sábado, 25 de fevereiro de 2012

Sétimo Capítulo

A primeira vitória



O Catalina mergulhou na direção do submarino com todas as metralhadoras disparando. Torres procurava conter a exaltação que o tomava pois percebeu os demais membros da tripulação contagiados pela vertigem do combate. Gritavam e esbravejavam como se fossem para um corpo a corpo com o inimigo. O aspirante aviador Alberto Martins Torres, o Betinho, ano e meio atrás era um jovem bronzeado pelo sol da praia de Copacabana e morador da mítica Rua Montenegro, mas também um universitário de Direito preocupado com o futuro, quando os jornais mostravam as desoladoras fotos dos náufragos dos navios torpedeados pelos submarinos alemães, chegando a terra feridos, mutilados, enrolados em cobertores e tendo nos olhos incredulidade e horror. Aquilo naturalmente indignou seu jovem coração, e logo estava participando de marchas em meio à multidão de estudantes rumo ao Catete a fim de pressionar Getúlio, gritando “abaixo o nazismo”. 

A rotina de marchar pelas ruas, gritar palavras de ordem e pintar cartazes e faixas com os colegas do diretório acadêmico não era mais o bastante. Tinha chegado para o jovem Torres o momento de escolher o seu destino. Caminhando no centro do Rio, com uma pasta carregada de processos da empresa de advogados onde fazia estágio, encontrou dois companheiros de praia vestidos de terno e gravata. Após as perguntas de praxe, mostraram num papel mimeografado para onde iam. “Ministério da Aeronáutica, fica aqui pertinho, ó, na Rua México, 74.” Alistou-se, foi selecionado e em muito menos tempo do que imaginava estava a bordo de um navio indo para os Estados Unidos aprender a pilotar aviões. Era bom em idiomas, pois seu pai era diplomata e ele já vivera nos Estados Unidos, na Alemanha e na Turquia. Na travessia de navio para a América do Norte fazia plantão no cesto da gávea. A missão era observar navios ou aviões ou submarinos inimigos, coisa que lhe parecia brincadeira boba daqueles americanos, afinal nunca apareceu nenhum inimigo nem foram atacados por ninguém. O curso foi mais excitante do que imaginou e sentiu-se realizado e familiar com os aviões, seu inglês ficou perfeito e ainda fez uma extensão de aprimoramento de combate numa base americana no Panamá, junto com mais 28 pilotos aprendizes como ele. A juventude estava lhe oferecendo seu doce sumo, a aventura, e ele a recebia agradecido e cheio de energia. Foi escolhido para trazer ao Brasil aviões negociados pelo governo Vargas com os americanos. Participou de um épico voo de 150 aeronaves, de San Antonio, no Texas, até diversos aeroportos na costa brasileira, realizando 25 escalas para abastecer. Familiarizaram-se com as novas máquinas, treinaram intensamente na costa e agora aí estava ele, a 20 milhas do Rio de Janeiro, de sua praia, de seu apartamento, mergulhando na direção de um submarino alemão e atirando com todas as metralhadoras ao mesmo tempo, para aumentar o efeito moral. O ataque foi pelo lado esquerdo do submarino e quando passou sobre ele largou três cargas de profundidade Mark 44. A regulagem delas estava marcada para um alcance de 12 metros, que é o máximo que o submarino desceria caso estivesse iniciando o mergulho, e isso significava que ele seria atingido de qualquer jeito. E foi. O jovem Torres viu como ele se movia abruptamente e viu grandes ondas se elevarem a seu redor. “Está ferido, o monstro”, gritou, e os urras da tripulação embalaram o novo mergulho. Agora o ataque seria pela direita, e, quando se aproximaram, viram que o U-199 começava a afundar. Largaram as três bombas, viram os jorros de água e a maneira desesperada com que o submarino balançou e viram homens correndo em sua superfície e jogando-se na água. O Catalina mergulhou mais uma vez pleno de fúria e jogou uma quarta bomba como se fosse um tiro de misericórdia. Depois subiu bem alto, fez mais uma curva e desceu sobre ele. Jogaram duas balsas de borracha para os sobreviventes. Os alemães amarraram uma balsa à outra e começaram a remar. Para se comunicar com os comboios dos quais faziam a vigilância, os aviões usavam sinais através da lâmpada Aidis. Torres falava bem o alemão, graças aos seus anos de estudante em Munique. Comunicou aos náufragos através da lâmpada que não precisavam remar, bastava esperar que um navio iria recolhê-los. Os atônitos e há pouco tempo orgulhosos tripulantes do gigante U-199 devem ter se perguntado que gente era essa, que ainda por cima sabia falar alemão fluentemente.

