quarta-feira, 30 de maio de 2012

Os canhões de Monte Prano

20. 
O QG de Zenóbio, numa sala do único hotel de Camaiore, estava cheia de oficiais, todos com os olhos brilhantes e grandes sorrisos. Estacionou um jipe diante do hotel. Levava escrito Liliana no para-choque. Abriram passagem para o general Mascarenhas que chegou silencioso como sempre. Apertou mãos, concordou com a cabeça para uma quantidade de frases proferidas ao mesmo tempo, olhou Zenóbio nos olhos e todos silenciaram. “Nenhuma baixa, general”, disse Zenóbio. Os oficiais bateram palmas. “Alguns feridos, 15, ao que parece, nenhum grave. E 23 prisioneiros.” Novas palmas. “Nossos soldados e oficiais estão de parabéns, general Zenóbio, e o senhor de modo especial. Tomar Camaiore dos alemães, nossa primeira missão, foi bem sucedida, graças a Deus, mas isto é só o princípio. Avançamos um passo, agora precisamos avançar outro” disse Mascarenhas. “O Comando Aliado já nos deu a próxima missão: vamos nos mover para cerrar contra a Linha Gótica, que inicia aqui perto, nos contrafortes dos Apeninos. Para avançar, precisamos dominar o Monte Prano e silenciar os canhões que lá estão instalados. Eles têm um posto de observação de artilharia muito competente.” “Esses canhões estão nos dando trabalho, comandante”, disse Zenóbio, “mal terminamos a ponte para Camaiore e ela já foi atingida por cinco projéteis, tiros de canhão disparados do Monte Prano.” “Eles dominam toda a região lá de cima, e os canhões tem longo alcance. Vai ser uma subida dura, general. O senhor precisa estudar esse assunto.” Zenóbio inflou o peito de orgulho. “Já estou pensando nisso, comandante” e bateu uma continência vistosa, como se fosse um cadete recém-formado. Nesse momento uma gritaria chamou a atenção de todos. Aproximaram-se da janela. Centenas de cidadãos de Camaiore tomava a rua fazendo alvoroço, gritando e gesticulando. Três mulheres eram empurradas e espancadas. Tinham as cabeças raspadas, vestiam sacos de estopa e estavam sem sapatos, pisando a rua de pedra. As cabeças raspadas mostravam cortes e sangravam. “São colaboracionistas”, disse o major Brayner, “já impedimos dois linchamentos desde ontem.” “Isso é degradante”, disse Mascarenhas, “vamos impedir esses fatos a todo custo, quero reforço no policiamento. Se alguém tem de ser punido que seja pelos tribunais.” Olharam durante alguns instantes a chegada de PMs que tiveram muita dificuldade para separar as mulheres de seus espancadores. Zenóbio se afastou da janela. Zenóbio tinha dito a Mascarenhas que já estava pensando num plano de ataque, mas na verdade não havia muito em que pensar. O Monte Prano tem 1,2 mil metros de íngremes escarpas rochosas, coberta de vegetação rala, onde ninguém pode se ocultar. A subida é praticamente de peito aberto, e isso é suicídio puro. A única possibilidade é uma manobra envolvente; no fim da manhã essa proposta já estava claro na Ordem do Dia despachada pelo Estado-Maior do Destacamento Zenóbio. “Inicialmente envolver Monte Prano, se possível capturar Monte Prano pelo Oeste; conquistando em seguida a Linha Monte Valimona-Monte Acuto; finalmente, conforme as informações, retificar a linha de frente, na altura de Monte Prano.” Zenóbio reuniu seus oficiais, mostrou o mapa no cavalete: “Vamos envolver o Monte Prano com três batalhões justapostos. Estamos praticamente sem reservas, mas vamos fazer o que esperam de nós, sem lamúrias. O 1º Batalhão faz o desbordamento pelo Oeste, o 3º Batalhão pelo centro, vai subir o Rondinaja, um local medonho, cheio de minas, e o 2º Batalhão vai pela direita, o Segundo vai se lançar sobre as vilas de Fabiano e Austiciana. Iniciamos a manobra amanhã às sete. E vamos nos encontrar todos lá em cima, se Deus quiser.” O Destacamento Zenóbio, que a rigor era todo o 6º RI, começou a manobra envolvente ao Monte Prano no início da manhã do dia 20 de setembro, com um dia mais frio do que o habitual para essa época do outono, e com nuvens cinzas cobrindo os contrafortes da cordilheira. Os milhares de brasileiros avançavam cuidadosamente, cobrindo uma frente de 12 quilômetros. Diante deles, o terreno a palmilhar era áspero, todo em aclive. Passaram por localidades de poucas casas, todas de pedra, onde os moradores temerosos abanavam para os soldados. A subida pouco a pouco ficava mais íngreme. Passaram pelas localidades de Vado e Lombrici. A uma da tarde chegaram em