segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Segundo Capítulo


Esqueçam essa guerra!
Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1942



Enquanto os militares discutem como responder aos ataques alemães, um adolescente recolhido numa praia do Rio conta uma história surpreendente.



"O Baependy, senhor ministro, afundou em três minutos e meio, o radiotelegrafista não teve tempo de mandar uma mensagem de socorro, não houve tempo de lançar botes e baleeiras ao mar, foi tudo muito rápido, dois torpedos em cheio no casco”, disse o major Brayner, com uma folha de papel na mão.“No Baependy estimam-se 270 mortos. Uma hora depois, foi a vez do Araraquara, também navio de passageiros, senhor ministro, 131 mortos. E depois, o Aníbal Benévolo, 154 pessoas a bordo, quatro sobreviventes. Três navios em oito horas,senhor ministro.E nos dois dias que se seguiram, o Itagiba, o Arará e o Jaciba. Todos com a bandeira brasileira pintada nos dois lados do casco. Pode haver sobreviventes agarrados a destroços, a Marinha está buscando, mas já contamos 607 mortos até o momento.” O ministro da Guerra, general Dutra, mexeu sem saber o que fazer com os papéis sobre a mesa.“Capitão Marcos, o que a Inteligência tem a nos dizer?” O capitão Marcos, sentado numa poltrona a um canto da sala, sacudiu a cinza do cigarro no cinzeiro. “Senhor ministro, desde o princípio deste ano Hitler é dono de um território que vai do Círculo Ártico às praias do Mediterrâneo. Hoje ele é senhor da Noruega, da Dinamarca, Holanda, Bélgica, França, Luxemburgo, Iugoslávia, Grécia, Tchecoslováquia, Polônia, Ucrânia e pelo menos quase metade da Rússia. O adversário da vez são os Estados Unidos. Ele sabe que na prática nós somos aliados dos EstadosUnidos.” “Somos?”, interrompeu o ministro. “Senhor, Adolf Hitler tem grandes planos para o continente sul-americano, não esconde isso e, na minha opinião, vai atacar com tudo.”O major Brayner, de frente para a janela, olhando o mar, se voltou e disse:“Já está atacando, capitão”. O ministro da Guerra suspirou.“Mesmo que nos ataquem, como vocês dizem, o que podemos fazer? Se nós vamos comparar nossas forças com as da Alemanha é até humilhante. Temos uma costa de 8 mil quilômetros de comprimento, e vocês sabem quantos navios? Claro que sabem: dois encouraçados velhos comprados de segunda mão, dois cruzadores nas mesmas condições, um submarino, sete contratorpedeiros, dois navios hidrográficos, um navio-escola, e por aí vai. Tudo velho e obsoleto. 1,4 mil homens é o efetivo da nossa Marinha. É ridículo! Como vamos entrar em uma guerra? A Alemanha tem milhões de soldados bem preparados! E temos indústria para construir armamentos? Nada. Nada de nada. Essa é a realidade, senhores. Esse é o nosso país. Não temos o que fazer nessa guerra. Esqueçam essa guerra.” “Não temos como esquecer, senhor ministro”, disse o capitão Marcos, esmagando o cigarro no cinzeiro com gesto um tanto pedante, marca do seu estilo,“o povo não deixa”. O ministro tornou-se pálido num repente.“O povo não deixa?” “O povo está nas ruas protestando”, disse o capitão,“os estudantes organizam passeatas, os sindicatos estão tramando ações, os políticos...” O ministro interrompeu com um sussurro que foi crescendo:“Os políticos que se danem, os estudantes que se danem, os sindicatos que se danem. Não temos marinha, não temos aviação, não temos sequer infantaria. Me surpreende que vocês, dois dos mais inteligentes oficiais do meu gabinete, venham com essas insanidades. Guerra! Vamos fazer guerra com o quê? Com as mãos? Jogando pedras no maior exército da História de todos os tempos?”.



O capitão Marcos e o major Brayner tomavam cafezinho melancolicamente na cantina dos oficiais.“O pior é que ele tem razão”, dizia Brayner, “entrar nessa guerra é uma insanidade”.“Então qual é a alternativa, major? Assistir ao massacre de braços cruzados, botar a culpa nos americanos ou nos comunistas ou sei lá em quem?” “Estamos numa sinuca de bico, meu amigo”, disse o major. Sorriram com amargura, o capitão Marcos consultou o relógio de pulso,“Bem, preciso ir, vou interrogar um dos sobreviventes”. “Onde?” “Aqui. Foi encontrado boiando perto da praia, bem em frente ao quartel.” “Mas como? Os ataques foram no Nordeste.” “É isso que eu quero pôr em pratos limpos. O rapaz foi recolhido por uma patrulha costeira. Ele diz que veio dentro de um submarino.”



O capitão Marcos notou medo nos olhos do rapaz. Já conhecia a sombra nos olhos de quem sentava naquela cadeira, mas a expressão do rapaz denotava que ele tinha visto algo bem mais assustador do que a polícia secreta do Getúlio.“Bom dia, jovem, eu sou o capitão Marcos.Vamos conversar um pouquinho. Qual é seu nome?” “Pedro.” “Só Pedro?” “Pedro Diax.” “Você é de onde, Pedro Diax?” “De Imbituba.” “Imbituba, Santa Catarina?” “Sim, senhor.” “Então somos vizinhos. Eu sou gaúcho. De Porto Alegre.” “Sim, senhor.” “Você estava no Baependy, Pedro?” “Sim, senhor.” “Você fazia o quê no navio?” “Eu era garçom.” “Que idade você tem, Pedro?” “Vou fazer 17 na semana que vem.” “Você sabe, Pedro, que a maioria das pessoas que estavam no Baependy morreram?” “Sim, senhor, eu tinha um irmão a bordo, não sei se ele está vivo ou morto.” “Vamos ver isso para você, Pedro. Mas me diga uma coisa, como foi que você se salvou?” “Eu caí na água quando houve a explosão e me agarrei num pedaço de tábua.” “E depois?” “Apareceu o submarino e eles me jogaram uma boia. Me levaram lá para dentro.” “Quanto tempo você ficou lá dentro, Pedro?” “Não sei com certeza.” “Pelos nossos cálculos você ficou dois dias, o Baependy foi afundado diante de Maceió e você foi recolhido aqui no Rio de Janeiro. É importante, Pedro, que você nos conte tudo o que aconteceu lá dentro.” “Sim, senhor.” “Como vocês se comunicaram?” “Eles tinham um oficial que falava nossa língua.” “Falava bem?” “Mais ou menos, dava para entender.” “O que ele queria saber?” “Sobre mim, de onde eu era. Depois sobre o navio, sobre o Lloyd, quanto tempo eu trabalhava nele. Sobre o porto de Imbituba, quando eu falei que era de Imbituba. Me perguntou o que eu achava da Alemanha, eu disse que não sabia. Perguntou se eu conhecia algum alemão em Imbituba ou em algum outro lugar.” “E você conhece?” “Não, senhor, quer dizer, conhecer conheço, mas não são alemães de verdade, são brasileiros.” “Ele disse alguma coisa especial,mandou algum recado? “Ele disse que o povo alemão é nosso amigo, que nós não precisamos ter medo de nada, que nosso inimigo são os americanos.” “E você, o que disse?” “Eu não disse nada, mas fiquei pensando que ele era meio louco.” “Meio louco? Por que, Pedro?” “Tinham acabado de afundar nosso navio, matado todos os meus amigos e nem ligava para isso.”


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