Nessa noite houve brindes e euforia na Base Aérea do Galeão, e depois Torres foi procurar seus amigos de praia num bar do Copacabana Palace. Sabia que queria ser visto e elogiado. O Rio estava em festa, e os boatos circulavam com velocidade. Viu o tenente Smith cercado de belas mulheres, passou ao largo e deu de frente com o capitão Marcos. Antigo colega nos cursos de inglês e francês que casualmente faziam juntos, ouvira histórias a respeito dele. Diziam que era homem da inteligência militar, portanto ligado à ditadura de Getúlio. Torres detestava essa estirpe de oficiais. “Ora, ora”, disse Marcos, “não é todo dia que a gente encontra um herói de verdade, dá cá um abraço. Vamos brindar ao grande feito, hoje o exército paga; viu o tenente Smith ali?” “Vi, ele está mais gabola do que eu, não quero concorrência.” Riram, conseguiram uma mesa, pediram bebidas. “Estão cada vez mais complicados os preparativos para montar um contingente para mandar para a guerra. Dá para sentir”, e Torres perguntou: “Quais as reais intenções de Getúlio, afinal, de que lado ele está”, e Marcos: “É certo que nem o próprio Getúlio sabe”. No meio de outra pergunta Torres calouse, pois duas jovens (belas e bronzeadas, anotou mentalmente) aproximaram-se da mesa. Ambos se puseram de pé, e Marcos um pouco solene, um pouco zombeteiro, apresentou-as. “Minha prima Zoé e sua melhor amiga, Dulce, flores agrestes do sertão do Nordeste; vocês acabam de chegar bem na hora, meninas, pois este jovem é o nome do dia, o maior herói brasileiro desta guerra que agora sim começou; ele afundou o submarino hoje de manhã”. O olhar das duas foi de espanto, de admiração e de dúvida. “É verdade”, disse Marcos, “foi ele mesmo; o que me incomoda, Torres, é que estas duas beldades morenas não me procuram por minhas exuberantes qualidades, mas por meu pouco prestígio, elas querem ser enfermeiras, Torres, imagina só, querem ir para a guerra".