Casoli, casas de pedra construídas ao lado da estrada. Fizeram uma parada para o rancho. “Daqui pra frente não sobe nem jipe”, disse o sargento Nílson, sentando no chão, costas contra uma parede, acendendo um cigarro. Olhou ao redor: a cordilheira agora realmente começava. Onde ele estava, rodeado de seus soldados, podia ver as imensidões se sucedendo em gigantescos contrafortes de pedra. A única estrada era estreita, cheia de curvas, e na beira de um precipício que causava calafrios. “Este lugar é bom para o turismo”, disse Nilson, mas todos estavam muito cansados para conversar. Cada um carregava em torno de 12 quilos, contando armas, munição, cobertor e a ração K. Esta ração era uma caixa embalada em papelão, que continha uma pequena caixa com pasta de carne, um pacote de bolacha, uma latinha com queijo, dois chocolates, uma caixa de chicletes, uma caixa de fósforos e três cigarros, palitos, balas, band-aid e papel higiênico. Todos começaram a abrir suas rações K, todos mastigavam olhando as montanhas se desdobrando interminavelmente. “Quanto tempo vamos levar até lá em cima, sargento?”, perguntou Quevedo, sentado a seu lado. “Pelo que ouvi falar só chegamos lá em cima depois de vinte horas de marcha”. “Então, só amanhã”. “Só amanhã. Por quê? Tá com pressa?”. “Pressa não digo, mas tô curioso pra ver os tais canhões”. Nesse instante ouviram o som dos canhões disparando para os alvos lá embaixo na planície. O ruído era assustador e todos se olharam. Sorriram, escondendo os sentimentos, mas pálidos. “Onde vamos dormir, sargento?”, perguntou Pedrinho. “Tem um hotel de luxo especialmente para ti, logo ali.” Todos deram risada. Os canhões tornaram a atirar. O som de morte se espalhou sobre os soldados sentados ao longo da estrada à beira do abismo. “Calma que eu tô chegando!”, gritou Quevedo. Deram novas risadas. O capitão Ernani passou por eles, parou um pouco, contemplou a imensidão. Falou olhando para Nilson. “Sargento, vamos recomeçar a marcha.” O sargento se pôs de pé, os soldados foram todos ficando em pé, e em pouco a enorme fila estava a subir a estrada cheia de curvas, onde começava a açoitar o vento frio.

domingo, 20 de maio de 2012

Horror em Camaiore

19.

Então agora estavam dentro daquilo que Zenóbio tinha chamado de arapuca mortal. Cada passo que davam era como pisar em areia movediça. Mas o chão era de pedra, irregular, as botinas escorregavam e havia alguns buracos traiçoeiros, onde se podia enfiar o pé e quebrá-lo. “N-n-não t-t-tô v-ve-vendo nada”. “Ninguém tá vendo nada, gago”, resmungou Quevedo. “Já disse pra não me chamar de gago, seu...” . “Tá bom, desculpe, me esqueci”. “S-sse me chamar de gago ou-ou-outra vez, n-n-não é só a-a-alemão que vai morrer hoje”. “Epa, ficou valente o catarina”. “Calem a boca vocês dois”, rosnou o sargento Nilson. “Es-es-esse ga-ga- aúcho t-tá m-me chamando de ga-ga-gago, sargento”. Estavam rodeados pela escuridão. O sargento Nilson suspirou. Sabia que os alemães estavam ali, a poucos metros, atrás de alguma esquina, em uma janela, num beco, esperando por eles. Sabia que os alemães tinham ordem de atirar primeiro nos sargentos, por comandarem grupos de combate, depois atirar nos oficiais comandantes de pelotão. Ele era um alvo preferencial, portanto. Ele e o capitão Ernani. Sabia que estava com medo. Ele, sargento Nilson, para ser honesto consigo mesmo, tinha que admitir que estava com medo. Com muito medo. Nenhum daqueles homens que avançavam rente à parede, atrás dele, tinha entrado em combate. Nenhum deles tinha atirado em outro homem. Eram todos garotos, de 18 a 22 anos. Velhos ali, só ele mesmo e o capitão. E ele, sargento Nilson, com uma dorzinha súbita no fundo da alma, porque sentiu, no ar escuro, cheiro da cozinha de sua casa em Saco dos Limões, Florianópolis. Tinha 24 anos e um pressentimento de morte no peito quando a explosão da granada iluminou o escuro e mostrou os olhos aterrorizados dos soldados atrás dele. Sucedeu-se uma rajada de metralhadora, depois outra, e logo outra granada caiu no piso de pedra – ouviram nitidamente o baque e, em seguida, o ruído do artefato deslizando. Todos imobilizados contra a parede. Os tiros pararam. A granada não explodiu. A rua estreita e em curva conduzia para uma escuridão ainda mais negra. “Cuidado”, disse o capitão Ernani, “que ninguém pise na granada”. Por mais que olhassem, que forçassem os olhos, nada