quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Despertar


50.

“Isto não é uma atochada, praça” disse o capitão Marcos para Pedrinho, depois do demorado silêncio rodando pelas estradas repletas de comboios, carros de rodas para o ar, tanques incendiados e famílias de refugiados em farrapos estendendo as mãos e pedindo alimento. “Não, capitão?” “Não. É um assunto sério. Uma missão.” A “tocha” era como os soldados, oficiais, sargentos, praças, todo mundo, chamavam o abandono das linhas de frente, geralmente surrupiando um jipe, para passeio numa cidade próxima, visita a alguma namorada ou a ida a bordel improvisado na beira da estrada por cafetões com espírito empreendedor. Pedrinho olhava para o capitão Marcos, o misterioso capitão Marcos, de quem ouvira histórias raras, e pensava para onde ele o estava levando. Nesse exato instante, três horas da tarde do dia 30 de abril de 1945, quando pensava que missão seria essa, a 600 quilômetros dali, no escuro bunker no centro de Berlim, Adolf Hitler estava colocando a ponta da sua pistola Walther na boca, onde já boiava uma capsula de cianureto. Sua amante, Eva Braum, jazia no sofá, parecendo adormecida. Eva, 33 anos, tentara pouco antes se matar com aquela mesma pistola, mas não conseguira e ingerira veneno. Agora eles eram apenas mais dois dos 50 milhões de mortos que o sonho do nazismo custou. Lá fora, o exército russo entrava na capital da Alemanha, já chegava ao centro de Berlim, em longas e assustadoras filas. A população civil fugia em bicicletas, carroças e a pé. Os ruídos dos canhões faziam tudo estremecer. Ouviam-se paredes desmoronando. Pedrinho apertava o pé no acelerador. “Em frente!” comandava o capitão Marcos e eles seguiam em frente, sempre para a frente, através de vilas abandonadas, cidades fantasmas, pontes destruídas, camponeses que acenavam de longe. Ás vezes, parando para Pedrinho incrédulo ver o capitão Marcos descer do jipe e dirigir-se resoluto a algum oficial de um comboio americano. Falava gesticulando com energia e voltava com um galão de gasolina na mão. A noite de primavera caiu e Marcos tomou a direção. Pedrinho dormia profundamente apesar dos solavancos. Amanheceram numa encruzilhada, com placas sinalizando nomes de cidades que Pedrinho mal podia soletrar.
“Onde estamos, capitão?” “França, meu rapaz. Na verdade, saindo da França. Ali adiante é a Alemanha, e é pra lá que a gente vai.” Mastigaram as rações, beberam água dos cantis e tornaram a encarar a estrada. O capitão Marcos começou a consultar um mapa. Finalmente ele disse: “Estamos chegando.” Uma divisão americana bloqueava a estrada. Marcos falou longamente com um sargento, depois um tenente, depois um capitão, mostrando uma carteirinha e documentos até que chegou alguém a paisano, conferiu os documentos e fez sinal para que o seguisse. Pedrinho dirigiu o jipe atrás do homem e então viu a paliçada, o grande portão e os guardas. Pedrinho percebeu que o capitão Marcos endurecia o corpo quando transpuseram os portões. Seus olhos demoraram a decifrar o significado das roupas que as pessoas vestiam, roupas cinzas com listas negras, em farrapos, enormes nos corpos magérrimos e então o brusco horror de ver os corpos só pele e osso e os terríveis olhos no fundo das órbitas e os olhares que lhes dirigiam e eram centenas e mais ainda, milhares, se movendo como numa onda, lentos, adormecidos, semivivos, arrastando os pés e movendo os braços sem sentido nem direção. Estacionaram ao lado de uma fila de caminhões e eles estavam carregados de corpos, aqueles corpos só pele e osso, uns sobre os outros, homens, mulheres, velhos, crianças, e estavam mortos. Mortos. O capitão Marcos entrou num pavilhão onde um oficial nazista era interrogado. Pedrinho deu alguns passos vacilantes, espiou por uma janela para dentro dum alojamento e viu os mortos vivos nos beliches, viu os braços pendendo no ar, o silêncio vagando no ar fétido e podre. “Era possível, entendeu, era possível” dizia o oficial nazista com os olhos brilhantes de medo e de audácia, encarando seus interrogadores. “Exterminar os judeus era possível e não fomos nós que inventamos a ideia do genocídio. A prática é política, política, nada mais do que isso e remonta há muitos séculos. Os ingleses provaram isso quando exterminaram os tasmanianos. Povos inteiros foram exterminados no Congo Belga e na Namíbia. O senhor compreende, a Tasmânia era uma ilha habitada por um povo há dez mil anos e os ingleses foram lá e em poucos anos os tasmanianos foram sistematicamente caçados, assassinados e deportados pelos agentes britânicos e assim acabaram com todos, todos, entendeu, em grupos ou de um a um, a raça tasmaniana acabou quando só restou uma mulher, o nome dela era Trugonini, ela morreu em 1869, seu corpo foi dissecado, e seu esqueleto, depois de medido e devidamente estudado, está exposto em uma vitrine no Museu Hobart de Londres, e se eles fizeram isso por que nós não poderíamos também fazer, me responda, capitão, me responda!” Marcos deu as costas, olhou o campo de extermínio, o arame farpado, os galpões onde funcionavam os fornos crematórios, a multidão de esfarrapados se movendo lentamente com aquelas rígidas máscaras moribundas, o silêncio, o silêncio que era levemente roçado pelos passos vagarosos e sem rumo. Pedrinho se aproximou de Marcos. Queria gritar, mas nem para gritar tinha forças. “Capitão, quero ir para casa” disse num fio de voz. O capitão olhou para ele. Dirigiram-se para o jipe. Fizeram a viagem de volta em silêncio. Depois que regressaram a unidade Pedrinho nunca mais encontrou o capitão Marcos e nunca mais voltou a sentir aquela sensação de desamparo absoluto, de silencioso desespero, a não ser muito tempo depois, quando mataram Maciel, seu primogênito, com a idade de 20 anos. O pesadelo tinha acabado. Agora, tinham de lidar era com o despertar. Os brasileiros voltaram com a consciência tranquila: todas as missões que lhes foram confiadas eles cumpriram integralmente. Diante da monstruosidade do conflito, a participação foi pequena, mas fundamental: conquistando Monte Castelo a FEB derrubou a última muralha que impedia o avanço para Berlim. A FEB teve 433 mortos e 3 mil feridos. Capturou 20.573 prisioneiros. Lutou de setembro de 1944 a maio de 1945, apenas nove meses dos seis anos da guerra. Entretanto, há um dado dos arquivos Aliados que revela o tamanho da aventura da FEB na Itália. Pela quantidade e intensidade do seu emprego, a FEB foi, proporcionalmente, a segunda tropa que ficou mais tempo em ação durante o conflito. Os pracinhas tiveram uma grande aclamação em sua chegada no Rio de Janeiro, mas uma semana depois foram desmobilizados. Talvez Getúlio não gostasse de ter em suas mãos um exército experimentado em derrubar tiranos. E então os pracinhas foram voltando para suas cidades e estados. Alguns não tinham dinheiro para a passagem e dormiram nas ruas. Muitas promessas de aposentadoria e de soldos polpudos nunca se cumpriram. Tudo era um pouco estranho. As multidões nas ruas sem medo de bombardeios ou fome ou massacres. Conversas inconsequentes sobre futebol. Filmes com Oscarito e Grande Otelo nos cinemas. Mas todos eles sonhavam a noite com os horrores que tinham vivido. Todos despertavam com um gosto amargo, como se estivessem cegos e tateassem a procura de uma voz amiga. Alguns enlouqueceram. Alguns se mataram. Outro, mais esperto, conseguiu uma aposentadoria milionária. Dulce ficou no exército e fez brilhante carreira militar. Zoé voltou para Recife, casou e nunca mais entrou num quartel. Virginia foi morar em Londres. Pedrinho e Atílio voltaram a fazer a dupla de ataque do Imbituba, mas sem o mesmo sucesso de antes. O alemão João Wogel chegou em casa e foi recebido com uma grande festa. O kerb durou uma semana com mesa farta e dezenas de barris de chopp, com direito a discurso do prefeito. Passaram os anos, que é o que fazem. Pedro Diax andou algum tempo embarcado na marinha mercante, mas voltou a Imbituba e abriu uma mercearia. Casou e teve dois filhos, Maciel e Aldemir. O gago Atílio ganhou na loteria, mas perdeu tudo no jogo e na bebida. Tinha ataques de pânico. Pedrinho ia busca-lo em becos fedendo a urina. O gago chorava e falava incoerências. O Brasil perdeu uma Copa em casa. Mas depois ganhou cinco. Alguns generais da FEB chegaram ao poder, mas não foi pelo voto.  O Brasil se tornou mais triste.
Nos fins de semana Pedrinho se afastava de todos, subia na duna e ficava olhando o mar. Tomava chimarrão, sozinho, hábito que adquirira com o cabo Quevedo. Pedrinho gostava de ficar assim, sozinho, lembrando. Gostava mesmo era do mês de junho, quando vinham as baleias. Em alguma coisa o mundo tinha melhorado. Ninguém mais saía atrás de baleias com arpões e fuzis. Em algum momento da tarde chegava a lembrança do primogênito, Maciel. Disseram-lhe que foi morto num quartel da aeronáutica, no Rio de Janeiro, mas ele nunca viu o corpo. Não ficou sabendo se isso era mesmo verdade nem como ele foi morto. Disseram que era um subversivo, que teve o fim que buscou. Pedrinho não disse nada. Era outro tempo, outra guerra. Mas a lembrança chegava e ficava ali com ele. Na tarde dominical fria e cheia de sol, sentado no alto da duna, olhando a dança das baleias, o velho Pedrinho pensa no filho. As gaivotas dão voos rasantes e gritam. Há uma grande paz no mar e na tarde.  Mas o velho Pedrinho não se engana. Ele sabe: o maior e mais cruel dos monstros, a fúria humana, está à espreita, sempre, do nosso silencioso desespero.


FIM.

A Divisão 148 se Rende

49.

