navios, dezenas e dezenas de gigantescas embarcações transformadas em monstros disformes, meio submersos na água oleosa, fruto dos ataques da força aérea aliada na batalha pela posse do porto. Os pracinhas foram descendo a rampa, sacos às costas, olhando com perplexidade e medo para aquelas ruínas. Algo espantoso, algo enorme e terrível tinha acontecido ali. No porto, pequena multidão silenciosa e em farrapos os examinava com desconfiança descendo a rampa. Aqueles soldados não carregavam armamento, a cor de suas fardas era verde, na mesma tonalidade usada pelo exército alemão, e não tardou para que fossem confundidos com prisioneiros alemães. A hostilidade começou com gritos de longe, tedeschi!, em seguida alguns mais valentes se aproximaram e gritavam rente a eles. Eram em sua maioria sujos, barba por fazer, olhos no fundo e com expressões de nojo, rancor e fome, que assustou e espantou a fila de homens morenos, saco às costas, se equilibrando no estreito caminho de tábuas sobre a lama. Um deles cuspiu num pracinha. Depois outro. E outro. Uma pedrada voou de longe, batendo numa cabeça, que começou a sangrar. O sangue despertou a ira da pequena multidão que começou a despejar pedras com fúria cada vez maior sobre os pracinhas estupefatos. A intervenção dos PM americanos foi rápida e brutal, avançando contra os esfarrapados e os afastando com golpes de coronha. Um oficial americano, falando italiano perfeitamente, gritava bem alto que os recém-chegados eram “aliados, aliados do Brasil, que vieram lutar pela Itália contra Hitler!”. Quando a compreensão se fez, os apupos mudaram em aplausos, em seguida se ouviam gritos de “bravo, bravissimo brasiliani!”. Quando, horas depois, sentado na calçada junto com os outros soldados, em longa fila, costas apoiadas na parede destruída do armazém, Pedrinho ainda relembrava  o episódio e pensava como enquadrá-lo em seu entendimento, viu, na sua frente, a poucos metros, várias mulheres com crianças de colo, olhando para eles. Olhavam para eles buscando captar suas atenções até sentirem que eram vistas, e então começaram a mastigar. Nada tinham para colocar na boca, porém mastigavam e mastigavam, caladas, olhando fixo para os soldados. Aquilo foi  surpreendente, e eles a princípio acharam graça. Mas as mulheres os olhavam nos olhos e moviam as bocas, salivando, num ritual silencioso. Pedrinho se levantou e se afastou para trás do armazém, nauseado. Uma mulher o seguiu, colocou-se na frente dele olhando-o nos olhos, um olhar duro e sem tradução, a boca se movendo. Pedrinho afastou-se, a mulher o seguiu. Ele dava meia-volta, ela persistia, ela escorregou, quase caiu, equilibrando a criança em seus braços, Pedrinho afastou-se para o meio da lama e a mulher o seguiu, escorregando, buscando seu olhar, mastigando, mastigando, mastigando sem parar.