viam. “Capitão, a gente precisa mesmo avançar?” Era a voz de Pedrinho, um fio de voz se desfazendo em medo. O capitão entendeu nesse instante o que era ser capitão. Ele era pai, irmão mais velho, mãe e amigo daqueles rapazes que estavam na rua escura, espremidos contra a parede, paralisados de medo, olhando para a escuridão que escondia a morte. Minha voz precisa ser calma, precisa ser ponderada, precisa ser enérgica, precisa ser voz de capitão e precisa responder duma só vez tudo o que eles querem ouvir. “Garoto, precisamos avançar, sim, mas não com pressa, entendeu?” “Sim, senhor”. “Vamos passo a passo, na malandragem, que a gente chega lá”. “Sim, senhor”. “Fica atrás de mim e do sargento Nilson que a gente chega lá”. Lá aonde?, ressoou a voz dentro dele quando uma explosão iluminou o pedaço de rua, e eles viram, pela primeira vez, os alemães, ou o que poderia ser os alemães – vultos que atravessaram a rua de lado a lado, correndo e disparando as metralhadoras. O capitão Ernani deu seu primeiro tiro na guerra. Apertou o gatilho sem raiva nem pressa, mais pela necessidade de praticar uma ação, e viu um vulto caindo e escutou o palavrão de júbilo do sargento Nilson bem em seu ouvido. “Istepô! Pegou um, capitão!”. O sargento Nilson deu uma rajada de metralhadora e soltou seu brado favorito: “Avançar, macacada!”. E os brasileiros avançaram em tropel pela escuridão, tropeçando, se empurrando, estremecendo com as explosões e as rajadas de metralhadoras que tornavam a noite um pesadelo. Pedrinho Diax e o Alemão, afoitos, avançaram demais e perceberam que não sabiam mais onde estavam os companheiros. A voz grossa do esclarecedor do grupo de combate, o soldado Bandeira, negro como a asa da graúna, disse: “Aqui, moçada, tem um beco aqui, à direita!”, e eles entraram no beco onde tênue luz deslizava de uma janela entreaberta. E ali no beco travou-se uma súbita e brutal troca de tiros quando uma porta se abriu e dois alemães saíram atirando como loucos, derrubando o esclarecedor Bandeira, que deu um grito, e dispararam para a rua, encontraram mais brasileiros e houve uma ininterrupta e assustadora troca de disparos de metralhadora, e os dois alemães caíram como bonecos de trapo. Pedrinho ficou ali olhando os corpos, mas foi empurrado para a frente pelo Alemão, agora um jipe avançava pela rua e seus faróis mostravam as paredes de pedra que os sufocava e constringia naquele labirinto escuro, e então um artefato atingiu em cheio o jipe, causando uma explosão, os soldados saltaram com gritos de pavor e, em seguida, o jipe pegou fogo. Pedrinho assistia estarrecido, foi derrubado por um dos soldados que escapavam do jipe, quando nova explosão aumentou as chamas, e a cidade de Camaiore apareceu nítida aos seus olhos: paredes cinzas, ruas estreitas, janelas fechadas. Quevedo o tomou pelo braço e o levantou, e eles foram indo para a frente, se empurrando, ouvindo tiros ao longe, explosões ao longe, gritos ao longe e percebendo que uma luz tímida, de um novo dia, começava a revelar a cidade. Havia alguns corpos caídos no fim da rua. Um soldado brasileiro que eles não conheciam se arrastava no chão, a boca cheia de sangue. Pedrinho e o Alemão o recolheram e puxaram para trás de uma esquina. O soldado não falava nem gritava, tinha os olhos arregalados numa expressão de espanto. A luz aumentava sobre Camaiore, e revelava uma névoa cinzenta, volátil, subindo lentamente. O capitão Ernani apareceu de repente. “Ninguém parado, ninguém parado, em frente!”. Prosseguiram se atropelando, dobraram uma esquina, um tanque apareceu como um monstro irreal no centro de uma pequena praça. “É americano!”, gritou o sargento Nilson. Não tinham ideia como aquele tanque tinha entrado na cidade, devia haver ruas mais largas. Quevedo se abaixou sobre o chafariz no centro da pracinha e bebeu água das mãos em concha. “Tá amanhecendo”, disse. “Passou tanto tempo assim?”, perguntou o Alemão. Pedrinho deu um passo, saiu da esquina e olhou ao redor. A névoa subindo revelava a grande curva da rua de pedra, as duras casas cinzas com suas janelas fechadas. Havia um vasto silêncio de amanhecer. Alguém passou correndo ao longe. Pedrinho olhou para Atílio e para Quevedo, que examinava as correias do tanque com ar de entendido. Pedrinho sussurrou: “Acho que tomamos a cidade”.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Batismo de fogo na noite escura

18.