O irritante general Crittenberg enviou um ofício ao general Mascarenhas: “A Divisão de Infantaria Brasileira foi a única Grande Unidade que cumpriu integralmente a missão recebida. As outras, 92ª.Divisão Americana, a 10ª.Divisão de Montanha, a 1ª.Divisão Blindada e a 6ª.Divisão Blindada Sul-Africana, pouco progrediram e sofreram grandes perdas. A Divisão Brasileira recebeu, dentro de Montese, só numa  noite, mais granadas do que todas as outras somadas, sem arredar pé das posições conquistadas.” Brayner observou a reação do general Mascarenhas enquanto ele lia, mas o veterano soldado parecia de pedra. Talvez pensasse que o cowboy já não estava tão irritante assim. Afastou o ofício para a pilha de papéis ao lado, e virou-se para Brayner. “Vamos cuidar do que vem pela frente. Vamos avançar sem parar. Nossos aliados gostam de nomes pomposos. Agora chegou o momento da Grande Ofensiva.” A premissa da Grande Ofensiva era avançar sem parar, avançar o mais que pudessem cada dia, avançar até as pernas não aguentarem e o combustível sumir nos tanques. Mas o avanço tinha um sentido: deslocavam-se as unidades brasileiras em direção ao norte, depois de cobrir o avanço da 10ª. Divisão de Montanha que marchava para Bolonha. As unidades eram o Onze de São João del Rey, o Sexto e o Primeiro Regimento de Infantaria. Avançavam pelas estradas poeirentas do Vale do Pó, ao longo dos rios Panaro e Taro, já próximos a vila de Fornovo de Taro. Esta era uma vila cercadas de parreirais, casas de pedra brilhando ao sol, equilibradas nas curvas da estrada rente aos abismos dos contrafortes dos Apeninos, estrada que levava para Bolonha, para o norte, para Berlim. E de lá saiu o primeiro ataque, pegando de surpresa os brasileiros. Foi uma barragem violenta de intenso fogo. Granadas e tiros de canhão explodiam de todo lado. Enquanto buscavam proteção nas valas da estrada e nas barrancas do Taro, os oficiais trataram de se informar quem estava ali com tão formidável poder de fogo. E logo descobriram. “É a 148, uma Divisão Panzer. Uma unidade de elite. Eles combateram sob o comando de Rommel no Afrika Korps. Vai ser uma parada dura” disse o coronel Nelson de Melo, comandante do Sexto. “São duas divisões” disse o major João Carlos Gross “está com eles a Divisão Bersagliere, italiana. Eles vão cobrar um pedágio caro para nos deixar passar.” “Eles estão metidos dentro dos muros da vila, acho que podemos preparar uma surpresinha para eles.” Os três comandantes dos três regimentos de infantaria da FEB acertaram um plano de ação, onde o fundamental era a rapidez. “Vamos envolvê-los” disse Nelson “se der certo eles ficarão imobilizados.” E assim o Onze se estendeu pela ala esquerda, ao sul de Fornovo, com grande rapidez e cautela para não ser observado. O Primeiro se deslocou para a ala direita, ao norte da vila. E o Sexto avançou pelo eixo central, chamando a atenção para si dos defensores da fortaleza, que ignoravam o ataque pelos flancos.
Ao final da tarde, os brasileiros apertavam as Divisões de Hitler em suas posições como se tivessem uma torquês. “Eles estão cercados. Agora é uma questão de tempo” disse Gross. Ao anoitecer apareceu um jipe com bandeira branca. O coronel Melo foi taxativo. “Os senhores estão cercados. Rendam-se incondicionalmente. Vamos tratar dos vossos feridos e terão toda a proteção das leis da guerra.” Os emissários se retiraram. A noite houve uma tentativa desesperada de romper o cerco. Ao amanhecer novos emissários aceitaram a rendição incondicional. Uma neblina cobria a vila e os campos ao redor. E por fim, após duas horas de negociação, começaram a surgir da névoa os vultos do exército derrotado. Era uma longa fila de homens cansados, abatidos, sem esperança e orgulho, que passavam diante das duas mesas onde estavam os oficiais e iam depositando as armas.

Quem comandava a 148 era o prestigiado general Fretter Pico. Ele entregou sua arma para o general Falconiére, chamado ao local para receber os prisioneiros. Falconiére permitiu que o general alemão conservasse sua arma, até ser internado em Florença. Pedrinho, Atílio e o alemão Wogler assistiam a tudo, quando Pedrinho julgou reconhecer um dos oficiais que interrogava ou conversava com os oficiais prisioneiros. Era o capitão Marcos, que o interrogara depois que saíra do submarino alemão. Seus olhares se encontraram, o capitão se aproximou. “Olá, rapaz. Conseguiu o que queria?” Pedrinho ficou confuso, nunca disse para o capitão que queria alguma coisa. “Estou bem, capitão.” “Que bom que está vivo.” “Obrigado, capitão.” “Você veio longe, meu rapaz. Sabe dirigir um jipe?” “Sim, senhor.” “Preciso de um motorista. Vou falar com teu comandante.” Pedrinho ficou perplexo, porque o capitão deu as costas e avançou para um grupo de oficiais que conversava. No dia seguinte, bem cedo, o general Mascarenhas recebeu um ofício do general Mark Clark: “Queira aceitar as minhas mais calorosas felicitações pela brilhante ação das tropas brasileiras ao capturar a 148ª. Divisão de Infantaria Alemã. A captura de tantos homens, veículos e cavalos, constitui uma prova do espírito combativo da FEB e representa o ponto culminante da organização da FEB e da esplêndida contribuição dos brasileiros para o nosso sucesso no teatro de guerra da Itália.” E como se não bastasse, chegou outro ofício, este assinado por Crittenberg: “Vossa ação contínua e agressiva contra as colunas inimigas que tentavam desembocar no Vale do Pó levou-os á confusão com pesadas baixas, ação essa que resultou com a rendição dos Generais Comandantes da 148ª.Divisão Alemã e de uma Divisão Italiana, num total de 14.779 prisioneiros de guerra e grande quantidade de material vital. Meu General, os resultados obtidos pela FEB, sob o vosso elevado comando, constituem um alto feito militar que vos concederá um lugar preeminente na história dessa guerra.” Enquanto os oficiais liam os ofícios e se regozijavam, fazendo piadas com a mudança de atitude dos americanos, Pedrinho dirigia o jipe com o capitão Marcos ao seu lado, tomando cuidado para não atropelar nenhum dos milhares de soldados que infestavam a rodovia. O Alemão e o Gago Atílio viram quando ele passou bem perto, orgulhoso, e acenou para eles. Depois viram que rumava para o norte, e desapareceu numa curva da estrada que circundava a montanha.

Montese Morta

48.


O comando do pelotão da vanguarda do ataque principal coube ao tenente Iporan. Todos o achavam um pouco verde para aquilo. Ele olhava de binóculo as casas de pedra. Os homens olhavam para ele. Conheciam o Iporan. Todos eram velhos conhecidos do Sampaio. Todos pensando que aquela era, como andavam dizendo, a última batalha da guerra.  Talvez não fosse, mas ninguém ia achar engraçado morrer logo quando a guerra chegava ao fim. O sargento Max, ninguém menos do que o sargento Max, estava atirado no chão a 200 metros dali, cheio de balas, e ninguém podia fazer nada.  O sargento Mathias olhou para as casas de pedra. “Se avançarmos muito vamos levar tiros pelas costas, tenente.” “Vamos avançar até a crista da elevação e lá avaliamos. Andando!” Avançaram abaixados até o ponto mais alto. De lá puderam examinar a cidade onde agora o sol batia em cheio. E então brilhou sobre eles um foguete de sinalização, que se desmanchou em estrelas vermelhas, como fogo de artifício. “Já sabem onde estamos” disse Iporan. E imediatamente desabou sobre o pelotão uma compacta barragem de artilharia. “Vamos sair daqui, pra frente, pra frente!” Correram desesperadamente no meio das explosões, jogando-se ao chão, levantando, prosseguindo. Iporan viu o garoto da saúde receber uma bala na testa, viu o negrão especialista em minas ser partido em dois por obus que o atingiu em cheio. Iporan se jogou dentro de uma vala, bateu com o rosto no chão, ficou com a boca cheia de terra. Depois de tomar fôlego e cuspir terra, com toda calma, chamou os sargentos Celso, Rubens e Mathias. “Celso, pega teu Grupo de Combate e vai pela direita. Rubens, você vai pela esquerda. Mathias, você vai pelo centro. Quando eu mandar.” Os três sargentos se entreolharam. O tenentezinho quer cantar de galo. “Celso, você vai primeiro. Agora!” O sargento Celso Racioppi olhou para seu Grupo de Combate e falou, ríspido: “Comigo, macacada, avançando!” e disparou no rumo das casas, jogando-se nas estrias do terreno, espiando, avaliando e tornando a correr. Súbito, o sargento estaca. Fica imóvel. “Minas. Nossa Senhora. Estamos no meio de um campo  minado.” O tenente Iporan se aproximou rastejando. “Minas, tenente.” Iporan olhou o artefato. “Não é mina. É booby-trap. Eu sei desmontar essas bostas.” Todos ficaram de olho arregalado vendo o tenente mexer com seus dedos longos e aristocráticos aquelas pequenas caixinhas diabólicas. O tenente desmontava uma e dizia “pronto!” e seguia em frente e desmontava outra. Depois de meia hora não tinha mais booby-trap ativo. “Vamos continuar. Quero o Grupo de Combate do Mathias aqui com a gente. Vamos avançar juntos.” Rastejaram cada vez mais próximos das primeiras casas. Viam nitidamente suas paredes velhas e ásperas. “Quero o Grupo de Combate do Rubens avançando. Vamos nos preparar para invadir.” “Tenente.” “Sim.” “Estamos sem telefone. Os fios foram cortados com as explosões.” “Vamos usar o rádio.” “Estamos sem rádio também, tenente. Deixou de captar. Estamos muito longe, e o terreno é...” “Vamos invadir com ou sem rádio.” Os três sargentos se entreolharam. “Sim, senhor.” Esse tenentezinho estava saindo melhor do que a encomenda. “Vamos mandar um mensageiro avisando que vamos entrar na cidade. Que suspendam o bombardeio porque vamos entrar. Praça Melo.” O praça Melo era um negrinho só osso e nervo. Tocava pandeiro no bloco de carnaval do batalhão. “Sim, senhor.” “Vai até o comando da Companhia e avisa que vamos invadir, que suspendam o bombardeio. Dá um jeito de chegar até lá, Melo, pelamordedeus.” “Pode deixar, tenente.” O praça Melo saiu que era uma ventania, rastejando como um lagarto.  Viram-no sumir numa dobra de terreno. “Agora, vamos.” E os três Grupos de Combate começaram a aproximação da fortaleza alemã, com o tenente Iporan na frente. Mal deram os primeiros passos começou o fogo alemão. Jogaram granadas para o lugar de onde vinham os tiros e foram avançando. Iporan olhava e via que o avanço era firme, mas que alguns caíam feridos. De um buraco de metralhadora saiu o primeiro alemão e foi varrido, depois outro e outro. Agora tinham ultrapassado os primeiros baluartes da defesa, já caminhavam numa rua de pedra, rente ás paredes. Das janelas atiradores derrubavam mais soldados. Iporan tinha o olhar transtornado. “Quantas baixas?” “Calculo umas trinta.” Davam pontapé nas portas, entravam em salas vazias, irromperam numa cozinha onde enorme fogão a lenha imperava. O cabo Scliar se aproximou gritando: “Consegui contato, tenente, estou com o capitão Sidney.” “Alô, capitão, é o tenente Iporan. Introduzimos uma cunha na defesa deles, estou em Montese com três Grupos de Combate, mas a situação é crítica. Precisamos de reforço imediato para manter a posição.” “Muito bem, tenente, parabéns e aguenta firme mais um pouco, estou mandando para aí um pelotão de fuzileiros.” Os Grupos de Combate dos três sargentos se espalharam pelas ruas da cidade e foram tomando casa por casa. De várias delas saíam soldados alemães com as mãos para cima. Já não acreditavam mais numa resistência eficaz. Pouco depois os fuzileiros também entraram na cidade protegidos por tanques. A tarde já estava pela metade. Os poucos moradores que restavam apareciam e gritavam “liberatori, liberatori!” Uma mulher trouxe um garrafão de vinho para o tenente Iporan, que timidamente recusou. Afinal, estavam ainda em combate. Mas o sargento Mathias tomou o garrafão das mãos da mulher e levou-o a boca, bebendo com sofreguidão. O tenente Iporan fez que não viu e se afastou. Chegou na rua. Os fuzileiros marchavam dos dois lados, colados ás paredes, vigiando cada porta e janela. O tenente Iporan caminhou pelas ruas da cidade que conquistara. Os bombardeios, dos aliados e dos alemães, tinham destruído a cidade completamente. Não havia uma casa intata. A imponente torre desmoronou. Uma fumaça negra envolvia tudo. Havia gritos e correrias. O gago Atílio, Pedrinho e o alemão Wogler se apertavam contra a parede de uma capela com mais de 600 anos. “Estou com cãibra” gemeu o alemão. Caiu sentado, Pedrinho agarrou seu pé e começou a empurrar para trás. João Wogler gritava de dor, quando o gago Atílio gritou: “O-o-o-lhem lá.” Não tiveram dúvidas. Era Quevedo. Estava dobrado em dois, havia escombros ao seu redor, e no peito crescia uma grossa, escura, lenta mancha de sangue. O gago Atílio se ajoelhou ao lado dele e ficou ali parado, com medo de o tocar. Pedro Diax se aproximou. O alemão Wogler se arrastou até ele. Montese estava tomada, mas o cabo Quevedo estava morto.