Próximo capítulo: Dulce e Zoé entram na FEB

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Sexto Capítulo

Combate no Rio de Janeiro



O U-199 era o mais moderno e o maior submarino construído pelos alemães para a guerra no mar. O comandante Hans Werner Kraus tinha mandado pintar na torre do U-199 o perfil de um barco viking, para sua inspiração. Ele venerava as tradições marítimas escandinavas, e a pintura do barco viking em seu submarino servia para recordá-lo de que o mar era um constante desafio. Tanto para uma embarcação como aquele antigo veleiro dos guerreiros do Norte como para uma nave poderosa, tal a que ele recebera para comandar. Hans recebera o cobiçado comando da nave por seus méritos. Tinha sido imediato da lenda viva da marinha alemã, o comandante Günther Prien, a bordo do U-47, quando num golpe de extraordinária audácia invadiram a base britânica de Scapa Flow e afundaram o couraçado Royal Oak, para espanto do mundo em guerra. Com as novas diretrizes de Hitler, levar mais uma vez a guerra ao Atlântico Sul, o recém-inaugurado U-199 partiu para sua primeira missão em maio de 1943. Em junho, estava na costa do Brasil, farejando presas como um tubarão faminto. Não avistou nada que instigasse sua cobiça e passou por Rio Grande e Florianópolis, rumo ao Norte. Teve mais sorte no dia 27 de junho, ao se aproximar do Rio de Janeiro, quando inaugurou seu ciclo de matanças, afundando o mercante inglês Charles W. Peale com dois torpedos no casco. Quase um mês depois, a 24 de julho, enfiou mais um par de torpedos em outro cargueiro britânico, o Henzada, de mais de 4 mil toneladas, sem direito a sobreviventes. A temporada de caça prometia quando foi avistado no dia 31 de julho pelo avião de patrulha americano Mariner PBM- 3C na tela do radar. O piloto era o tenente Walter Smith, da marinha dos Estados Unidos, e seu relógio de pulso marcava 7 horas e 14 minutos de uma gloriosa manhã carioca de sol. O U-199 foi visto a olho nu pela tripulação do Mariner alguns minutos depois. “O filho da mãe navegava na superfície, e eu não vacilei”, contou depois o tenente Smith, no bar do Hotel Copacabana, cercado de mulheres perfumadas. “Estávamos em missão de escolta de um comboio de 30 navios, que deixava o Rio. Arremessei o bico do Mariner em direção a ele, que abriu fogo contra nós, mas nosso ângulo era favorável e não fomos atingidos. A menos de cem metros de altura larguei seis bombas Mark 47, que caíram ao lado do alvo, levantando colunas de água e fazendo o U-199 sacudir.”

O avião subiu, deu uma volta e a tripulação viu o submarino intato, despejando fogo de suas metralhadoras e canhões. O Mariner tinha ainda mais duas bombas, deu outra volta e desceu vertiginosamente em direção ao submarino, passou a menos de 20 metros dele e largou as duas bombas que restavam. Novas explosões, novas paredes de água subindo e descendo e o submarino balançando. Desta vez parece que o alvo foi atingido, porque o submarino começou a despejar fumaça e óleo. Então o tenente Wilson avisou a base aérea da presença do inimigo e foi por isso que o major americano apareceu todo agitado na sala dos oficiais do Galeão e avistou o aspirante-aviador Sérgio Schnoor comodamente sentado numa cadeira, olhando numa revista as pernas das coristas do Cassino da Urca e saboreando seu cigarro com uma xícara de café. Sérgio se instalou no assento de controle do Hudson, conferiu com os sargentos Manuel Gomes e João Antônio se o compartimento de bombas estava carregado e começou a ligar os motores quando literalmente se jogou para dentro do avião o capitão Polycarpo, tomando o assento de copiloto. “Não te preocupa, garoto, a festa é tua”, disse o capitão. O aspirante Sérgio escreveria anos depois em seu Diário de Guerra que sentiu um previsível alívio quando viu o capitão Polycarpo entrar no avião, pois ir numa missão desse tipo sozinho sempre é temerário. O coração do jovem Sérgio disputava uma batalha insólita de sentimentos contraditórios. Estava feliz com o voo e a proximidade da aventura, mas também se aproximavam a morte, o medo e o horror. O Rio de Janeiro estava luminoso e pleno de orgulho de suas montanhas, as praias repletas de banhistas, ele viu os guarda-sóis coloridos. Passou pelo Cristo Redentor de braços abertos inspirando a paz cristã que todos aceitavam sem questionar, observou os carros nas avenidas circulando em ordem e tocou o nariz do avião para o Sul, para longe dos edifícios e dos morros, e lá embaixo ficaram apenas o mar esverdeado, os iates, as lanchas e os navios. Parecia uma enseada vasta e feliz. As águas cintilavam de reflexos cristalinos e a cor esmeralda das águas oferecia essas promessas que só aparecem nas manhãs de domingo, pacíficas e suaves. Não parecia real, não podia estar voando aos 22 anos de idade para um ritual de morte, tão perto da sua casa, da sua universidade, dos seus amigos, da casa de dois andares de Maria Beatriz, apesar das batidas sufocadas do coração. E de súbito ali estava ele! Com sua carga de dor e de morte, U-199, nódoa na paisagem. Sérgio sentiu um frio na barriga, algo inevitável quando é a primeira vez. O U-199 lutava com crescentes dificuldades. O Mariner do tenente Smith não tinha mais bombas, mas suas metralhadoras estavam bem municiadas, e ele fustigava o submarino com fogo cerrado, impedindo-o de manobrar. A dificuldade maior do U-199 era submergir. Talvez seu circuito elétrico estivesse danificado. De qualquer modo, o comandante Hans ordenou verificar a profundidade, pois se pudessem chegar ao fundo poderiam fazer os reparos. Às 8h40min em ponto o Hudson de Sérgio lançou duas cargas de profundidade Mark 17 de uma altura de cem metros, mas os artefatos acertaram a água, pelo lado direito do U-199. O Hudson deu uma volta e retornou à carga, com as duas metralhadoras do seu nariz despejando fogo. Viram os artilheiros do submarino serem atingidos e caírem na água quando o sargento João Antônio anunciou: “Acabou a munição”. “Vamos voltar para a base e pegar mais”, disse o capitão Polycarpo, “esse aí não vai muito longe”. E quando davam a volta para o regresso depararam com um Catalina voando em direção a eles, e, pelo jeito, se preparando para também atacar o submarino. Era o Catalina 2, com tripulação toda brasileira, na mesma missão de escoltar o comboio. O piloto era o segundo-tenente Miranda Correa. Estava com ele o especialista em Catalinas, o aspirante-aviador Alberto Torres, e mais dois oficiais que participavam da missão como observadores. Completavam a tripulação cinco sargentos. Eles terminavam a primeira etapa do leque de varredura na rota do comboio, na altura de Cabo Frio, quando uma mensagem no rádio avisou atividade inimiga nas proximidades e em seguida deu as coordenadas. “Só pode ser submarino”, disse Torres. Miranda Correa foi até a mesa de navegação plotar o curso e logo voltou. “Está perto daqui”, disse com um ronco de satisfação. Dirigiu o Catalina para o ponto indicado no mapa e cinco minutos depois se endureceu todo, o dedo no botão de lançamento de bomba. “Olha lá, olha lá”, exclamou pulando de excitação, “ele é enorme, é um monstro, vamos atacar com tudo”. 