"A ponte que dá acesso à estrada para Camaiore está destruída, senhor”, disse o sargento Nilson, olhando para o capitão Ernani com insistência. “E essa agora”,pensou o capitão Ernani, “sempre tem uma novidade ruim, e é esse sargento que vem me trazer”. “Destruída? Como, destruída? Uma hora atrás não estava destruída”. “Foi bombardeada, senhor, não temos como passar o rio”. O capitão Ernani sabia que Camaiore era uma cidade antiga, muito antiga. Do tempo dos romanos. E no latim ancestral, queria dizer Campus Maior, como explicou o general Zenóbio. Lá estava ela, lá longe, do outro lado do rio. Era uma coisa maciça e cinzenta, toda de pedra. Casas de dois andares rigorosamente iguais. Ruas estreitas e labirínticas. “Recebemos ordens de tomar Camaiore dos alemães. E o senhor, capitão Ernani, vai comandar o ataque”, disse Zenóbio. “Eles ocupam a cidade há mais de um ano. Entrar lá é entrar numa arapuca mortal. Mas isso todos já sabemos”. O rosto insondável do capitão Ernani escondia a angústia de estar dividido entre dois sentimentos: a euforia de ser indicado para a primeira verdadeira missão da FEB e o pavor legítimo de avançar contra uma fortaleza totalmente blindada, onde se ocultavam membros da 148, a famosa divisão que combatera na Rússia, na África e agora estava na Itália para interceptar a invasão aliada. “A ponte está destruída?”. “Foi bombardeio, capitão”. “A nado é que não vamos atravessar”. Claro que não, pensou o sargento Nilson, olhando para o capitão Ernani. A correnteza era muito forte, a profundidade ignorada e ali perto tinha acabado de explodir um projetil lançado por um canhão. Súbita sucessão de explosões assustou os brasileiros, que se encolheram contra o chão, atrás dos tanques, caminhões e jipes, atrás de árvores e de pedras. A primeira missão difícil começava difícil. O capitão mascava alguma coisa, o sargento olhava para ele. Será que esse capitãozinho está com medo? “Liguem para o pelotão de Engenharia”, disse o capitão, “precisamos de botes.” O sargento Nilson ficou observando o capitão falar ao rádio. Parecia calmo e incisivo, mas terminou com certa petulância. “Não sei como vão conseguir, mas consigam!”. Quase uma hora depois, três caminhões chegaram com barcos de borracha. Eram 12 e cabiam 12 homens em cada barco. A travessia começou no meio da tarde, quando o outono começa a ficar velho, e a brisa, mais fria. Os pracinhas desembarcavam na outra margem e corriam para a estrada, postando-se agachados nos dois lados da via. Os bombardeios caíam mais ao longe. “Acho que não perceberam ainda nossa presença nesta posição”, murmurou o capitão Ernani para o tenente Molina, agarrados ao bote inflável, que sacudia nas águas da corredeira. Desembarcaram e correram para a  argem da estrada esburacada. Deste lado do rio, a cidade de pedra parecia maior, mais ameaçadora. “Não vamos ficar parados, vamos indo”, ordenou o capitão ao tenente. “Faça o pessoal se mexer”. “Mas não vamos ter a proteção dos tanques, capitão”. “Certo, vamos sem proteção, tenente”. À medida em que a tropa transpunha o rio, a fila na estrada ia se tornando cada vez maior. Agora subiam uma lomba acentuada,   cansaço começava, as pernas doíam. Das casas de pedra na margem da estrada, apareciam cabeças de velhos, curiosas, tensas. Ouviam cantos de galos, algum balido de ovelha. O sargento Nilson levantou a mão. “Alto!”. O capitão se aproximou. “O que foi?” .