sábado, 14 de abril de 2012

Embarque para o desconhecido

DÉCIMO QUARTO CAPÍTULO


O major Brayner olhou demoradamente a rua silenciosa lá embaixo, pela janela do seu quarto. Só estavam ele e a mulher na casa, os empregados foram dispensados nesse dia. Formavam um casal sem filhos, e talvez por isso conviviam numa espécie de redoma de melancolia, ou talvez fosseapenas o caráter introspectivo do major. O carro chegou. Consultou o relógio, 1h30min. Apanhou o quepe, colocou-o na cabeça. Tivera que ser muito carinhoso para que o choro dela fosse silencioso e digno. Trocaram um beijo rápido, como se fosse uma despedida de poucas horas. “Vamos precisar de muita coragem, meu amor, nós dois.” Saiu e fechou a porta. O ordenança o esperava no carro, trocaram continência mas não falaram. O carro avançou pelas ruas desertas em direção ao porto. Tinha sido uma semana intensa. As notícias chegavam a toda hora, os boatos circulavam esencontrados, alguns afirmavam que o Dia D tinha sido acionado, que a invasão da Europa pelos Aliados tinha começado, que Hitler tinha sido morto num atentado. Era preciso muito sangue frio, era preciso examinar com calma cada uma dessas histórias, porque agora o que se aproximava realmente de sua vida era a partida para a guerra, e ele, Brayner, como chefe do Estado Maior da FEB, fora o oficial designado para a missão de coordenar o embarque do 1º Escalão. Quando o carro se aproximou do portão do cais, tornou a olhar o relógio. 2 horas emponto. Estava na hora de colocar os soldados no trem. E era o que acontecia, longe dali, na Vila Militar. “Acorda, vagabundo.” A mão pesada do sargento Onda quase derruba Pedro Diax do seu beliche. Pedrinho esfrega os olhos no susto do despertar e então se dá conta: “É hoje.” Sentou na cama e sentiu todo o corpo estremecer. “Puxa vida.” Não precisavam dizer nada, ele sabia. “É hoje. Não adianta choro nem reza.” 29 de junho, madrugada, escuridão. Sob o comando dogeneral Zenóbio da Costa, espremidos nos vagões da Central do Brasil, as aberturas completamente lacradas, sete composições sucessivas seguem da Estação de Deodoro, na Vila Militar, para o cais do porto. Na quarta delas, apertados no segundo banco da direita, Pedro, Atílio e João Wogler bocejam. “Vamos embarcar”, disse o alemão, “estamos indo para a guerra”. O rancho tinha sido rápido, mal enfiaram na boca uma bolacha e engoliram o café preto. Estamos indo para a guerra, pensou Atílio, e percebeu que estava com dores no corpo, com sono, com fome, vontade de chorar. Vou para a guerra, pensou, sou gago, podia ser dispensado, podia ficar em casa comendo rapadura e indo aos bailes da igreja no fim de semana. Estou indo para a guerra, pensou Pedrinho. Posso ficar aleijado, posso ficar louco, posso morrer. O trem sacudia levando milhares de homens de 18 a 25 anos de Pernambuco, da Bahia, do Rio, do Amazonas, do Piauí e de todos os recantos do Brasil que pensavam “estou indo para a guerra, posso ficar aleijado ou louco ou morrer. A metade dos que estão dentro deste trem vão morrer. Talvez mais, talvez todos”. O alemão Wogler ressonava de boca aberta. “Vamos para a morte. Este trem está nos levando para a morte.” Não muito longe, no carro que as levava para o aeroporto, Dulce, Zoé e Virgínia apertadas no banco de trás, entrelaçavam seus dedos, olhavam a cidade do Rio de Janeiro mais bela do que nunca ir passando deserta e silenciosa, como se também estivesse adormecida. “Todos estão dormindo.” “O que?” “Todos estão dormindo.” “É claro, sua boba. Émadrugada.” “Nossa partida é secreta?” “Ai, Zoé, tu me dá nos nervos com essas perguntas. E secreta é uma palavra muito idiota.” “Pela conversa do major Ernestino é mais ou menos secreta.” “Ou é secreta ou não é secreta.” “Ontem eu perguntei para ele para onde a gente vai e sabe o que ele me disse?” “É melhor não me dizer, começo a conhecer o major Ernestino e não estou gostando.” “Vamos para a base de Natal, depois para Dacar, depois só Deus sabe.” “O Marcos disse pra a gente não confiar no major Ernestino.” “Eu não confio é no bonitão do capitão Marcos.” E as três deram risadas, o carro avançou um sinal vermelho na madrugada enquanto o capitão Marcos olhava a roleta girar. A mão de unhas pintadas da estupenda Adelaide acariciava as fichas sobre a mesa, ao fundo Dick Farney acariciava um piano. “Soubeste do triste fim do nosso amigo gordinho?” “Nosso, vírgula. Teu amigo gordinho”. “Eu marquei outro encontro teu com ele.” “É, mas ele não apareceu.” “Apareceu. Morto na praia.” “O Rio é uma cidade perigosa.” A roleta parou de girar. “Bem, querida, perdi meu último centavo. Hora de partir.” “É cedo, meu capitão. Não é tua hora habitual.” “É que hoje vou pegar um avião”, e o capitão Marcos deu seu sorriso mais sedutor. Adelaide estudou-o inquieta, desconfiada. “Um avião? Que beleza! E para onde, pode-se saber?” “Ah, minha querida, para um lugar maravilhoso, mas vou te deixar com esse gostinho na memória, pra tu ficar saboreando enquanto eu vou saindo. Tchauzinho!” E o capitão Marcos se afastou entre os homens de terno de linho branco e as mulheres de vestidos com profundos decotes, a melodia do jazz de Dick em seus ouvidos, no momento exato em que o trem do 1º Escalão chegava no porto. Os 5 mil soldados ficaram fechados ali dentro quase duas horas, com as cortinas cerradas, até que um oficial abriu a porta e comandou: “Em fila, emordem e em silêncio!” Era um navio gigantesco, parado ali com sua enorme porta aberta, onde a fila de homens ia sumindo. Pedrinho, Atílio e João Wogler caminharam pela rampa carregando seus sacos, aproximando-se da boca escancarada, leram num costado o nome do monstro:”US Gen. Mann”. Ficariam amontoados na barriga dele durante 15 dias, à mercê dos submarinos e dos aviões da Alemanha, pensando em mutilação, loucura e morte, viajando através do mar para um lugar do mundo que nenhum deles sabia qual era.