Próximo capítulo: a primeira vitória.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Quinto Capítulo

Tenho uma missão para o senhor!


O ministro da Guerra, general Dutra, não tinha nenhuma simpatia pelo ministro da Aeronáutica, deputado Salgado Filho. Duas horas antes ouviu Getúlio dizer com sua expressão indecifrável “não me importa o que tu achas dele, Dutra, ele é o homem para a missão”. E agora, duas horas depois, Salgado Filho está no gabinete de Dutra, os dois se olhando nos olhos com o mesmo pensamento, temos um problema nas mãos, um problema grave. “Todos querem entrar na guerra, doutor Salgado, mas com que armas, com que equipamentos?” “Já estamos em guerra, general.” “Isso é o que eu mais ouço atrás desta mesa. Porque afundaram alguns navios na costa não quer dizer que estamos em guerra, doutor Salgado.” “Fomos atacados.” “Sim. Foi covarde, foi vil, estamos feridos e humilhados e a população deseja vingança. É natural. Mas uma guerra nos moldes de hoje, com máquinas de destruição modernas, em proporção industrial, estamos longe de poder enfrentar. Eu sei, sou um soldado profissional. Como vamos patrulhar a costa e defender nossos navios? São 8 mil quilômetros de costa e simplesmente não temos aviões, e os que temos são sucateados, e pior, não temos pilotos, não temos escola de aviação, estamos no zero para enfrentar a máquina de guerra alemã.” “O que o senhor deseja de mim, general?” Dutra estendeu um papel para Salgado Filho. “Esta é a minuta da coisa, o presidente aprovou, vamos ter a reunião de todo o ministério no final da tarde.” Salgado Filho examinou o papel. “Decreto-lei 10.358, agosto de 1942. Mas... é a declaração de guerra à Itália e à Alemanha”, murmurou, com assombro contido. “Exatamente. E eu tenho uma missão para o senhor, da parte do presidente, doutor Salgado: o senhor vai montar nossa aviação de guerra, vai negociar com os americanos e comprar ou alugar ou roubar aviões e vai montar um esquema para a formação de pilotos, isso tudo para ontem, porque como o senhor mesmo diz, já estamos em guerra.” 