“Minas, capitão”. Foi necessário esperar um engenheiro de minas. Pacientemente ele foi localizando as minas, marcando com fitas uma passagem segura. A aproximação do objetivo continuou, mais lenta ainda. Chegaram ao alto da lomba, olharam para trás. A fila estava enorme e desprotegida. Mas o pior era o que estava diante deles. A descida da lomba era abrupta, longa e toda esburacada. Terminava aos pés da cidade. Pedro Diax, Atílio e o Alemão olharam para o fim do declive com um arrepio de pavor. O capitão, o tenente e o sargento, sem abrirem a boca, pensavam o mesmo: vai ser a coisa mais maluca que já fiz na vida, mas, de um jeito ou outro, vamos ter de descer essa lomba e ir bater na porta de Camaiore. Foi quando ouviram o vozeirão de Zenóbio. “Então, moçada, por que estão aí parados?” Antes que o capitão tentasse uma resposta, Zenóbio falou: “Jipes. Quero jipes aqui, agora, todos os que puderem trazer”. Era um espanto um general estar ali, na primeira linha, prestes a avançar contra o inimigo entrincheirado. Mas Zenóbio tinha aquele estilo que era só dele, fazendo as coisas com um sorriso e mascando o charuto. Os jipes foram chegando. Tinham atravessado o rio em barcaças que a Engenharia construiu com rapidez. “Já vai escurecer”, disse Zenóbio, “e não vamos descer essa lomba a pé.” No primeiro jipe, subiram Pedro, Atílio, Alemão, Quevedo, o esclarecedor do pelotão, o negro Bandeira, gaúcho de Caçapava do Sul, o sargento Nilson, o tenente Molina e o capitão Ernani. O motorista era o Cego Aderaldo. “A toda velocidade!”, berrou Zenóbio, sinalizando com o braço a partida. O jipe arrancou. Pedrinho sentiu aquele frio inevitável no estômago, quando se desce uma rampa em alta velocidade. Todos se agarravam e mordiam o grito. O capitão fechou os olhos. “Alea jacta est!”, dissera Zenóbio, que andava com fumos intelectuais nas últimas preleções. Aí iam eles, como se estivessem num parque de diversões, numa montanha russa, descendo desamparadamente, ao encontro da mutilação, da loucura ou da morte. O Cego Aderaldo se agarrava ao volante e rezava. Zenóbio comandou mais uma partida. “Agora, vai!”. O segundo jipe partiu, com 10 dentro dele. Depois, o terceiro, o quarto. Iam chegando e se amontoando uns sobre os outros nas primeiras ruas, rolavam, deitavam-se no chão, ficavam imóveis, examinando se estavam com os ossos inteiros. Um jipe perdeu a estrada bem próximo deles e virou, com os soldados saltando para todos os lados. “Vejam se há feridos”, gritou o capitão Ernani, “chamem os padioleiros.” O capitão Ernani ficou de pé e empunhou seu rifle. Camaiore estava completamente às escuras. Nem uma luz havia em nenhum lugar. “Vamos entrar na cidade, em fila, rente às paredes”. Constatou com susto que todos olhavam para ele. “Os alemães têm grupos de combate espalhados pelas ruas, nos becos, nas vielas. Tanques, metralhadoras, obuses. Estão nos esperando”. Não conteve a vontade de fazer uma bravata: “Vamos ver se esses alemães são tão bons como dizem”. E lançou um olhar aos homens sob seu comando. Era um grupamento misto composto da 2ª Companhia do 6º Regimento de Infantaria, de um pelotão de Engenharia e de um grupo de tanques e carros de combate americanos que finalmente chegaram. O capitão pensou por um segundo de que adiantavam os tanques se eles não cabiam nas vielas estreitas. Sacudiu a cabeça. Aquilo era assunto da Infantaria. Entrar nessa cidade é assunto da Infantaria. Então, é com a gente mesmo. O capitão Ernani Ayrosa, 29 anos, disse, bem alto: “Vamos, macacada”. E deu o primeiro passo para entrar na cidade coberta pela escuridão da noite.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A porta do inferno está aberta




17.