O Palco Está Pronto Para a Matança

47.


Depois da conquista do Monte Castelo, a passagem pelos Apeninos tornou-se mais acelerada. Foram conquistadas pelos brasileiros, sem muito esforço, localidades há pouco consideradas inexpugnáveis como La Serra, Bela Vista, Cota 958, Soprassasso, Castelnuovo, Santa Maria Villena. Ninguém mais questionou a eficiência da FEB. Os exércitos aliados avançavam com ímpeto na direção de Bolonha. Em todos os encontros de comando se proclamava de peito inflado que chegara o momento da Grande Ofensiva. Havia ansiedade e euforia. Faltava um sinal do Alto Comando Aliado. E ele veio no dia 20 de março, quando em requerimento foram convocados todos os comandantes de Divisão para uma reunião em Casteluccio. No dia 24 de março, na sala de pedras de um castelo medieval, em torno de uma gigantesca mesa que refletia o teto em abóboda, realizou-se a reunião secreta com a presença dos comandantes de Divisão para a discussão do plano de operações para a investida sobre Bolonha. Estavam presentes Mark Clark, Trussaud, Crittenberg, Hayes e Mascarenhas de Moraes com todos seus estados-maiores. Para desgosto de Mascarenhas, a FEB foi sendo relegada dos planos e ao final do dia, esquema montado, nenhuma missão para os brasileiros. Foi então que o comandante da Décima de Montanha coçou a cabeça e lamentou: “Temos um erro aqui. Tudo se encaixa, menos o flanco esquerdo. Estou completamente desprotegido nesse lado.” Crittenberg deixou transparecer sua perplexidade. Estavam magnetizados pelo avanço rápido até Bolonha e esqueceram as precauções. “O maciço Montese-Montello, ocupado pelo inimigo e fortemente armado de Artilharia, é uma ameaça fundamental para o avanço” disse Hayes. Um silêncio caiu na sala em penumbra e sobre os homens cansados de um dia inteiro de especulações e montagens de táticas. “Com licença, senhores” disse Mascarenhas, prontamente traduzido pelo major Vernon. “Minha Divisão está sem tarefa nesta empreitada. Poderíamos nos ocupar de Montese, se nos derem essa honra.” Se havia alguma ponta de ironia no semblante sério de Mascarenhas nenhum dos imponentes generais acusou, mas Hayes foi rápido e jovial:  “O general Mascarenhas tem certeza de tomar Montese?”  “Tenho. Mas quero saber se o general Hayes tem certeza de aproveitar nossa vitória em Montese.” Todos deram risadas comedidas, mas Crittenberg bateu na mesa como encerrando a questão. “O general Mascarenhas nos dará Montese como precioso presente de primavera.” E no dia seguinte foi distribuído aos oficiais o plano da Grande Ofensiva. Este era longo, minucioso e técnico, mas terminava com um parágrafo curioso e que mostrava o estado de ânimo de todos. “Sobre prosseguir. Prossiga rapidamente, não amanhã, hoje a noite, esta tarde, agora mesmo! Saiba para onde está indo. Saiba suas linhas atingir os objetivos. Por exemplo: os brasileiros no vale a leste do Panaro. Não é momento para cautela. Uma vez que começou a avançar, dê todo o vapor. Não estamos em 1942 ou 43. Estamos no fim. Podem se permitir ao risco. Se não acham que tem todas as vantagens sobre o alemão, coloquem-se no lugar deles, e imaginem quanto de espírito de luta ainda lhes resta. Jogue a precaução ao vento. Seja arrojado e ativo. Nosso objetivo imediato é a Linha Negra. Quando chegarmos lá, teremos apenas começado. Ali é que começa a arrancada final. O palco está pronto para a matança.” E assim, duas semanas depois, preparados, armados e alimentados, os brasileiros estavam diante de Montese. Mal sabiam eles que aquele seria o maior desafio da aventura de guerra que estavam vivendo. “Então, isso é Montese” disse Pedrinho, abaixado na vala, olhando para a cidade medieval, fincada no alto da colina, com uma grande torre apontando para o céu. A cidade era uma massa escura no lusco fusco do amanhecer. O cabo Quevedo, ao lado dele, terminou cuidadosamente de enrolar um cigarro, acendeu-o e soprou a fumaça para o ar. “Essa cidade está me dando um mau pressentimento” disse. O sargento Nilson deu um tapa nas suas costas. “Pressentimento não é coisa de gaúcho, cabo. Não leu a Ordem do Dia? Jogue a precaução ao vento.” “Essa poesia barata só podia vir dos americanos” rosnou o segundo sargento Bóris, com um sorriso perverso. “Poesia barata ou não, essa é a ordem” falou Nilson começando a erguer a voz e começando a se irritar. “São seis horas em ponto e já já vamos receber ordem de avançar. Vamos lembrar uma coisa, bando de pederastas passivos: esta pode ser a última batalha da guerra. Tratem de ficar vivos.” Ainda estava escuro, mas a claridade do sol espreitando atrás dos cerros começava a definir os contornos da paisagem. O terreno na frente deles parecia uma escadaria natural. Era formado por grandes degraus que se alternavam até as primeiras casas, todas de pedra. “Os caminhos estão minados, portanto vamos atrás dos sapadores, com cuidado onde botam o pé.” Aquela podia ser a última batalha da guerra, essa era uma frase que andava no ar, solta como uma nuvem, e isso era uma frase que atingia os soldados com sua ambiguidade de esperança e medo. Por um lado o fim da guerra estava próximo, por outro: “Perder a vida na última batalha é triste demais” disse o alemão Wogel. “É deprimente” disse Quevedo. O sargento Max passou com seu Grupo de Combate. Nilson o interpelou: “Onde vão?” “Sondar. Vamos tentar nos aproximar até aquela casa que tem uma fumacinha saindo da chaminé.” “Cuidado com as minas.” “Vamos devagar.” “E os jornalistas?” “Me livrei deles. Se grudaram em mim como carrapato, queriam seguir junto com a patrulha, mas fiz ver ao coronel Pitaluga que não era possível, eles iriam nos desviar o foco.” “Tá certo. Boa sorte, Max.” E o sargento Max começou a avançar com sua patrulha, aproveitando os desníveis da vasta escadaria natural que levava até os arredores de Montese. Estava já bem próximo da casa da qual saía fumaça pela chaminé quando uma rajada de metralha atingiu o grupo. O sargento Nilson sentiu um impacto na alma. “Meu Deus, acertaram o Max.” Todos viram o lendário sargento Max, o Rei das Patrulhas, dobrar o corpo e cair sobre os joelhos lentamente.

Monte Castelo: A Conquista

46.


Sentindo cada vez mais próximo o ruído das explosões, Brayner foi se aproximando do Posto de Comando da Infantaria, onde estava o general Zenóbio da Costa no comando do ataque. Encontrou Zenóbio carrancudo, com as mãos ás costas, e caminhando de um lado para o outro, olhar cravado no coronel Caiado de Castro. Este, manobrando um telefone e o rádio, falava ansiosamente com o major Uzeda, detido na última etapa da arrancada para o cimo do Monte pela barragem de canhões e morteiros dos alemães. Na sala ardia um fogo na lareira, e vários oficiais e sargentos, todos atarefados, mexiam em papéis e falavam aos telefones. Brayner solicitou para falar a Zenóbio reservadamente. Afastaram-se para outra sala. Brayner contou a visita do Mark Clark e a pressão de Crittenberg. “Que ele fizesse isso já era de se esperar.” “Sabemos, general, mas o general Mascarenhas também está preocupado com a lentidão.  Ele quer que o Castelo seja tomado ainda com a luz do dia.” “Eu sei, eu sei, isso é o que todos querem, eu quero, você quer, o comandante em chefe quer. Quem tem de dar a ordem para o lance final é o Caiado, mas ele não se resolve.”  E num arrebatamento, abriu a porta e voltou para a sala de comando, aproximando-se do coronel Caiado de Castro. “Já disse a este camarada que dê imediatamente ordem para o ataque final ou eu irei pessoalmente atacar com o batalhão de reserva e o pessoal do estado-maior da Infantaria Divisionária que está comigo. Não tem outra alternativa.” Caiado de Castro se levantou num salto, muito pálido. “General, meu único intuito com a cautela é evitar o sacrifício inútil de vidas. Estamos sofrendo muitas perdas.” “Mas, meu caro, você quer conquistar o Monte Castelo com homens ou com flores?” Todos os olhares da sala convergiram para os dois homens. Brayner interviu: “Afinal, o que devo dizer ao general Mascarenhas?” “Diga ao general Mascarenhas que dentro de 20 minutos estarei em cima do monte Castelo, sem qualquer dúvida.” E dirigindo-se ao tenente-coronel Ademar de Queiroz, seu chefe de comunicações: “Transmita ao comando da Artilharia Divisionária o pedido de uma última concentração de 5 minutos de duração com a mais viva cadência e o máximo de potência, com a totalidade dos meios. Vamos partir para o ataque final. Brayner, essa é minha resposta ao general Mascarenhas.” E estendeu a mão para apanhar o telefone de Caiado, mas este não o entregou. Com amarga dignidade disse: “Eu estou no comando dos batalhões, general. Eu darei a ordem.” E discou mais uma vez o aparelho. “Alô, major Uzeda? A ordem é atacar agora. Agora. Com tudo. Só pare quando estiver na cota 977.” Depositava lentamente o telefone no apoio quando Brayner o apanhou. “Com licença. Alô, major Uzeda? Aqui é Brayner. O comandante da Divisão está acompanhando sua magnífica ação. Eu o felicito e desejo boa sorte no lance final.” “Obrigado, meu coronel. Eu não o decepcionarei, meu caro mestre.” Brayner largou o telefone e olhou os rostos ao redor. Havia intensa emoção em todos. “Vou indo, senhores, vou levar essa mensagem ao comandante.” E saiu porta afora, seguido pelos seus dois acompanhantes. A 700 metros dali, o major Olívio Uzeda coçou o bigode, olhou para o tenente Iporan e o sargento Nilson e disse: “Agora não paramos mais. Vamos com tudo, macacada.” E durante curto instante ficou como flutuando longe, pensativo, e então sacudiu a cabeça com força e levantou a mão que empunhava a metralhadora. Fez o sinal de avançar. Jogou o corpo para a frente.  E sentiu que todo seu batalhão, mais de 800 homens, como eletrizados, o seguiram no movimento. O major Franklin, no outro lado da montanha, percebeu que aumentava consideravelmente o fogo da artilharia brasileira contra o Castelo e gritou: “O Cordeiro tá querendo destruir o mundo! Alerta! Vamos nos preparar para a arrancada! Todo mundo um passo a frente!” E o terceiro batalhão do ataque, comandado pelo major Sizeno, o último a entrar em movimento, recebeu ordem de avançar pelo centro. A montanha parecia viva, com aqueles milhares de homens se deslocando sobre ela. “Formigas no lombo de um elefante” murmurou Bóris Schneidermann para Carlos Scliar,agarrado ao telefone, ambos a meio metro do general Cordeiro de Farias, calculando as coordenadas e mantendo o pedido de Zenóbio enquanto os homens rastejavam e se aproximavam cada vez mais do cimo da montanha maldita. “A noite vai chegar” disse Uzeda, “vamos fazer mais um esforço, moçada!” E Pedro Diax e o gago Atílio e o alemão Vogler e o esclarecedor Bandeira e o cabo Quevedo e os sargentos Nilson e Max e os tenentes e os capitães todos rastejando, resfolegando, suando, se espetando nas pedras e gemendo e ficando surdos com tanta explosão foram subindo e se arrastando e de repente  aparecem vultos de alemães com as mãos para cima. “Entreguem as armas, entreguem as armas!” Os alemães não entendiam mas entregavam as armas, mais alemães surgiam dos buracos, pálidos e atarantados e eram cercados e desarmados e empurrados para um canto e os brasileiros subiam cada vez mais e como num sonho o major Olívio Uzeda galga uma rocha redonda e percebe que está praticamente no alto da montanha e dá um grito selvagem, um grito de alívio, um grito sufocado lá dentro desde três meses atrás quando pela primeira vez tentaram subir a montanha e foram escorraçados e então ele vê vultos a 100 metros dali e são brasileiros, são mais brasileiros do Sampaio e são nada mais nada menos do que os homens do Batalhão Franklin, então eles conseguiram meu Deus, eles também conseguiram, e o major Uzeda sente as forças triplicarem e corre cada vez mais para o alto da montanha e puxa um dos soldados do Batalhão Franklin e pergunta cadê o Emílio, cadê o Emílio e ouve a voz do major Emílio Rodrigues Franklin dizer estou aqui estou aqui e então os dois soldados se olham e depois se abraçam.