Joaquim Pedro Salgado Filho, gaúcho de Porto Alegre, era um advogado de 52 anos que fora toda sua vida militante político estreitamente ligado a Getúlio Vargas. Conspirador de primeira hora na revolução de 30, que levou Getúlio ao poder, foi um implacável chefe de polícia nos primeiros anos da ditadura, e, em seguida, ministro do Trabalho, Indústria e Comércio. Fora nomeado ministro de uma inexistente Aeronáutica há mais de um ano, mas agora era diferente. Saiu do gabinete de Dutra com o cérebro reverberando de ideias, pois aquele gaúcho calado, que fora um duro chefe de polícia do distrito federal, era um homem de imaginação, e antes de entrar no automóvel e dirigir em direção a Copacabana já estava montando um plano. Além da falta de aviões e de pilotos, a deficiência da aviação brasileira consistia na absoluta falta de unidade de suas aeronaves. Os 430 aparelhos em uso pertenciam a 35 modelos diferentes, o que gerava um monumental problema de manutenção. Ele sabia que o Congresso americano tinha criado um sistema para negociar seus aviões com os ingleses, que sofriam horrivelmente com os ataques aéreos dos alemães e sofriam ainda mais porque não tinham dinheiro para comprar aviões. O sistema se chamava Lendlease Act, ato de empréstimos e arrendamentos, e Salgado Filho logo instalou em Washington uma Comissão de  Compras. E para San Antonio, no Texas, onde havia uma grande base aérea, enviou dezenas de jovens universitários, a fina-flor da sociedade carioca, muitos paulistas e gaúchos que falavam inglês, e, é natural, no esplendor da juventude ansiavam por aventura. Em seis meses já havia muitos pilotos formados e ávidos para entrar em ação e centenas de aviões negociados entre os dois governos. Um belo dia levantaram voo, de uma fábrica em Maryland, nada menos que 150 aparelhos que voaram em formação para o Rio de Janeiro, numa impressionante jornada com 46 escalas, da fábrica até os aeroportos do Galeão e de Santos Dumont. De 1942 até o final da guerra, 1945, o Brasil negociou 1.288 aviões novinhos com os Estados Unidos. Mas no segundo semestre de 1942 a situação na costa brasileira era de medo. Os ataques dos submarinos aumentavam de intensidade, e no mês de novembro nove navios mercantes foram afundados, com centenas de mortos. E no mês de dezembro a contagem não poderia ser pior: 12 navios, milhares de vítimas. No ano de 1942, de fevereiro a dezembro, 24 navios mercantes e de passageiros foram atacados e afundados. Nenhum submarino alemão ou italiano foi sequer danificado. Havia estupor, consternação e revolta na sociedade brasileira, e uma sensação de impotência nas Forças Armadas. Enquanto essas tensões dividiam o país, os aviões chegavam e se instalavam ao longo da costa, começando a formar uma rede de defesa e patrulha que esperava o momento de ser testada. Havia três tipos de aviões: o Catalina, o Hudson e o Ventura. Foram distribuídos desde Florianópolis até Fortaleza. E no primeiro semestre de 1943 os pilotos percorreram o litoral brasileiro de olho no mar, buscando submarinos inimigos, mas nenhum apareceu. Havia boas razões para isso. Hitler tinha planos ambiciosos no Mar do Norte. Em março os submarinos alemães colheram suas mais impressionantes vitórias, quando atacaram dois comboios aliados. Uma formação de 44 submarinos atacou coordenadamente os comboios e afundou num único dia 22 navios. A tragédia causou uma crise emocional profunda entre os aliados, e eles se organizaram meticulosamente para revidar. E o revide não demorou: dois meses depois, uma ação conjunta da marinha e aviação aliadas cercou e destruiu 41 submarinos alemães, obrigando Hitler a rever sua estratégia. E foi Hitler pessoalmente que ordenou a mudança dos campos de caça para territórios menos vigiados: apontou seus submarinos mais uma vez para a costa brasileira. Mas agora aviões vigiavam a costa, com pilotos jovens e decididos. Um deles, com seu bigode da moda, era o aspirante aviador Sérgio Schooner. Comodamente instalado numa cadeira na sala de oficiais no QG do aeroporto Santos Dumont, xícara de café na sua frente, cigarro fumegando no cinzeiro e uma revista cheia de fotos das coristas do Cassino da Urca em suas mãos, Sérgio disfarçava o tédio quando um major americano entrou esbaforido na sala: “There is a submarine out there! Go there and get it!” Ou seja: “Tem um submarino lá fora! Vai lá e pega ele!” Sérgio engoliu o resto do café, apagou o cigarro no cinzeiro e saiu acelerado em direção à pista. Ao sol da manhã, com sua tripulação completa, o Hudson 73 esperava. Vai ser agora, pensou, trêmulo de excitação: batismo de fogo em pleno mar do Rio de Janeiro. 