terça-feira, 10 de abril de 2012

O Dia D está próximo


Décimo Terceiro Capítulo

No segundo domingo de maio de 1944, os praças Pedrinho, Atílio e João Wogler, que agora todos
chamavam de Alemão, saíram cedo do quartel e pegaram o ônibus para Laranjeiras. Estavam dominados por um entusiasmo quase infantil: iriam assistir Fluminense x Botafogo pelo Campeonato Carioca. Era a primeira vez que os três assistiriam a um clássico carioca. As equipes do Rio de Janeiro dominavam as imaginações jovens e tomavam um espaço enorme do afeto nos corações pelo Brasil todo. Os nomes dos craques cariocas retumbavam como tambores nas árduas discussões sobre futebol no quartel: Heleno de Freitas, Perácio, Barbosa, Biguá eram emblemas de uma alegria e glória que eles não sabiam definir. Em Imbituba e nas alturas geladas de Vacaria, ouvir o Campeonato Carioca pelo rádio era um rito que confortava a alma e acalmava a imaginação. O Alemão Wogler era um dissidente cauteloso nessas discussões, pois o futebol gaúcho era forte e competitivo, e ele alternava as escutas do campeonato carioca com o gaúcho. Mas seu clube, o Grêmio, não passava por um bom momento há muitas temporadas. O Internacional montara uma máquina de jogar futebol, arrogantemente chamada de Rolo Compressor, e isso, para o Alemão, era uma triste verdade: o Colorado simplesmente esmagava quem passava em seu caminho. Seus craques tinham nomes que ultrapassavam as fronteiras do Estado e despertavam a cobiça dos grandes do Rio, de São Paulo e de Buenos Aires. Carlitos, Tesourinha, Nena, Ruy e Villalba eram mais do que nomes e apelidos, se revestiam da aura mítica dos invencíveis. O Alemão não queria saber disso, e seus amigos tampouco. Numa parada da viagem, entraram no ônibus três moças bonitas e queimadas de sol, com uniformes de enfermeiras do Exército. Os três se inquietaram e trocaram olhares coniventes, mas sem muito entusiasmo. “Vamos convidar elas para o jogo”, sussurrou o Alemão, que era o mais despachado. As três enfermeiras passaram altivas, indiferentes, e os pracinhas sentiram sua condição de provincianos na grande cidade. Era verdade, e eles sabiam. Adoravam, aos domingos e dias de folga, pegar um ônibus e circular pela cidade, olhando-a com seus olhos juvenis, fáceis ao espanto. Sabiam intuitivamente que entre eles e aquelas garotas havia um áspero e grosso muro social que os separava. Dulce e Zoé estavam mais bonitas do que nunca, e sua amiga Virginia tinha olhos verdes e os cabelos louros: sua mãe era inglesa, casada com um engenheiro carioca. Conheceram-se num Carnaval, e a turista pálida e frágil ficou para sempre na cidade. As três moças não olharam nem repararam nos três pracinhas. Seu destino era Copacabana, passear na beira-mar, dar uma recorrida no Cassino e voltar para casa. Na segunda-feira bem cedo, recomeçaria a estafante rotina de treinamento. Perto das Laranjeiras perceberam a agitação das torcidas chegando para o jogo, e os três pracinhas se levantaram precipitadamente. O casquete de Pedrinho caiu e quando ele foi levantá-lo uma mão branca, pequena, apanhou-o antes e o estendeu. Os olhos de Pedrinho encontraram os de Virginia. Ele corou, sem remédio. Murmurou “Obrigado”, e enquanto era arrastado por Atílio e Alemão se perguntava se ela também tinha sorrido para ele ou fora apenas impressão. Já na calçada, olhou com ínfima esperança. Ela o