Monte Castelo: O Segundo Dia

45.


Ás seis da manhã, quando o sol frio do segundo dia do ataque iluminou a montanha, os batalhões do major Franklin e do major Uzeda, mais de dois mil soldados, já subiam as trilhas escarpadas. Havia um sentimento em todos os setores das linhas, o sentimento de que “desta vez vai”, como dissera o cabo Quevedo, mastigando sua ração. O batalhão do major Franklin progredira durante a madrugada silenciosamente, sem encontrar obstáculos, e começava a se aproximar das linhas de trincheiras alemãs mais avançadas. Mas aí parou: foi como se os defensores da montanha tivessem acordado de repente. Um fogo intenso e bem distribuído dizimou a vanguarda do batalhão Franklin em poucos segundos, causando súbito pânico, obrigando-os a se proteger e deter a progressão. “Muita calma, muita calma” dizia o major sem parar “vamos esperar o fogo diminuir e tentar um envolvimento.” Mas na verdade, o envolvimento daquele setor alemão só poderia ser feito pelo batalhão Uzeda. Este avançava por um setor mais íngreme, quase vertical, precisando utilizar equipamentos de alpinista que mal sabiam manejar. O gago Atílio ia pegado a Pedrinho. O gago Atílio tinha fobia de altura e subia praticamente de olhos fechados. Perto dele o major Uzeda atendeu o rádio que o sargento Horácio lhe estendeu. Era Mascarenhas de Moraes. “Como está a progressão, major?” “Estamos quase chegando na cota determinada, comandante.” “Muito bem, major.  Estamos todos confiantes na sua ação.” “Obrigado, comandante, não vamos falhar.” E então o major Uzeda estremeceu de horror porque o pescoço do sargento Horácio foi violentamente rompido em dois e esguichou sangue ao redor, encharcando sua jaqueta e suas mãos que instintivamente protegeram o rosto. Todos se encolheram quando nova rajada de metralha caiu sobre eles, pendurados na beira do abismo.  “Cobertura!” gritava Uzeda “tenente Iporan, cobertura!” O tenente Iporan vinha logo atrás deles em missão de cobertura e estava completamente desconcertado, porque não atinava de onde vinha o fogo. Nova rajada cai sobre os homens de Uzeda e três deles despencam e rolam pelo abismo, ficando presos vários metros abaixo em saliências da rocha. O tenente Iporan chama o sargento Nilson que chama o cabo Quevedo que chama o gago Atílio que se agarra a Pedrinho. “De onde vêm esses tiros?” “Dali.” Vinham detrás deles, de um local onde teoricamente jamais poderiam estar os alemães. Então ele viu um capacete, e em seguida dois capacetes.“Nossa Senhora” exclamou Pedrinho “são os americanos!” “São os caras da Décima!” “Alto, alto, não atirem, somos amigos, somos brasileiros, não atirem!” o capacete se ergueu um pouco mais e viram dois olhos arregalados de espanto. “Brasileiros?” O major Uzeda olhou para o rosto dilacerado do sargento Horácio e levantou a metralhadora contra os homens da Décima, trêmulo de fúria. “Americanos filhos da puta!” Mas o tenente Iporan se colocou na sua frente. “Calma, major, por favor!” A voz de Mascarenhas de Moraes ecoou no aparelho de rádio. “Major Uzeda, major, o que está acontecendo? Responda.” No Posto de Comando todo o Estado Maior ouvia pelos aparelhos de transmissão em fonia as vozes crispadas de ódio. “Fomos atacados pelas costas por homens da Décima, comandante. O sargento Horácio foi morto, e possivelmente há outros. Fomos atacados sem aviso e pelas costas.” “Mantenha a calma, major, é uma ordem. Não revide.” “Sim, senhor. Trate de se entender com eles, devem estar perdidos e confundiram vocês com alemães.” “Sim, senhor.” E foi o que aconteceu. Um capitão da Décima apareceu pouco depois, mas ao contrário do que esperavam, não parecia abalado nem pediu desculpas. “Posso ceder alguns dos meus homens para substituir os que o senhor perdeu, major” disse. Uzeda quase saltou no pescoço dele. “Quero que você saia da minha frente imediatamente. Imediatamente.” No Posto de Comando, ao iniciar a tarde, o segurança anuncia que se aproxima um grupo de visitantes. Mascarenhas vê entrar na sala da casa de pedras o comandante do XV Grupo de Exércitos, nada menos que o general Mark Clark, tendo a seu lado o general Truscott. E não era só, estavam também o general Crittenberg e mais quatro generais, sete ao todo com seus estados-maiores. A sala ficou pequena. Após os cumprimentos, Crittenberg pediu para Mascarenhas definir a situação. O major Vernon Walters traduzia. Crittenberg não gostou. “O Batalhão Franklin está detido? E o que o senhor está fazendo?” “O Batalhão Uzeda está executando uma manobra de envolvimento sobre os alemães que bloqueiam a progressão de Franklin pelo norte. Tiveram um contratempo, mas estão se aproximando, embora com lentidão. A região é muito escarpada.” “O senhor já empregou alguma reserva?” “Não. E não acho que seja o caso, pelo menos por agora.” “Onde se encontra sua reserva?” “Um batalhão em Gaggio Montano, o outro em Silla. Ambos serão acionados no momento oportuno.” Os dois generais se olharam com intensidade. Parecia que em alguns segundos um deles explodiria. Crittenberg apontou seu relógio de pulso. “A tarde já começou e ainda estamos longe de tomar o Monte Castelo. Nada! Mais uma vez.” Mascarenhas ia dar uma resposta dura, quando  Mark Clark interferiu: “O responsável pela manobra é o general Mascarenhas, senhores. A manobra está em curso e ele não solicitou nenhum auxílio. Não nos compete opinar neste momento. Na verdade, general Mascarenhas, passamos aqui apenas para desejar boa sorte. Senhores, eu os convido a nos retirarmos, porque o general Mascarenhas tem mais o que fazer do que nos dar atenção.” Crittenberg fechou o rosto, mas nada disse. Todos se retiraram com a mesma cautela com que chegaram. Mascarenhas sentou numa cadeira e deu um suspiro profundo. “O cowboy tem razão. A progressão está lenta. Já era para estarmos lá em cima.” “Perdemos mais de uma hora por causa da confusão com o pessoal da Décima que nos atacou, comandante” disse Brayner “até que eles se retirassem de nossa zona de ação e fossem substituídos não conseguimos avançar. Na verdade, segundo o major Uzeda, perdemos a chance de envolver completamente os alemães por causa desse contratempo. Eles conseguiram se retirar, inclusive arrastando canhões e armamentos.” “Muito bem, Brayner, mas vamos agir. Você vai subir a montanha.” “Sim, senhor.” “Quero que você faça um contato pessoal com o general Zenóbio. Diga-lhe que a Ordem de operações deve ser cumprida na íntegra. Diga-lhe que desejo chegar ao alto da crista ainda com a luz do dia. Agora vá, meu amigo, e tome cuidado.” “Sim, caro mestre, encontrarei o general Zenóbio em no máximo 30 minutos.” Brayner saiu da casa e olhou para a montanha gelada. Ia subir. O tenente Reverbel, seu ajudante, juntou-se a ele. Com o sargento Amaro de guia, começaram a subir a montanha que ardia ao som dos canhões e das explosões dos obuses.

Monte Carlo: A Decisão

44.