A ordem era sucinta, mas Brayner teve que ler duas vezes para entender com clareza seu conteúdo: “Substituir os elementos do II/370 Regimento de Infantaria, às 19 horas do dia 15 de setembro, na região Vecchiano-Massacinccali-Filetole. Manter contato com o inimigo e sondar seu dispositivo por meio de vigorosa ação de patrulha. Caso o inimigo se retire, persegui-lo mediante ordem deste IV Corpo. Manter contato com a 1ª Divisão Blindada que opera a Leste”. Finalmente. Depois de dois meses de instrução e exercícios, chegara a hora do batismo. Brayner reuniu o Estado-Maior e solicitou a presença do comandante-em-chefe general Mascarenhas de Moraes. A coisa tinha que ter um viés de solenidade. Iam entrar em ação. Mascarenhas chegou e deu uma notícia confortadora: “O segundo escalão já está no mar, viajando para cá”. Reuniram-se ao redor da mesa, Zenóbio abriu o mapa. Zenóbio tinha gotas de suor na testa. Zenóbio ia comandar. Aquilo era missão da Infantaria. “O terreno é todo escarpado, o caminho minado e o inimigo não se apresenta, estará o tempo todo à espreita”, disse Zenóbio. “Que ninguém se engane, vai ser duro.” “Quem está lá é a 148. É uma Divisão famosa, com veteranos da Rússia. Eles não vão se expor”, disse o coronel Segadas Viana, comandante do 6º Regimento de Infantaria, destacado para a missão, “só vão atacar quando for favorável a eles, o que significa que vamos avançar por um corredor de morte.” Zenóbio não gostou do comentário: “É a guerra, coronel”. “Desculpe, mas não estou reclamando, general, só constatando.” “Quando substituirmos os americanos vamos ficar responsáveis por uma frente de nove quilômetros”, disse Brayner. “Se ficarmos só na defensiva já é muito, mas na ofensiva é simplesmente absurdo”, disse Segadas Viana, olhando para Zenóbio, que sustentou o olhar. “Sei disso muito bem, mas essa é a nossa primeira missão nesta guerra, coronel Viana, e vamos começar imediatamente, sem queixas nem indecisões. Vamos atacar em três linhas. Olhem este mapa: o Primeiro Batalhão do 6º inicia a marcha para tomada de contato com o inimigo na direção de Filetole-Monte Ghilardona, dois vilarejos, com poucas casas de pedra. É  uma subida íngreme e aí poderemos ter surpresas; o Segundo segue pela direita, na direção de Bozzano-Vecoli, deve haver resistência moderada, segundo os partiggiani; e o Terceiro sai da reserva para avançar sobre Le Corti-Bozzano. A população desses povoados pode ser hostil, não sabe quem nós somos, tem medo de todos, dos alemães, dos americanos, dos partiggiani, e agora vêm esses estranhos com cara de índios. Eles devem estar aterrorizados, fartos dessa guerra que não compreendem. Vamos com prudência, vasculhando o terreno, que é todo minado, ainda segundo informação dos partiggiani. Quem serão seus comandantes de batalhão, coronel Segadas?” Zenóbio sabia perfeitamente quem eram os comandantes dos batalhões, mas estava um tanto solene e gostaria de ouvir isso da boca do oficial encarregado da missão. “Os majores Gross, Silvino Nóbrega e Abílio Pontes.” “Muito bem, que eles saibam que essa estrada que vamos percorrer é a nossa entrada na História pela porta da frente, meu coronel. Ponha seus homens em forma. Vamos marchar de madrugada.” De madrugada, a porta da frente da História estava tomada por uma cerração forte que a encobria totalmente. Nada era visível da estrada. Os montes dourados de Toscana, que os rodeavam, eram apenas vultos. O major Abílio pensava com certa ironia nas palavras do chefe da infantaria. Todos sabiam que Zenóbio era fanfarrão espalhafatoso, mas essa sua veia poética não era conhecida. O major Abílio era homem de leituras, e os oficiais mais velhos estavam de olho nele porque dissertava com certo entusiasmo sobre as teorias de Marx, esse alemão judeu. O major  Abílio tinha 30 anos e nenhuma experiência de combate. O 6º RI avançava encolhido dentro dos caminhões e amontoado nos jipes. Era uma longa coluna de veículos, avançando sem pressa na estrada cheia de curvas. Pedrinho, Atílio, o Alemão e Quevedo estavam encostados uns nos outros, apertando seus fuzis numerados. Cada um já sabia o número do seu fuzil de cor, e a ordem era não largá-lo, não perdê-lo, não emprestá-lo porque no último dia da guerra teriam de devolvê-lo mediante recibo ao órgão provedor. E enquanto sacudiam na