olhava! Deu um adeusinho, e o ônibus se foi no meio do trânsito e da multidão que chegava. Pedrinho ajeitou o casquete com cuidado, pensativo, no exato momento em que o major Brayner ajeitava seu quepe, entrando no elevador do Ministério da Guerra. Outro oficial acelerava o passo para tomar o elevador, e Brayner segurou a porta para esperá-lo. Reconheceu o tenente-coronel Castello Branco, o Humberto de Alencar, considerado intelectual e influente em algumas áreas do Exército. Trocaram continências, mas não falaram. Quando foram apertar o botão de comando os dedos de ambos procuraram o número 10. Curioso. No 10º andar do Ministério ficava o Gabinete Secreto do Ministro da Guerra, e para ir até lá só com convite especial. Subiram em delicado silêncio até o 10º e quando saíram do elevador encontraram, refestelados nas poltronas do saguão, o general Mascarenhas de Moraes, o coronel Henrique Lott e o tenente-coronel Amaury Kruel. Todos tinham recebido convites sigilosos e individuais. Não havia justificativa ou definição de finalidade. E nenhum sabia que o outro tinha sido convidado. Logo juntou-se a eles o general americano Hayes Kröner, adido militar dos Estados Unidos, acompanhado de dois tenentes-coronéis também americanos. A porta do gabinete se abriu, e o coronel José Bina Machado, chefe de gabinete do general Dutra, convidou-os a entrar. Dutra cumprimentou um por um e passou para seu lugar na grande mesa no centro da sala. “Senhores”, começou, “agradeço a presença e a pontualidade de todos. Este é um encontro totalmente sigiloso, como podem deduzir, e sem mais delongas vou passar a palavra ao general Kröner, com quem deliberei sobre convocar esta reunião”. Brayner mentalmente classificou o americano de “enigmático e autoritário”. Era muito magro, e não conseguia esconder certo ar superior, que colocou um invisível e tênue mal-estar no ambiente. “Senhores, comunicados oficiais alemães desde ontem já anunciam ao mundo que o Brasil enviará tropas de seu Exército ao Teatro Europeu”, começou Hayes. “Esses comunicados avisam, ou melhor, ameaçam que nenhum combatente brasileiro tomará pé em terras da Europa. Ou seja, o barco que os transportar será afundado por seus submarinos. Quero dizer aos senhores que o governo dos Estados Unidos afirma o contrário.” Fez uma pausa (teatral, pensou Brayner), e olhou seus interlocutores, que sequer piscaram. “O governo dos Estados Unidos assume a responsabilidade e o risco de transportar as tropas brasileiras para qualquer lugar a que sejam destinadas. Mas, senhores, isso exige um grave compromisso de todos nós. E por isso, pedi ao senhor ministro da Guerra que nos reunisse aqui, no mais absoluto caráter sigiloso. Os oficiais que aqui se encontram, neste momento, não podem transmitir a quem quer que seja o que se vai debater e decidir. Nem mesmo as esposas poderão ouvir confidências sobre o que aqui for tratado. Se alguma desgraça acontecer, na partida ou na travessia do Atlântico, a responsabilidade ficará conosco, pela inconfidência de algum de nós. A preparação final ficará a cargo do Estado-Maior da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária.” Olhou para Brayner, que assentiu com a cabeça. “O navio que transportará o 1º Escalão é americano. Seu nome, onde se encontra, quando chegará, nada sabemos, por enquanto. Mas esse dia, posso afirmar, está próximo.”