“Um batalhão tem mais ou menos 700 homens, estamos atacando com três batalhões, mais de 2 mil homens, portanto.” “E quem comanda os batalhões?” “O coronel Caiado de Castro e os majores Uzeda e Franklin. Cada um comanda um batalhão. Esses três oficiais são os encarregados de chegar ao topo da montanha, tomá-la dos alemães e manter o terreno conquistado.” “Mas esses batalhões não são daquele mesmo regimento que... bem... foi batido... digamos, fracassou... nos  ataques anteriores?”  Havia uma ponta de maldade na pergunta do jornalista, já que todos sabiam a história do confronto do Regimento Sampaio com os alemães defensores do Monte Castelo. E havia mais: todos os que sabiam, agora observavam. Aquele era um momento de decisão: o Regimento Sampaio estava jogando toda sua história, passado e futuro, naquele único ataque. “Ele mesmo” respondeu o major. “O Sampaio. O Onze de São João dos Queijos. Foi batido e humilhado. Mas o general Mascarenhas tem confiança nele. O Sampaio vai á forra, meu amigo.” “Mas não é uma temeridade? E se não der...” “Vai dar. Desta vez o mecanismo do ataque é aquele que a FEB vem postulando desde o novembro do ano passado, quando começaram estas operações” disse o major Alcyr, admirando a audácia do repórter brasileiro que conseguira chegar até o Posto de Comando da 10º. Divisão de Montanha, onde o major servia como oficial de ligação. Como o repórter tinha chegado ali era um mistério. “A Décima já cumpriu a Fase A do plano, que é tomar as elevações dos montes Belvedere e Gorgolesco. Neste momento está se deslocando para Capela de Ronchidos. Depois deles ocuparem essa área o Sampaio sobe a montanha, com proteção nos flancos, fato que não aconteceu nas vezes anteriores. A operação da Décima na noite anterior foi exitosa mas nada fácil. Logo na saída, um dos projetores que deveriam fazer o luar artificial para os montanheses se equivocou e iluminou a base de partida onde se encontrava a Décima aguardando a ordem de iniciar o ataque. Os alemães os viram e mandaram um forte fogo de barragem, o que causou pesadas perdas e um início de pânico. As perdas foram tão graves que o batalhão atingido foi substituído por um da reserva. Mas normalizadas as coisas o ataque foi ordenado e eles tomaram o Gorgolesco e o Belvedere, subindo pelo lado mais vertical, onde os alemães jamais imaginariam que fossem atacados.” “E quando o Sampaio ataca?” O major Aldyr olhou o relógio. Eram 15 horas em ponto. “Agora.” A quatro quilômetros dali, em seu Posto de Comando na subida da montanha, Zenóbio apanhou o telefone e falou: “Caiado? Está me ouvindo? Passe a ordem: comece a ofensiva.” E assim, as grandes massas de soldados do Regimento Sampaio começaram a se mover lentamente, subindo a encosta íngreme. Estava um dia azul e gelado, ainda havia espaços cobertos de neve, mas a progressão era a luz do dia, o que diminuía o desconforto mas aumentava o perigo. O Grupo de Combate do sargento Nilson marchava bem a frente dos demais, tendo o soldado Bandeira como esclarecedor. Eles subiam com a sensação esquisita de que já conheciam aqueles caminhos. “Estivemos aqui antes” disse Bandeira, “logo ali fica Abetaia.” Aquele nome provocava amargas lembranças: lá tinham entrado no Corredor da Morte, sem a prometida proteção dos flancos, e deixaram dezenas de mortos sem sepultura. Nesse momento o ordenança de Zenóbio passa o telefone para ele. Zenóbio escuta. É o major Aldyr: “General, a Décima está encrencada na região de Capela de Ronchidos.” “O que acontece?” “Estão detidos pelo fogo inimigo. É muito forte. Se o batalhão Uzeda avançar vai ficar sem proteção, a história vai se repetir.” “Me mantenha informado.” E desligou. Se os americanos não ocupassem Capela de Ronchidos o pesadelo regressaria. O batalhão Uzeda ficaria num fogo cruzado, servindo de alvo. O que fazer? Mandar Uzeda esperar pelos acontecimentos ou continuar avançando? Enquanto pensava ouviu o ronco dos aviões passando baixo, um ronco possante que lhe deu um ímpeto de alegria. “É a FAB! São os nossos.” Correu para fora da casa de pedra e viu a esquadrilha de bombardeiros voando em formação sobre as montanhas, perfeita contra o céu azulado. “É a nossa força aérea! São os malucos do Moreira Lima! Agora os alemães vão sentir as bombas do Senta a Pua! Quero o Uzeda avançando, a FAB veio dar uma mão para a Décima.” E foi isso o que aconteceu. A Força Aérea Brasileira bombardeou com precisão os canhões e tanques alemães, destruindo muitos. O poder de fogo dos defensores do Monte Castelo diminuiu drasticamente. Os americanos da Décima sentiram o vacilo e tornaram a avançar com energia, saindo dos esconderijos. O batalhão Uzeda arremeteu pelo Corredor da Morte, mas desta vez não caiu em armadilha alguma. As 17;30 hs brasileiros e americanos se encontraram a beira de um precipício e houve um instante de estranhamento quando ficaram frente a frente. Mas logo o largo sorriso do inconfundível esclarecedor Bandeira desarmou os corpulentos soldados da Décima de Montanha. “São os brasileiros!” “São os americanos!” gritaram uns para os outros. Americanos e brasileiros confraternizaram durante alguns instantes, trocaram abraços, cigarros e chocolates. O ordenança passou o telefone para Zenóbio. “É o general Mascarenhas de Moraes.”  “Zenóbio, o general Crittenberg dá os parabéns pela arrancada da 1ª. Divisão de Infantaria e manda sustar a progressão por hoje. A tarefa e manter rigorosamente as posições conquistadas. Vamos tomar fôlego para a última etapa do ataque, amanhã.” “Muito bem, general, amanhã é que vai ser duro.” “Exatamente. Prepare patrulhas fortes para sondar o inimigo durante a noite, busque o contato, e ocupe as posições que ele abandonar.” “Sim, senhor, comandante.” E desligou, procurando decifrar o pressentimento que o rondava. Naquela noite os três batalhões do Regimento Sampaio dormiram muito pouco, atentos a noite gelada, a ruídos inesperados, a canhonaços distantes ecoando nas vastidões escuras. Quando começasse a amanhecer sabiam que teriam de retomar a marcha e subir a parte mais difícil da escalada e, quem sabe, enfrentar o maior desafio de suas vidas. “Quanto falta para chegar lá em cima, sargento?” perguntou Pedrinho. O sargento acendeu o cigarro: “Muito.”

Frente a Frente com Getulio

43.


Quando o avião pousou no aeroporto de Nápoles, logo após a porta abrir e sentir o impacto do vento gelado no rosto, Brayner viu, ao pé da escada, o general Mascarenhas de Moraes. Fizeram continência, trocaram um discreto abraço e rumaram para o bar do aeroporto, onde se instalaram numa mesa a um canto. Pediram café. Brayner não notou o menor sinal de ansiedade no rosto taciturno do general comandante, a não ser o sorriso quase imperceptível que ele usava para acompanhar suas conversas nos momentos de crise. “Então, como ficaram as coisa por lá, a nosso respeito?”  “Em absoluta tranquilidade. O presidente manda lhe dizer que confia inteiramente na sua ação de comando e que não cogita nem admite sua substituição.”  E então Brayner viu o rosto do comandante expressar um alívio do mesmo modo imperceptível como o sorriso, fenômeno que sempre o deixava espantado. “Conte-me tudo.” Com pormenores tais como clima e cores da cidade distante, o coronel contou suas andanças no Rio de Janeiro, a tensa entrevista com o Ministro da Guerra, a visita a família dele, Mascarenhas, e a longa audiência com o ditador Getúlio Vargas, a quem ambos chamavam de presidente por pudor profissional. “Expliquei ao presidente com minúcias nossos passos aqui na Itália, general, não omiti nada. Ele foi direto; perguntou qual a restrição que os oficiais faziam ao senhor. Se era incapaz? Frouxo? Mau para os comandados? Respondi que até esta data a FEB não cedeu um só passo de terreno conquistado. Disse para ele: por caso recuamos para trás das extensas linhas que nos foram confiadas? Nunca. Deixamos, por acaso, alguma tropa americana exposta ao perigo, em virtude de recuo? Nunca. Houve alguma queixa dos comandos da 92ª. Americana ou da 6ª. Divisão Blindada Sul-Africana ou mesmo da Task Force 45 por termos deixado de cumprir preceitos de ligação ou solidariedade em combate? Nunca. Não conseguimos ainda tomar o Monte Castelo, e há boas razoes para isso, que não são compreendidas pelo general Crittenberg, comandante do IV Corpo, homem impaciente e até mesmo preconceituoso com os latinos. Mas não perdemos a consciência de nossos objetivos e acredito que –e eu disse com autêntica convicção-  se nos derem as condições que manifestamos diversas vezes, tomaremos a maldita montanha.” “Deus te ouça, Brayner. Assim vou para Lucca com mais tranquilidade.” “O que há em Lucca, general?” “Reunião com o Comando Aliado. Vamos discutir novo plano de ataque ao Monte Castelo.”  Brayner suspirou. “Na sua ausência estive algumas vezes com Mark Clark. Ele nos compreende bem melhor do que o Crittenberg. Ele não disse claramente, mas deu a entender, que a Task Force fracassou em suas tarefas e nos arrastou com ela. Me apresentou ao general George Hayes, comandante da 10º. Divisão de Montanhas. Conversei muito com esse general. Contei a ele pormenorizadamente todos os ataques. Contei tudo. Ele ouviu e entendeu. Ele me disse: a 10º.  é uma tropa recrutada e adestrada na região das Montanhas Rochosas. Temos um imenso respeito pelas montanhas. Compreendo as dificuldades que os senhores estão encontrando. Olha, Brayner, acho que vamos ter um parceiro a altura. Tenho fé de que agora vamos subir até o topo e ninguém nos segura.” E assim, naquele final de inverno em Lucca, o Comando do IV Exército e o Estado Maior da FEB traçaram um longo e minucioso plano de ataque ao Monte Castelo. O general Crittenberg teve o privilegio de escolher o nome da operação, e sua ironia foi certeira. “Encore” disse ele. “Como os senhores devem saber, encore em francês quer dizer ainda ou mais uma vez. Me parece um nome apropriado.” Nem todos apreciaram o humor do general, mas o nome foi oficializado e centenas de oficiais brasileiros e americanos durante dias e noites elaboraram cada detalhe da operação Encore. Uma das premissas era verificar a ordem de batalha do inimigo, e para isso foram intensificadas as patrulhas buscando contato e aprisionamento de alemães. “Brayner” disse Mascarenhas na madrugada de 19 de fevereiro, aquecendo as mãos próximo a um fogão a lenha “seria negar a evidência dos fatos não reconhecer nossa preocupação com o moral da tropa, particularmente o 1º. Regimento de Infantaria, o que mais sofreu com o clima de maldição que se criou com a montanha, mas eu acredito nos comandantes dos três batalhões. São homens corajosos.” “Sem dúvida, general. Falei longamente com o coronel Caiado de Castro e com os majores Uzeda e Franklin. Estão confiantes, seguros, e loucos para ir a forra.” “Muito bem, mas não vamos perder a cabeça. Não se trata de uma vendeta, mas de uma operação militar.” “Pedi um relatório sobre o estado da tropa e recebi um muito otimista, general. Estamos prontos.” Na noite de 19 de fevereiro, exatamente as 20 horas, uma patrulha comandada pelo sargento Nilson, em ação silenciosa, ocupou uma casa de pedra assobradada, bem diante do Monte Castelo. Um pouco antes já tinham sido ocupadas outras duas casas, todas próximas ao monte, sem que os alemães se apercebessem. As três casas dominavam todo o vale do Silla. Dali se tinha um amplo visual sobre a zona de ataque. Com extrema cautela foram transportadas para as casas e montadas pelos especialistas ligações telefônicas e de radio. As 20:30 hs o general Mascarenhas de Moraes, o coronel Brayner e seu Estado Maior e os oficiais adjuntos se esgueiraram através da escuridão e entraram na casa assobradada. Ali funcionaria o Posto de Comando da FEB. As outras duas casas ocupadas serviriam de Postos de Observação. Nessas casas seria centralizada toda a rede de informações, sob o comando do tenente coronel Amaury Kruel. O oficial de ligação designado junto a 10º. Divisão de Montanha foi o major Alcyr de Ávila Melo. Tudo estava pronto. Na base de partida do ataque o general Zenóbio deu o sinal para o inicio da missão. Os comandantes de batalhão, Caiado, Uzeda e Franklin acionaram seus capitães. Os tenentes e os sargentos foram passando a ordem de avançar. Pedro Diax, com a perna remendada, o gago Atilio, o alemão Wogler, o cabo Quevedo, o negro Bandeira e aquela multidão silenciosa de soldados começaram a subir a montanha maldita, mais uma vez.

A Neve Não Para

42.