carroceria, e vagamente sentiam enjoo devido a tantas curvas na estrada, enquanto tinham na memória o espanto das coxas das mulheres nos becos escuros de Nápoles, ouviram a primeira explosão. Pedrinho fechou os olhos e num relance se viu a bordo do Baependy, sacudido pela explosão. Mas o caminhão continuava intacto. A explosão foi longe. Abriu os olhos e seus companheiros estavam um tanto pálidos, naturalmente angustiados, escutando. Nova explosão, mais forte. “Começou a guerra pra nós”, murmurou o Alemão. “Já estava demorando”, disse Quevedo. “T-t-tá ch-chechegando a hora.” O caminhão parou. A porta de lona se abriu, e o sargento Nilson enfiou a cara para dentro do caminhão. “Vamos desembarcar, macacada, e ir se postando em fila de um ao longo da estrada. Temos uma bela subida a nossa espera e vamos fazer isso com nossos belos sorrisos de dentes cariados.” O sargento Nilson era um tanto barroco ao falar, mas isso – e o humor misturado de ironia – era legado açoriano dos legítimos manezinhos da Ilha de Santa Catarina. Deu uma olhada nos dois garotos de Imbituba. “Quero ver vocês fazendo bonito.” “Sim, senhor, sargento”, disse Pedrinho. “Quero ver vocês indo pra frente, sempre pra frente e nada mais do que pra frente, entendido?” “Sim, senhor, sargento.” Outra explosão sacudiu as paredes da montanha, os pracinhas se encolheram, se olharam, mas o gago Atílio deu um empurrão em Pedrinho, e começaram a se apressar, a pular para fora do caminhão, atentos e ansiosos. De todos os caminhões e jipes os homens começaram a saltar. Iam entrando em fila nos dois lados da estrada. Os capitães comandavam aos gritos para começar a marcha, os tenentes corriam de um lado para o outro, os sargentos berravam e empurravam, Pedrinho olhou para sua frente, para a névoa que se desmanchava e permitia ver entre raios de luz a longa coluna de homens a pé, fuzis nas mãos, curvados, silenciosamente subindo a estrada estreita e cheia de curvas.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Numa terra estranha

16.

Zoé, Dulce e Virgínia voaram do Rio para Natal, de onde seguiriam imediatamente para Dacar. Mas após uma série de confabulações misteriosas entre os oficiais da FAB e os comandantes do Corpo de Enfermagem, acompanhadas por elas com ouvidos atentos, souberam que deveriam ficar em Natal, “talvez por alguns dias”. Enquanto arrastavam suas mochilas para os alojamentos no outro extremo da pista ouviram que um avião tinha sido abatido nesse mesmo dia, na rota que tomariam para Dacar. Somente decolaram três dias depois e pousaram após 12 horas de voo numa faixa estreita de terra que tinha o nome de Ilha de Ascensão. Abastecido o aeroplano, levantou para Acra, capital da Costa do Ouro. Pernoitaram em Dacar, mas após novas confabulações misteriosas foram para Atar, abasteceram, rumaram para Robert Field, depois Marrakesh, onde foram atropeladas por um camelo na saída do aeroporto. As 25 enfermeiras chegaram a Casablanca num final de tarde avermelhado, onde descansaram por três dias, em meio ao calor infernal, o pó da rua onde ficava o hotel e o alarido dos vendedores. Finalmente levantaram voo mais uma vez e aterrissaram em Alger. Era 12 de julho, tinham saído do Rio na madrugada do dia 2 e todas estavam confusas e atemorizadas. Elza, a mais despachada e influente do Corpo de Enfermeiras, disse “Vamos para Nápoles. O 1º Escalão já está lá”. Era verdade. O 1º Escalão já estava lá, mais exatamente nos arredores da cidade, em Agnano, acampado no barro, sem barracas, sem cozinha, sem mantas para se cobrir. Era pleno verão, mas a noite parecia de gelo. Estavam acampados na cratera do vulcão Astronia, abaixo do nível do mar, o que aumentava a sensação de frio. A maioria dos 5.800 homens não sabia desses detalhes. Estenderam-se no chão, cobriram-se com seus casacos. Foi oferecido aos generais Mascarenhas de Moraes e Zenóbio da Costa hospedagem no Parco Hotel de Nápoles, mas eles recusaram terminantemente. Foram montadas duas barracas onde passaram a noite com a tropa. Seria uma longa noite, ouviam-se tosses, gemidos, algum palavrão em voz contida. Os homens sonhavam com a devastação do porto de Nápoles, com os estranhos balões presos por cordas ao longo de todo o litoral, a fim de atemorizar voos rasantes de aviões inimigos. Súbito, irrompeu um alarido agudo e