terça-feira, 3 de abril de 2012

Décimo Segundo Capítulo

Três senhores da guerra


“O exército alemão já foi batido na União Soviética, disso não há mais dúvida, foram escorraçados da periferia de Stalingrado, estão refluindo para a Europa Central e Ocidental”, disse Mascarenhas. “No estágio em Washington percebi, várias vezes, membros do Alto Comando Americano expressarem a urgência da nossa presença como reforço imediato.” Mascarenhas falava como de habitual, pausadamente, olhando nos olhos seus dois interlocutores, os generais Cordeiro de Farias e Zenóbio da Costa. Ambos estavam sentados em poltronas diante dele, fumando. Zenóbio, seu tradicional e enorme havana perfumado, e Cordeiro, um rústico cigarro de palha, um palheiro dos nossos, como disse para Mascarenhas quando lhe ofereceu, sabendo que o outro recusaria. “Os americanos não me disseram, é claro, mas eu sentia isso claramente nas nossas conversas e nas aulas a que assisti. Eu tenho a convicção de que eles precisam desesperadamente de reforços, por menor que seja o contingente, por menos preparado que esteja. Eles precisam recompor o IV Corpo de Exército, que está reduzido à 6ª Divisão Blindada Sul-africana e algumas frações de tropa antiaérea americana, agindo como infantaria, vejam só que precariedade, com o rótulo de Task Force 45, sem qualquer eficiência ou combatividade. Eles precisam de gente para combater.” “Precisam é de carne para canhão”, disse Zenóbio, “e o que eu gostaria de saber é para onde pensam em nos mandar. Meu palpite é a Itália, eles já tomaram Nápoles e se preparam para avançar para o norte da península. A França vai ser invadida a partir da Inglaterra, disso não há dúvida, só resta saber quando será o famoso Dia D e em que parte da costa vai ser a invasão”. “Acho que você está certo, Zenóbio”, disse Mascarenhas, “não é por nada que o Rommel está montando uma linha de defesa impressionante na Normandia”. Cordeiro de Farias, levantou-se da poltrona e se dirigiu para o mapa da Europa preso no cavalete. Era o mais jovem dos três generais, tinha 42 anos, e aparentemente o que tinha mais experiência em ação de combate, fruto de sua participação nas várias revoluções brasileiras das últimas décadas, incluindo a marcha da Coluna Prestes. Esticou a jaqueta com um rápido estirão e apontou o dedo para um lugar no mapa. “A lenda do Afrikan Korps acabou. Os alemães foram batidos na África. O aclamado Rommel está comandando a construção da linha de defesa da Normandia, mas ele agora é um fantasma, uma imagem gasta daquele herói que os alemães idealizavam.” “Exatamente. E é ali que a guerra vai se decidir, na França e na Itália. A invasão da Europa pelos Aliados será por esses países”, disse Zenóbio. “O ataque terá que ser pelo Mediterrâneo e pelo Adriático, com os russos vindos do norte”, continuou Cordeiro, “os aliados vão tentar recuperar a França e a Itália em um intervalo pequeno de tempo. A Alemanha vai ficar encurralada. E nós, general Mascarenhas, nesse jogo de xadrez, onde é que nós entramos, no seu ponto de vista?”