O segundo sargento Bóris era comunista de carteirinha. Isso causava certa estranheza entre os praças. Eles sabiam que havia muitos comunistas no esquadrão, até mesmo alguns oficiais, mas o segundo sargento Bóris tinha aquele jeito de padre e nenhum medo de dizer que era comunista, mesmo para o sargento Nilson, que ficava vermelho de brabo cada vez que ouvia isso. Se tinha coisa de que o sargento Nilson não gostava era de comunista. Depois que pegaram o segundo sargento Bóris falando com um dos comandantes da resistência italiana, “todos comunistas” segundo o sargento Nilson, no mais coloquial e fluente italiano, a estranheza em torno dele aumentou. O segundo sargento Bóris trazia em sua mochila livros e mais livros. O cabo Quevedo gostava de colocar a mão sob a mochila do segundo sargento Bóris, avaliar seu peso e sacudir a cabeça. Logo se descobriu que o segundo sargento Bóris, além de engenheiro, sabia falar vários idiomas (ali estava ele falando com os partigiani como se fosse em português) e não parava de rabiscar coisas misteriosas numa caderneta de capa preta. Isso não era de estranhar porque havia uma quantidade enorme de praças, sargentos e oficiais que rabiscavam secretamente seus diários. O sargento Nilson andou resmungando alguma coisa como “esses espiões comunistas filhos duma égua” mas o fato é que a postura do segundo sargento Bóris era inatacável. Era o mais profissional, o mais atento, o mais disponível para a ação e o trabalho. Passava a maior parte do tempo cochichando nos cantos com os guerrilheiros italianos, é verdade, e não gostava de se abrir. Então, numa daquelas noites geladas, (a neve não parava) ele disse: “Os aliados entregaram os partigiani.” O quê? Como?  Estavam na cozinha de uma das últimas casas da rua principal de Gaggio Montano, de olho na sopa que fervia, cercados pela numerosa família de agricultores. “Vocês não viram que pararam de lançar suprimentos para os guerrilheiros? Há quanto tempo não passa um avião e não larga um paraquedas com víveres e armas ou munição? Desde que o general Alexander discursou na rádio, agradecendo a ajuda deles mas dizendo que o inverno ia ser muito forte e era melhor dispersarem. Isso mesmo. Dispersarem. Mas dispersar para onde? Para suas aldeias, suas casas e colocar o risco de suas famílias serem massacradas?” A voz de Bóris era suave e controlada, mas os donos da casa perceberam que os outros soldados se inquietavam, que seus olhos se concentravam no sargento que falava. “O que os guerrilheiros vão fazer com as pessoas que estão com eles, pilotos abatidos que recolheram, prisioneiros que conseguiram escapar, agentes de ligação, como vão esconder e manter o arsenal se não puderem sobreviver nas montanhas? Sabem o que estavam me dizendo ainda hoje? Que já saiu na ordem do dia do comando alemão na Itália e das forças fascistas que os aliados vão dar um desafogo na Linha Gótica. Que agora eles não vão se preocupar mais com americanos e brasileiros, mas somente com os guerrilheiros italianos. A fala de Alexander foi como um sinal para os alemães, entenderam? Vai começar a temporada de caça de guerrilheiro em grande escala. Por obra e graça do grande comandante dos aliados.” Havia um silêncio incômodo na pequena cozinha. O gago Atílio começou a sentir mais forte o calor que emanava do fogão a lenha. “Mas não é a primeira vez que eles fazem isso. Eles me contaram uma coisa de estarrecer. Em maio deste ano, quando do avanço dos americanos a partir de Anzio, e com a necessidade de transpor os montes Aurunci, uma tropa de marroquinos, em torno de 600 homens, comandados por oficiais franceses, recebeu ordem de avançar sem parar pela região, muito difícil e escarpada. Para estimular os mouros foi distribuído um folheto em árabe, pelo próprio comando da tropa, onde dizia que do outro lado daquelas montanhas encontrava-se um vale de belezas extraordinárias, com mulheres sensuais, pomares e vinho. Quando eles chegassem lá, tudo, mulheres, comida, bebida, tudo seria deles durante 50 horas. De 17 a 25 de maio o horror se instalou na região. Os marroquinos estupraram centenas de mulheres, de jovens, de crianças, torturaram os homens, mataram com extrema crueldade o pároco da vila de Esperia. Só nessa vila de Esperia 700 mulheres foram violentadas e a maioria delas foi contaminada pela sífilis. Mark Clark soube e chamou a atenção do comando do Corpo Expedicionário Francês, mas já era tarde e não havia mais o que fazer, e afinal, os marroquinos receberam ordens dos seus oficiais.” A dona da casa começou a servir a sopa fumegante em pratos de alumínio e os foi passando de mão em mão. Comeram em silêncio, olhando pela janela a neve cair sem parar na noite escura, enquanto o coronel Brayner olhava pela janela do avião que aterrissava no Rio de Janeiro a esplêndida manhã de sol. Brayner tinha tomado pílulas para dormir durante a viagem e sua sinistra calma voltara, agora que estava desperto e antecipava na pele o calor da cidade. Ninguém o esperava no aeroporto, a viagem era secreta. Apanhou um taxi e rumou para casa, pensando na mulher, no susto que ela ia levar, antevia o esforço que ela faria para não chorar e se mostrar valente. Esses pensamentos o emocionavam enquanto via aquela cidade que amava ir passando, enquanto via o perfil dos morros, o reflexo do mar cintilando, jovens de bicicletas nas praças e o trânsito alegre e caótico. Ali não havia guerra. Estranhamente ali não havia guerra nem frio nem solidão nem desespero nem medo. O que calava bem fundo dentro dele, porém, era aquela calma de antes da tempestade, banal e verdadeira tanto na literatura quanto na vida. No dia seguinte ele iria estar frente a frente com o Ditador, com aquele homem estranho que ele não conseguia compreender, e de quem dependeria o destino dos seus companheiros de guerra. Era a pior missão que já recebera e ele teria que saber falar com Getúlio. A FEB dependia desse encontro. Fechou os olhos e ficou imaginando a cidade, ficou imaginando os olhos de Maria quando ela o visse descer do taxi diante da pequena casa branca na Vila Militar. 

A Defensiva de Inverno

41.


“Tomamos Gaggio Montano dos alemães no dia 20 de novembro, já estamos chegando ao último dia do ano e nada da gente arredar pé de Gaggio Montano. Pra dizer a verdade tô até gostando desta vilazinha.” “Gostando, Bandeira? Isto aqui é o fim do mundo.” “As pessoas são simpáticas, todos nos cumprimentam e abrem suas casas para nós.” “Abrem suas casas para nossas provisões, Bandeira, não seja ingênuo.” “Pode me chamar do que quiser, é gostoso repartir com quem precisa esta gororoba que é nossa ração, é gostoso a gente ficar conversando numa cozinha quentinha com o fogão aceso.” “É gostoso ficar olhando para as italianas.” “As vezes elas deixam a gente dar um beijinho.” Ninguém mais ria, as conversas eram um tédio, rondava em todas as mentes a ameaça do descontrole  do impulso sexual agora que não havia mais distrações como a possibilidade de subir a montanha para um ataque em massa. Essa era uma hipótese totalmente descartada. Tudo que podiam fazer era suspirar e esperar, olhar as mulheres da vila, suspirar e esperar. Gaggio Montano estava totalmente coberta pela neve. Gaggio Montano era um amontoado de casas no alto da montanha, bem ao pé da elevação pontuda que tinha o enigmático nome de Monte Castelo. Os moradores diziam que antes ali havia um castelo, quando os brasileiros conseguissem subir até lá em cima, onde estão os alemães, eles veriam as ruinas do castelo. Uma semana antes dos brasileiros tomar Gaggio Montano os alemães promoveram um massacre em represália á morte de um soldado pelos partigiani. Foi uma ação fria e cruel. Setenta pessoas foram arrebatadas de suas casas,  a maioria eram velhos e mulheres, e foram obrigados a cavar uma longa cova, longa e profunda, a menos de 100 metros da rua principal e depois ficaram todos em fila, trêmulos de pavor, quando o pelotão de fuzilamento se colocou diante deles. O padre Giordano chegou correndo e se ajoelhou na frente do tenente que comandava o pelotão de fuzilamento, mas levou um pontapé da pesada bota na boca. O rosto do padre de 25 anos se encheu de sangue. Ele viu o esguio tenente apontar a Luger para ele e esboçou o gesto do Sinal da Cruz mas o tenente apertou o gatilho e o padre de 25 anos caiu para trás. Dois soldados o arrastaram pelos pés e o jogaram na cova. Uma gritaria irrompeu da fila de velhos e mulheres. No mesmo instante seus corpos foram cravejados de balas e foram tombando um a um, dentro da cova. Agora a neve tapa a cova, agora os alemães fugiram da cidade e se instalaram nas grimpas mais altas dos Apeninos e soldados brasileiros, morenos, negros, pardos, vagam pela vila, não sabem o que fazer para afastar o tédio e o frio e a desesperança que a enorme montanha despeja sobre eles. Quevedo, o negro Bandeira que tinha dado baixa do hospital, o gago Atílio e o segundo sargento Bóris estavam sentado junto a um fogão, espiando de vez em quando pela janela. Nevava. Nevava sem parar a dez dias. Quevedo falou olhando pela janela: “Hoje em dia não tem mais carga frontal, dando grito e reboleando o facão como no tempo antigo.” Todos olharam para ele. “Meu pai me contava da revolução de 30, ele participou de muita carga á cavalo, dando grito e reboleando o facão.” Bóris sorriu. Esse tal cabo Quevedo sempre o surpreendia.  “E eu sei por que dava pra fazer uma carga frontal contra o inimigo, reboleando facão e tudo, o que é uma coisa de homem. É que antigamente, no tempo do meu pai, as balas vinham mais devagar, dava tempo pra o cidadão se abaixar, hoje em dia essas metralhadoras, essa tal de Lurdinha é uma  um despropósito de bala em cima da gente, não dá nem pra sair da frente. A guerra perdeu o seu lado humano, como diria aqui o companheiro Bóris.” “A guerra não tem nada de humano, gaúcho, eu nunca disse isso.” “Não disse mas devia, um homem que anda o tempo todo carregando essa tonelada de livros devia dizer uma coisa do tipo.” “Me poupe de sua ironia de troglodita, cabo Quevedo.” “Opa, ofendi o homem. Desculpe, camarada Bóris, eu me recolho á minha ignorância, não falo mais. Vou ficar aqui de boca bem fechada, olhando essa nevezinha cair.” O segundo sargento Bóris sacudiu a cabeça, perplexo. O cabo Quevedo ainda resmungou, enigmático: “O segundo time do Ferro Carril ganha essa guerra sozinho.” Bem nesse momento o coronel Brayner chegava ao aeroporto de Pisa. Ele sabia que estava tomado duma calma fora do comum, afinal estava voltando ao Brasil em missão especial do general comandante, teria sua amada Maria nos braços por algumas noites quentes do Rio de Janeiro, afinal lá era pleno verão, e aqui essa neve, essa neve que não para. O jipe o deixou na calçada, ele entrou no grande prédio, abrindo a pasta para apanhar os documentos que devia apresentar. Em dez horas veria o Rio de Janeiro. Mas não estava excitado nem ansioso. Essa calma que o dominava era mau sinal. Estavam a beira de um precipício onde cairiam todos eles, mas principalmente o exército como instituição, o Brasil como nação, todos eles, oficiais brilhantes ou não, como seres humanos derrotados e fracassados. Ele não tinha condições de reverter o quadro. Teria uma audiência com Getúlio Vargas mas não sabia em que isso poderia ajuda-los. Sentiu um frio na barriga quando o avião levantou voo, estava voltando para o Brasil e tudo o que levava no peito era amargura e desesperança.

O Natal de 44

40.