iniciou um corre-corre no lado direito do acampamento. Um oficial se aproximou da barraca de Mascarenhas. “Tentativa de suicídio”, disse o oficial, “já foi dominado.” “Quem era?” O oficial olhou para a tropa deitada na escuridão do chão enlameado. “O tenente-médico Soares Silva, ele teve um surto, algo assim, apanhou o revólver e tentou obrigar seu ordenança a atirar nele. Já está tudo sob controle, comandante.” “Muito bem, obrigado.” O oficial fez continência e se afastou. Mascarenhas procurou Zenóbio, ambos se olharam em silêncio. “Começamos mal, companheiro” disse Zenóbio. “Não vou subestimar este episódio” respondeu Mascarenhas, “mas já esperava algo parecido. A viagem foi muito tensa, estamos parecendo um bando de mendigos, vamos ter muito trabalho, meu amigo.” Zenóbio bocejou, apanhou um charuto. “Um médico, hein? Quem diria.” “Nossos tenentes vêm da turma de aspirantes a oficiais que deixou Agulhas Negras três meses atrás, Zenóbio, às vésperas de partir. Foram promovidos a 2º-tenentes no dia do embarque. Tudo era festa de estudantes. A maioria desses oficiais nunca viu um corpo de tropa, nunca entrou numa caserna.”  E agora estão aqui.” “Numa terra estranha, numa noite escura, no chão enlameado. Vamos ter muito trabalho, meu amigo.” Recolheram-se a suas barracas, mas foi difícil dormir. A frase “A viagem foi muito tensa” ficou repercutindo em seus ouvidos. Mascarenhas lembrava-se de que estava na sala de oficiais do General Mann ouvindo o noticiário da BBC quando o locutor anunciou: “Aproxima-se de Nápoles, navegando pelo Mediterrâneo, o comboio conduzindo o primeiro contingente de tropas brasileiras para participar da luta no Teatro de Operações europeu.” Era absurdo, mas verdadeiro. A operação mais secreta e sigilosa do exército brasileiro era anunciada aos quatro ventos pelos poderosos microfones da BBC. Um coronel americano esbravejou: “Ingleses filhos da mãe! Nos entregaram aos alemães!” E esse possível exagero do coronel logo se tornou realidade. O oficial de ligação do navio estendeu um telegrama para o major Brayner. “Um forte esquadrão de bombardeiros inimigos, oriundo do norte da Itália, devidamente protegido, voa na direção do comboio, que poderá ser atingido dentro de uma hora, caso não seja interceptado. Todos os meios de interceptação, das bases do norte da África, Sicília, Nápoles e Sardenha, foram acionados e deverão dar a cobertura ao comboio. Convém estar preparado para a luta antiaérea.” Mascarenhas lembra o olhar atento dos americanos para a reação dos brasileiros. Ele e Brayner ficaram impassíveis, mas a notícia se espalhou. Houve um calafrio na tropa amontoada nos porões, mas o ataque não aconteceu. Agora na sua barraca, sente o chão duro, dores no corpo. Pudera. Está com 61 anos, não é idade de ir para a guerra. No dia anterior sofrera uma humilhação inesperada, que ainda remoía.  Já passara uma semana do desembarque, continuavam amontoados no porto, via com apreensão os homens se misturando às prostitutas e aos proxenetas, às crianças famintas, às mulheres desesperadas. E nada de o comando americano lhes fornecer as armas do acordo firmado. Protelavam, davam desculpas, Mascarenhas olhava os soldados vagando sem objetivo, tomou uma decisão, chamou Brayner. “Major, vamos falar com o órgão provedor. Temos um acordo, eles nos devem.” Rumaram de jipe para o antigo e imponente Palácio Real, no bairro de Caserta, onde funcionava a base de suprimento. Esperaram mais de uma hora numa saleta barroca, olhando o quadro a óleo de um antigo e afetado monarca italiano. Enfim apareceu o general Harris, comandante do órgão. Denotava pressa, e brandiu no ar com desprezo a lista de petições enviada a ele. “Afinal de contas, o que vocês trouxeram para lutar?” O major tradutor se esforçou para amenizar a atitude do general americano, chegando a lembrar que Mascarenhas organizara a defesa do nordeste brasileiro para a América. “Para a América, não,” disse Mascarenhas, “para o mundo ameaçado pelo nazismo, meu senhor. E essa petição é produto do acordo firmado em Washington pelos nossos governos. Apenas isso.” Mas o clima da reunião estava definitivamente abalado, embora o general Harris tenha moderado seu tom. Mascarenhas e Brayner voltaram em silêncio no jipe, olhando a paisagem ferida, as ruínas e as pessoas vagando sem rumo.