. “O Zenóbio disse que nós vamos ser bucha de canhão. É deprimente conjeturar que aliados pensem assim de nós, mas vamos ter que encarar isso como uma possibilidade concreta, sem idealismo tolo, sem ressentimento. Se querem saber, acho que vão nos mandar para onde haja necessidade de boi de piranha.” “Isso não interessa, essa é a guerra que nos coube. Graças a Deus vamos para uma guerra de verdade.” “Tem gente que pensa diferente”, e Cordeiro de Farias estendeu para Mascarenhas um jornal com uma matéria assinalada em vermelho. A manchete anunciava com estardalhaço a queda de Benito Mussolini, no dia 25 de julho de 1943, poucos dias antes do afundamento do U-199 pelos aviões da FAB. Cordeiro indicou com o dedo uma sessão assinada por Adelaide Scoraro. A deslumbrante Adelaide escrevia artigos publicados em vários jornais do país: “Se é verdade, como dizem por aí, que o destino da imaginária expedição do Brasil à guerra será a Itália, então é bom guardar os tamborins e fazer o desfile por aqui mesmo, pois se nossos galantes futuros heróis forem para a Itália será para fazer turismo”. “A quinta-coluna continua ativa e fazendo graça.” “Essa senhora está fazendo piada um tanto atrasada”, disse Mascarenhas. “As coisas se precipitaram, senhores, e eu não tenho clareza, ainda, para dizer onde ficamos no meio dessa poeira toda. Hoje chegou um telegrama dando conta de que um comando alemão libertou Mussolini da prisão e o levou para uma reunião em Berlim com Hitler. Parece um folhetim rocambolesco, mas foi assim. Vamos aguardar, senhores, vamos aguardar. Não podemos dar um passo em falso ou seremos esmagados pela imprensa, pela direita, pela esquerda, pelos americanos e pelos alemães.” “Sabem o que andam dizendo por aí? Sabem por que não embarcamos logo?”, perguntou Zenóbio. “Porque o comandante em chefe é De Moraes, o comandante da Infantaria é Da Costa, e o comandante da Artilharia não é de briga, pois é Cordeiro.” Zenóbio jogou a grande cabeça para trás e deu a gargalhada que fazia a delícia de seus comandados, quando estava de bom humor. “Essa é boa, essa é muito boa, mas a melhor mesmo...” Mascarenhas fez um ruído discreto com a garganta, deu um de seus raros sorrisos, como pedindo desculpas: “Com licença, Zenóbio, mas preciso acrescentar um pequeno detalhe para encerrarmos a reunião, e é justo a respeito dessa demora e dos entraves ao nosso trabalho que enfrentamos no dia a dia. A natureza da nossa missão é extremamente simples: junto com os Aliados, ajudar a derrotar o nazismo. O lado complexo, e delicado, e mesmo antagônico dessa premissa é que, e isso é uma ideia que circula em todas as rodas pensantes do país, é que derrubando o nazismo estaremos também derrubando o governo que nos manda para o teatro de operações. Todos nós sabemos disso. É um dos motivos de tanto entrave para nossa preparação e para nossa partida. Portanto, senhores, seja lá o que cada um de nós pense a respeito desse assunto, e todos somos livres para pensarmos o que bem entendermos, vamos deixar a política de lado, e como muito bem disse o Zenóbio, vamos cuidar só da guerra que nos coube lutar”.

Próximo capítulo: o Dia D está próximo