O fogo na lareira aquecia a sala toda, os rostos estavam corados e a grapa começava a soltar as línguas. A neve caía sem parar lá fora. Para os homens ali reunidos isso  dava um sabor nostálgico para aquele evento. Eram todos católicos. A neve em dezembro era um símbolo cultural patético  e deprimente, mas a mesa montada para a celebração de Natal no hotel onde funcionava o QG da FEB estava festiva. No centro, o comandante em chefe, general Mascarenhas de Moraes, e de cada lado dele os generais Zenóbio e Cordeiro de Farias. Diversos oficiais completavam a mesa, em torno de quinze, e havia um convidado especial, o major Vernon Walters, o oficial de ligação e intérprete, que tanto participara das tensas conversas com Crittenberg. Vernon se debruçou sobre Mascarenhas e sussurrou: “Folgo em ver que os oficiais de seu Estado Maior não farão as mesmas queixas do visconde de Taunay contra o conde d´Eu, na guerra do Paraguai, general.” “E que queixa foi essa, major?” “A de que não participava da mesa do conde, sendo seu ordenança imediato. E isso que Taunay tinha título de nobreza.”  Cordeiro entrou na conversa. “O conde d´Eu era conhecido por ser um oficial pedante, major.” “E eu sou conhecido por ser um oficial pelo duro de São Gabriel” disse Mascarenhas. Ele sabia que Vernon e Cordeiro de Farias eram profundos conhecedores de História Militar, e gostava de ouvir suas trocas de ideias e discussões sobre fatos do passado.  Zenóbio e Brayner, lado a lado, trocavam confidências em voz baixa. “Recebemos a munição, Brayner. Finalmente nossos amigos americanos se lembraram de nós.” “Amigos, general?” “Ué, aliados não são amigos?” “Não necessariamente. Tenho minhas dúvidas, general. É preciso verificar o estado dessa munição.” Mascarenhas ouviu um resto da frase e pareceu se lembrar de algo. “Major Vernon” disse, “o segundo e o terceiro escalão estão a um mês na Área de Instrução e o material para equipar as unidades ainda não chegou. O que eu devo fazer, major, na sua opinião? Enviar um comando para conseguir esse material?”  Vernon sorriu sem graça. “O próprio general Mark Clark me informou ontem que já ordenou a entrega do material, general.” “Major Vernon” disse Cordeiro de Farias “sinto me meter nesse assunto, mas meia hora atrás eu li o relatório de campanha e descobri que esse equipamento está a disposição desde que o segundo escalão chegou.” “Há um entrave na entrega dos materiais fundamentais para o adestramento da tropa que chega a ser suspeito, major.” “Compreendo sua frustação, general. Vou insistir com o general Mark Clark.” “Obrigado, major. Agora, senhores, não quero mais ninguém fazendo perguntas indiscretas ao major Vernon. Ele é nosso convidado e o estamos deixando constrangido. É noite de Natal, vamos afastar os maus presságios.”  Mau presságio é o que o sargento Nilson sentiu quando viu alguém rastejando na neve e se aproximando do buraco onde estava. Engatilhou a arma mas quem apareceu na sua frente foi o cabo Quevedo. “Tá de serviço, sargento?” Nilson olhou para ele desconfiado. “Por que? E o que você faz aqui?” “Nas noites de Natal baixa em mim o Papai Noel. Tá de serviço ou não?” “Tô sempre de serviço, cabo.” “Então, infelizmente, não vou poder lhe passar este elixir dos deuses, que os italianos chamam de graspa. Sinto muito, sargento.” E já ia se afastando quando o sargento o apanhou pelo coturno. “Espera aí, mandrião. Deixa essa garrafinha aqui.” Quevedo alcançou o cantil para ele. “Um gole só, sargento, a distribuição é racionada.”  Nilson bebeu um gole fundo. “Não fica bem um sargento beber em serviço” disse Quevedo. Estava fazendo mais de 15 graus abaixo de zero, a neve não parava de cair e ali naquele buraco estreito, o fox-hole como se acostumaram a chamar, se apertavam além do sargento Nilson os praças João Wogel e o gago Atílio. A graspa passou de mão em mão, voltou para Quevedo. “Missão cumprida, vou indo para a próxima chaminé.” E viram-no rastejar na neve em direção ao próximo buraco. Todos estavam de branco. Agora que os grandes movimentos de tropa estavam cancelados pela dureza do inverno e a rotina da guerra se restringira a ações de patrulha, havia outra desvantagem em relação aos alemães. Eles usavam fardamento inteiramente branco, o que os tornava invisíveis e aptos para ataques de surpresa. Os brasileiros logo se deram conta da enorme desvantagem. Os prometidos uniformes de inverno não chegavam e foi preciso mais uma vez improvisar. Tudo que era possível transformar em um camisolão branco para enfiar por cima da farda verde-negra foi mandado para as unidades da linha de frente. Então vieram aventais de médicos, enfermeiras, cozinheiros, barbeiros, e vieram lençóis, fronhas, tudo que era branco e podia ser transformado nos camisolões que os soldados que saíam em patrulha ou montavam guarda nos fox-holes enfiavam por cima do uniforme. Eram com esses remendos improvisados que os pracinhas faziam sua camuflagem para se igualar aos alemães na nova modalidade de guerra que começavam a enfrentar. Quevedo chegou noutro fox-hole. A grapa correu de mão em mão. “Ei, Quevedo, pensei que tu ia trazer uma italiana pra nós.” “Essa grapa é italiana, pra ti é mais do que suficiente.” “Ei, Quevedo, conheci um americano que quer me vender um jipe. Quer que eu te apresente?” “Quero. Eu tenho comprador. Quem é o americano?” “Um cara da Decima Divisão de Montanha, um baita dum gringo, diz que o jipe tem os quatro pneus novos.” “Deve ser mentira, mas me apresenta pro cara que eu tenho comprador. Agora me devolve o cantil que eu vou seguir em frente.” Quevedo apanhou o cantil, tomou um gole, viu que acabara, derramou as últimas gotas na palma da mão, apanhou outro cantil, pendurou-o no ombro e seguiu sob a nevasca, arrastando-se em direção ao próximo buraco.

O Inverno da Nossa Desesperança

39.


“Essa montanha vai nos devorar a todos” pensava o sargento Nilson olhando num misto de encanto e terror para a neve que começava a cair. Não era mais aquela coisa fininha do dia anterior. Agora eram flocos gordos, uma imensa cortina branca se acomodando silenciosa sobre a terra, cobrindo-a sem pressa. “Deu no rádio para nos preparamos, vai ser o inverno mais brabo do século” disse o alemão Wogel. “Balela” resmungou Nilson, sentindo que não controlava seu mau-humor, quando viu a figura se movendo no meio da neve que caía. Apontou a arma e esperou até ele estar bem perto e reconheceu aquele paulista meio maluco, o Pereira, que saíra sozinho no meio da noite sem avisar ninguém. Pereira se jogou ao lado dele, recebeu com gula a xícara de café e bebeu um gole. “Achei o capitão” disse. “Arrastei ele pra um lugar seguro. Preciso de uma padiola para trazer ele para cá.” Assim, o Pereira guiou dois padioleiros até onde estava o capitão Bueno, e acompanhou seu resgate até vê-lo se colocado num jipe e levado para o Hospital de Campanha.  Pedrinho viu quando o capitão Bueno entrou carregado numa maca na grande tenda, e viu quando foi cercado por médicos e enfermeiras. Viu os rostos preocupados, ouviu os sussurros, esse está bem mal, coitado, tem o pulmão furado pelas costelas. Mas os olhos e os ouvidos de Pedrinho buscavam outra coisa bem diferente. Buscavam a enfermeira Virginia, tão etérea e loura e elegante, que sorria para ele de modo enigmático toda vez que se aproximava. Naquele segundo dia no hospital o praça Pedro Diax começou a sofrer de um mal que não conhecia, e que se manifestava cada vez que a enfermeira Virginia entrava na tenda. Ela andava sempre ágil e leve, séria e afável, e só ria mesmo quando as enfermeiras Dulce e Zoé se aproximavam dela e cochichavam esses segredinhos de mulher que as faz explodir em risadas. Cada vez que Virginia ria Pedrinho corava, porque o riso dela lhe despertava uma urgência sexual que ele não controlava, e em um momento da manhã, quando ela trouxe as duas pílulas que tinha de engolir, percebeu que ela notava o indecente volume embaixo do cobertor. Seus olhos se encontraram e ambos coraram ao mesmo tempo,  e Pedrinho teve vontade de puxar a coberta para cima da cabeça, mas a voz de Virginia saiu firme e natural: “Suas pílulas, soldado.” Esperou que ele as engolisse, quase se afogou em sua angústia, e depois se afastou, altaneira, sacudindo as ancas de modo quase imperceptível, para maior desgraça exatamente do jeito que Pedrinho mais gostava.  A 200 metros dali as preocupações do comandante em chefe eram de outra ordem. Estava em reunião com os generais comandantes Cordeiro de Farias e Zenóbio da Costa e com o chefe do estado-maior, major Brayner, agora promovido a coronel, e o tema de suas preocupações eram as humilhantes e rancorosas medidas que o general Crittenberg estava tomando contra a FEB. “Não vou aceitar de modo algum sermos relegados para a retaguarda, como se fôssemos um bando de covardes” dizia Mascarenhas. “Já solicitei uma reunião com o Mark Clark e vou dizer tudo que tenho de dizer. Não podemos ser os culpados de todos os fracassos. Eles vão ter de usar a tão louvada capacidade de auto crítica, e não ficar jogando a culpa unilateralmente contra nós.” “O Mark Clark já respondeu?” “Ainda não. Mas vamos agir. Vamos nos preparar para subir mais uma vez essa montanha. Vamos exigir as armas e o fardamento acertados nos acordos entre os dois países. Vamos intensificar os exercícios e estudar mais e mais a geografia da região. Se esse inverno for como dizem vamos todos ficar imobilizados. Eu tenho uma missão para o senhor, coronel Brayner, no Brasil.” Nesse momento, o sargento Nilson foi abordado por outro sargento. “Terceiro-sargento Bóris, da Central de Tiro. Você é o sargento Nilson?” “Ele mesmo.” “Tenho ordem para que me guie até um ponto onde possa fazer medições para tiro.” “Medições, é?”  “É. Sou engenheiro, sargento, e vou fazer cálculos de tiro. Sou o que chamam de controlador vertical.” Quevedo, que estava ali perto, deu um assobio um tanto debochado de admiração. “Puxa vida. Era isso que estava faltando para a gente ganhar a guerra. Um controlador vertical.” Deram risadas ao redor, mas Nilson não gostou. “Quevedo, é você quem vai acompanhar o sargento Bóris na missão. Escolhe dois imbecis igual a ti e escoltem o sargento até um ponto que ele ache satisfatório.” “Com essa neve toda, sargento?” “Agora, cabo Quevedo.” “Sim, senhor, mas essa neve está se transformando em tempestade, nós não recebemos instrução de como se comportar em tempestade de neve.” “Você aprende rápido, Quevedo, isso não é problema.” E assim, com um suspiro, Quevedo, promovido a cabo depois que arrastara Pedrinho pela gola de volta ás linhas, chamou o alemão Wogel e o gago Atílio, “dois perfeitos imbecis como o sargento mandou” e começaram a subir a montanha completamente branca, seguidos pelo terceiro-sargento Bóris e um praça negro de nome Adroaldo. Depois de 15 minutos de subida, Bóris pediu para parar um pouco. Estava sem fôlego. Sentou numa rocha e olhou ao redor. Tudo completamente branco, e a neve caindo compacta. “Vamos ficar imobilizados se a neve não parar.” “Não vai parar, sargento, é o que dizem.” “Se isso for verdade, do jeito como estamos preparados, este é o inverno de nossa desesperança.” O gago Atílio olhou para o terceiro sargento Bóris. “O-o-o que f-f-foi s-s-sar-gento?” “Nada, praça.” “F-f-falou aí um n-n-negócio estranho.” “Citei William Shakespeare, meu amigo. Henrique III.” O cabo Quevedo preparou seu sorriso mais mordaz, apanhou um cigarro e estendeu-o para Bóris. “Foi o que eu falei. O sargento Bóris é um reforço de peso. Agora, sim, vamos ganhar esta guerra.”

O Espírito da Montanha

38.