Próximo capítulo: Combate no Rio de Janeiro.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Quarto Capítulo

Na praia de Pajuçara




Dulce e Zoé, jovens bronzeadas na praia de Pajuçara, Maceió, no pino do sol da manhã. Imóvel na areia, sussurra Dulce para Zoé com voluptuosa preguiça, “Vamos jogar tênis hoje de tarde?” “Vou se você me emprestar uma raquete”. “E a tua?” “Tá sem corda”. “Com uma raquete sem cordas pode ser que o teu jogo melhore”. “Gracinha”. Ouviram vozes alarmadas e se apoiaram nos cotovelos. Banhistas e pescadores corriam agitados. Nos dias cheios de espanto que se seguiram aos ataques do capitão Harro Schacht os jornais publicavam manchetes arrebatadoras, apesar da censura. O país inteiro se transformou numa caixa ressonante de boatos. De Sul a Norte havia passeatas de multidões inflamadas de patriotismo, manifestações, abaixo-assinados e discursos clamando por vingança. Pescadores olhavam com temor para o mar, que agora apresentava um tipo de ameaça que nunca imaginaram enfrentar. Pairava no ar uma dúvida que separava os brasileiros: quem era o autor dos atentados? Tudo era sobressalto naqueles dias, e as duas moças olhavam a agitação com mau pressentimento. “Isso é coisa dos americanos”, disse Zoé, 18 anos, as pernas longas e morenas brilhantes de uma mistura de óleo de coco, “sou capaz de jurar que foram eles que torpedearam os navios”. “Quem diz isso é a Quinta-Coluna, e você devia saber mais do que ninguém, afinal, seu pai é general”, retrucou Dulce, 17, massageando as pernas com o óleo. “Pois é meu pai general quem diz que é coisa dos americanos, então é coisa dos americanos”. Havia algo de glorioso no calor, no céu azul e no mar brilhante onde tremulavam as brancas velas das jangadas. Banhistas em grupos olhavam para o mar, havia um ponto escuro além dos recifes: tubarão? Por essa época de suas vidas as duas meninas estavam começando com cautela a apalpar os grandes mistérios do futuro bem próximo: sexo, amor, casamento. E agora, no fim da adolescência, essa história de guerra. Que tédio. As duas ergueram os óculos de sol para a testa, olharam na direção para onde todos apontavam e viram, além dos recifes e da espuma branca das ondas, o ponto escuro. Zoé deu um grito: “tubarão!” Dulce se ergueu e ficou olhando, fascinada. “Submarino”, disse baixinho. Em torno do periscópio havia uma leve agitação da água esmeralda. O periscópio submergiu, formando uma espécie de redemoinho. As duas se olharam, pálidas e sem palavras. “Vamos para casa”. Juntaram toalhas e frascos e bolsas e saíram em disparada para o ponto de ônibus mais próximo. Não olharam mais para o mar, como temendo ver algo que não suportariam. Quando chegaram na casa de Dulce havia alvoroço, “afundaram um navio aqui perto”, anunciaram as tias com estupor, “o rádio disse que os destroços estão chegando na praia, tem feridos, muitos feridos!” A mãe, quatro tias, a avó que apareceu ninguém sabe como, corriam pela casa, falando ao mesmo tempo. A tia beata e uma negrinha recitavam ladainhas. Toca o telefone, todas se precipitam, Dulce chega primeiro. “Mãe, é do hospital, o doutor Máximo”! A mãe de Dulce atende, muito pálida, e vai concordando com a cabeça, “sim, senhor, doutor, sim senhor, agora mesmo”. Larga o telefone, olha dramaticamente para todos. “Era um navio de passageiros, o Itagiba, são muitos feridos, muitos! O doutor Máximo quer que eu vá para lá ajudar, eles não têm sequer uma enfermeira formada”. “Eu vou com a senhora”, diz Dulce. “Eu também”, emenda Zoé. “Não, vocês são muito crianças para isso”. “Crianças, mãe”, e Dulce se eriçou como uma gata indignada. “A gente fez no colégio o curso de Defesa Passiva”, dona Clô, disse Zoé. “Vocês vão ver muitas coisas horríveis no hospital”, disse dona Clô. “Mãe, estamos perdendo tempo”. “Muito bem, então vamos ver o que vocês sabem fazer: ao telefone! Precisamos arrecadar roupas, alimentos, camas e colchões. Falta tudo isso no hospital. Organizem comissões, uma comissão para cada item. Telefonem para todas as amigas de vocês, organizem um mutirão. Entrem em contato com a LBA, peçam remédios e ataduras, avisem que eu sou a única enfermeira diplomada por perto, as outras são Voluntárias Socorristas sem experiência nenhuma. Espero vocês lá”, e saiu em disparada. As duas garotas se olharam, perplexas: Dulce, de olhos azuis, Zoé, de olhos negros. Dulce apanhou o telefone: “lápis e papel”, comandou para Zoé que olhou suplicante para as tias de Dulce que correram cada uma para um lado e voltaram com lápis e papel enquanto Dulce com voz firme dizia: “sim, levem para o hospital, ah, sei lá, deem um jeito, é pra já, quanto mais colchões melhor, e lençóis, e fronhas”. Quando saíram para a rua, meia hora depois, no rumo do hospital que não ficava longe, duas quadras dali em frente ao mar, a manhã continuava azul e dourada. Os sinos das igrejas dobravam fúnebres pelos mortos.