O capitão Bueno percebeu que a nevasca tinha parado porque uma estrela brilhava no céu, bem em cima dele. Depois viu outra estrela, depois outras. A visão das estrelas lhe deu um fugaz consolo, algo como a certeza de que o universo continuava sua rotina, indiferente á insanidade humana. Um gosto amargo na boca o fez cuspir, e cuspiu sangue. Uma golfada vermelha, manchando a terra agora branca. Lembrou que tinha sede. O bornal se fora em algum momento. Na densa escuridão que descera sentiu um breve surto de pânico ao entender que estava desorientado, mas imaginou que as linhas brasileiras ficavam á sua esquerda, e começou a se arrastar nessa direção. As dores aumentaram, notou que uma fraqueza se alastrava por todo seu corpo, apoiou os dois joelhos no chão e foi desabando lentamente até que rolou num pequeno barranco e foi abraçado pela água gelada de um arroio. O sargento Max, a 200 metros dele, rastejava com seus três voluntários. Escolhiam cuidadosos o terreno, cutucando os corpos estendidos. “Só vamos levar quem estiver vivo” dissera o sargento, “os mortos enterraremos depois.” Mas eles já tinham cutucado uns oito corpos e todos estavam rígidos e insensíveis. O sargento Max, que tinha sido chefe de polícia no Paraná, começou a sentir em suas costas o peso da maldita montanha. Entre os praças já corria a história de que o sargento Max não tinha medo de nada, mas a verdade é que o sargento tinha medo do espírito que habitava aquela montanha: Max sentia que era um espírito mau, esquivo, gelado e desafiava com perverso prazer aqueles brasileiros raquíticos a que o dominassem. O sargento Max tinha a suspeita, bem escondida, de que nunca dominariam a montanha. O espírito dela os engoliria um por um, ficariam perdidos como o capitão Bueno, e morreriam padecendo dores terríveis na mais completa solidão. Como era pesada a solidão daquela montanha! Deitado no chão, o sargento Max percorria com o olhar o terreno imerso na escuridão, e ouvia ruídos noturnos raros e desconhecidos. Ouvia sussurros e gemidos. Ouvia o vento que cortava seu rosto barbudo. Precisava encontrar o capitão Bueno. Precisava salvar alguns dos rapazes que ficaram para trás. Precisavam, todos eles, de alguma pequena vitória contra a montanha, qualquer uma e por menor que fosse, mas precisavam de uma vitória para os homens não se entregarem ao desespero completo. O desespero rondava, desde o mais graduado oficial até o pracinha recém desembarcado. Se o desespero se estabelecesse seria o fim. O major Brayner pensava que a decisão do comandante em chefe de viajar para o Rio de Janeiro e renunciar ao cargo era fruto do desespero completo, aliado aquela dignidade endurecida que Mascarenhas vestia como outro uniforme.  A madrugada se arrastou com café e cigarros, frases amargas e a resolução de que Mascarenhas esperaria os acontecimentos se encaixarem com mais firmeza para então tomar, se fosse o caso, uma decisão drástica.  O que o comando faria era buscar o general Mark Clark para uma conversa franca. “Vamos botar as cartas na mesa, general Mascarenhas. Não é possível que fiquem nos levando na conversa, nos ameaçando com a desonra, nos deixar na retaguarda, sem olhar para os fatos reais que determinaram esta derrota.” “Não vamos fugir dos nossos erros, major, mas não vamos admitir o fracasso como sendo coisa só nossa, quando tudo começou com os atrasos e equívocos dos americanos.” “Para mim o mais grave é que os alemães sabiam do ataque” disse Zenóbio. “Como eles sabiam, por quem eles sabiam é que me intriga.”  Mascarenhas olhou para os caminhões e jipes se organizando para transportar os feridos que chegavam.  Pedro Diax estava entre eles. Quevedo o tinha arrastado montanha abaixo, puxando-o pela gola da japona. Quando chegaram na base e foram acudidos pelos padioleiros, Pedrinho se agarrou ao braço de Quevedo. Pedrinho tremia. Os padioleiros o fizeram soltar e Quevedo viu lágrimas nos olhos do rapaz, desespero e incredulidade. Aquilo chocou Quevedo. Ele gostava da companhia de Pedrinho, sua calma sem empáfia, o jeito sereno com que amadurecia e assimilava os horrores que tinha de enfrentar. Foi colocado dentro dum jipe que arrancou em direção ao hospital. Foi descido numa padiola e levado com rapidez para dentro de uma grande tenda. Uma enfermeira se debruçou sobre ele. “Calma, soldado, nós vamos cuidar de você. O capitão já vem te examinar.”  Foi colocado sobre uma mesa dura. A enfermeira rasgou a calça dele na altura da coxa e olhou com ar crítico. “Vamos consertar isso.” Pedrinho olhou para ela: olhos azuis, o cabelo louro atrás da touca com a cruz vermelha. Um rosto bonito, de ascendência inglesa, ou de anjo. Conhecia essa enfermeira de algum lugar. Talvez daquela tarde de domingo no Rio de Janeiro, sim, sim, sim, quando com o gago Atílio e o alemão Wogler foram ao Estádio das Laranjeiras assistir Fluminense x Botafogo. Pedrinho olhou para ela com intensidade, a enfermeira sentiu o olhar e seus olhos se encontraram. Ela disse: “Sou Virginia” no exato momento em que o soldado Pereira, ordenança do capitão Bueno, viu a patrulha do sargento Max voltar á base. Os quatro homens chegaram e se jogaram no chão, exaustos e derrotados. Estavam nessa lida desde as 6 horas do dia anterior, praticamente 24 horas sem dormir nem descansar nem se alimentar razoavelmente.  O ordenança Pereira olhou para eles durante alguns momentos, depois apanhou sua metralhadora e enfiou no ombro. Encheu o bornal de granadas, tomou um gole de água do cantil e começou a se afastar. O ordenança Pereira ia desafiar o espírito da montanha. Não ia deixar seu capitão agonizando ou morto sozinho naquele breu.  Mal deu alguns passos sentiu o peso da maldição. A montanha parecia maior. O Monte Castelo parecia mais gelado, mais íngreme, mais escorregadio. Mas o ordenança Pereira fora criado numa fazenda em Pirapora. Não tinha medo do escuro nem da solidão.  Foi avançando abaixado, como rastreador, vencendo os obstáculos do caminho, decidido a voltar com o capitão Bueno. Ou não voltar.

Um Certo Sargento Max

37.


Enquanto um certo sargento Max e um tal cabo Leite e os soldados Manoel e Lima Barbosa se arrastam na lama tentando se convencer que não são idiotas e que o capitão Bueno merece seu sacrifício o general Mascarenhas examina contra luz o perfil árido do general Crittenberg. O general Mascarenhas percebe que começa a se encher de um rancor pouco razoável contra o americano. Com Brayner, Zenóbio e Cordeiro de Farias tinha feito um levantamento minucioso das ações do dia, e dos motivos que levaram á retirada. Do ponto de vista da lógica militar a retirada era a única opção cabível. Crittenberg recebeu as alegações sem mudar a expressão, que apresentava um sutil esgar de desprezo. E quando falou foi para dizer: “A única coisa de que os senhores me convenceram é de que o soldado brasileiro não tem capacidade ofensiva.” “Não posso concordar com isso, general” disse rapidamente Mascarenhas. “Foi lamentável o desempenho dos brasileiros. Comprometeram todo nosso esquema. Por culpa de vocês vamos passar o inverno do lado de cá dos Apeninos, enquanto nas outras frentes os exércitos avançam rumo a Berlim.” “Continuo discordando, general Crittenberg.  Isso não é verdade em hipótese alguma.” “Essa é a lamentável verdade, general. Missão de ataque não é para os senhores. O seu exército não tem capacidade ofensiva. Foi um erro do general Mark Clark dar-lhes uma responsabilidade dessas. Os seus soldados são fracos, não tem saúde, não sabem combater. Seus oficiais não tem liderança, são relapsos, entregam tudo aos sargentos. E o resultado de tanto desleixo se vê na frente de batalha.” “Definitivamente não aceito suas palavras, general. Já demostramos que nossos aliados não cumpriram nem o começo de sua missão, deixando-nos flanqueados desde a partida. O comando insistiu em manter a operação mesmo depois de a Força Aérea informar que não tinha condições de decolar.” “São desculpas, general. O senhor sabe muito bem que suas tropas debandaram em presença do inimigo alguns dias atrás.” “Minhas tropas, não, general. Foi uma companhia, totalmente flanqueada, sem apoio aéreo, que marchou para campo aberto nessas condições e hoje isso se repetiu. E essa tropa de que o senhor fala, o senhor deve saber que era uma tropa fresca, recém chegada, sem experiência de combate, sem nenhuma adaptação ao campo de batalha, com armamentos deficientes, uniformes inadequados para o terreno, que ficou exposta ao fogo inimigo e retraiu um tanto desordenadamente. Não aceito o termo debandada em nenhuma condição. E os oficiais envolvidos no episódio foram afastados e o oficial comandante está sendo investigado e, se realmente tiver responsabilidade, será julgado em corte marcial.” “Esses são problemas de vocês. Quanto a mim, vou solicitar ao Alto Comando para retirá-los de suas posições atuais, general. Daqui para a frente a FEB só receberá missões na retaguarda.” Os quatro brasileiros sentiram o golpe, Brayner conseguiu articular: “Permissão para falar.” Mas Crittenberg tinha feito uma rápida continência e se afastou pisando forte, seguido pelos seus ordenanças, no momento exato em que o capitão Bueno despertava do seu torpor e ouvia passos, bem pertinho. Uma patrulha, pensou, talvez sejam brasileiros, talvez venham me resgatar. O capitão Bueno se contorceu em meio a dores para poder olhar e o que viu o deixou ainda mais enregelado: um alemão se deslocava de uma casamata para outra, em sua direção. Quando passava por um corpo, cutucava-o com a ponta da metralhadora, empurrava-o com o coturno. Descobriu um soldado ainda vivo, retirou a pistola do coldre e disparou na nuca. O tiro deu um susto no sargento Max, que rastejava seguido pelos três companheiros, a 500 metros dali. Ficaram imóveis, tentando saber o que tinha acontecido, mas ainda estavam muito longe e viram apenas um alemão se aproximando do corpo caído do capitão Bueno, ficar contemplando-o alguns instantes, e depois se abaixar. O capitão Bueno sentiu a respiração e o cheiro do alemão curvado sobre ele. Trancou completamente a respiração. Percebeu que ele mexia no seu coldre, percebeu que ele apanhava sua pistola, depois ficava em pé. Agora vem o tiro. Depois de alguns instantes, o alemão se afastou em direção a outro corpo. O tiro não veio. Ainda caía aquela saraiva gelada, agora com menos intensidade. Max olhou o alemão se afastar e disse: “É impossível chegar onde o capitão está. A região é totalmente deles. Não temos a menor chance. Vamos esperar pela noite.” E começou a rastejar de volta, quando os dois generais brasileiros, Mascarenhas e Cordeiro de Farias, olhavam de binóculo para a grande montanha. “Um velho ditado árabe diz que sob ataque uma montanha fica duas vezes mais alta e mais forte.” Mascarenhas olhou para Cordeiro, tentou desvendar no tom de sua voz seu verdadeiro estado de ânimo, mas Cordeiro era esquivo de nascença. “Como está o Zenóbio?” “Arrasado. Ele sabe que a culpa é dele.” “A culpa é minha, Cordeiro. Eu autorizei, eu aceitei os termos do ataque.” “É dele porque ele incentivou a decisão. É culpa da arrogância, da ânsia de glória.” “Sabia que ele estava cego, queria que ele abrisse os olhos, e ainda havia esse rumor de que o Salgado Filho trazia minha demissão do comando. Eu me deixei levar, e quem pagou foram aqueles rapazes mortos. Eu fraquejei foi quando admiti a hipótese de atacar sem apoio aéreo. Deveria ter enfrentado o americano nesse momento.” “Eles nos mentiram.” “Eles não param de nos mentir, Cordeiro, mas que vão nos afastar da frente de batalha é verdade. Eles precisam de um culpado.” “Eles não podem fazer isso.” “Podem.” Baixou o binóculo e olhou para Cordeiro de Farias. “Não será uma humilhação para o Zenóbio. Ou para mim. Será para o nosso exército, para nosso país. Amanhã vou tomar um avião para o Rio de Janeiro. Vou pedir minha demissão. Vou cortar  isto pela raiz.”  O sargento Max olhava para a crista da montanha, que começava agora a ser tomada pela sombra. Durante a tarde a tênue nevasca tinha parado, as nuvens escuras sumiram e o céu brilhava azul, até que o sol sumiu atrás do pico mais alto. A sombra se espalhou sobre os homens estendidos no chão, observando a terra-de-ninguém. O sargento Max disse: “Essa montanha tem um espírito. Se ele nos agarra, adeus.” “Como é sargento?” “Nada. Vamos começar a avançar. Precisamos tirar de lá o capitão Bueno.” E o sargento Max e seus três voluntários começaram em silêncio a rastejar na direção dos corpos caídos, lá adiante, todos imóveis e cobertos daquela farinha branca e gelada que descera do céu.