As duas meninas conheceram o horror muito de perto, nessa manhã. Quando chegavam ao hospital também chegavam os primeiros feridos, transportados em caminhões do exército. Havia urgência e gravidade nos rostos, e elas ouviram os gemidos de dor, e mesmo gritos e rezas em voz alta. Dulce viu sua mãe de longe, debruçada sobre um corpo numa maca, tentando desabotoar a camisa dele. Ela a chamou com um gesto urgente, Dulce amou sua mãe nesse momento mais do que nunca, sua cor pálida e a firmeza do seu gesto, e a maneira doce como olhou para ela (o olhar dizia “confio em ti, pequena”) e disse, “ajuda a tirar a roupa deste aqui". A camisa estava em frangalhos ensanguentados que se grudavam à pele. O homem era escuro de uma maneira estranha, como se aquela não fosse a verdadeira cor de sua pele, mas produto das queimaduras ou talvez ele fosse mesmo negro, era difícil saber, o que ela sabia muito bem é que as contorções súbitas que seu corpo dava eram de dor, uma dor lancinante entrelaçada à surpresa e ao horror que ele vivera naquela manhã de céu azul e de sol quente. Quem era esse homem? Jovem? Velho? Um simples marinheiro? Um oficial? Ou um passageiro? Aí estava ele no limiar da morte, de olhos arregalados de dor e desespero. “Dona, eu ainda tenho na boca o gosto da fumaça do torpedo, vou levar esse gosto comigo”. Dulce sentiu o aperto da mão do desconhecido no seu pulso, e com um estremeção de horror soube que esse era o adeus do homem, ele se despedia do mundo com a mão escura apertando seu pulso, o último contato com a vida, busca de explicação para o desespero, para o horrível gosto da fumaça do torpedo na boca.