50.
“Isto não é uma
atochada, praça” disse o capitão Marcos para Pedrinho, depois do demorado
silêncio rodando pelas estradas repletas de comboios, carros de rodas para o
ar, tanques incendiados e famílias de refugiados em farrapos estendendo as mãos
e pedindo alimento. “Não, capitão?” “Não. É um assunto sério. Uma missão.” A “tocha”
era como os soldados, oficiais, sargentos, praças, todo mundo, chamavam o
abandono das linhas de frente, geralmente surrupiando um jipe, para passeio
numa cidade próxima, visita a alguma namorada ou a ida a bordel improvisado na
beira da estrada por cafetões com espírito empreendedor. Pedrinho olhava para o
capitão Marcos, o misterioso capitão Marcos, de quem ouvira histórias raras, e
pensava para onde ele o estava levando. Nesse exato instante, três horas da
tarde do dia 30 de abril de 1945, quando pensava que missão seria essa, a 600 quilômetros dali, no escuro bunker no
centro de Berlim, Adolf Hitler estava colocando a ponta da sua pistola Walther
na boca, onde já boiava uma capsula de cianureto. Sua amante, Eva Braum, jazia
no sofá, parecendo adormecida. Eva, 33 anos, tentara pouco antes se matar com
aquela mesma pistola, mas não conseguira e ingerira veneno. Agora eles eram apenas
mais dois dos 50 milhões de mortos que o sonho do nazismo custou. Lá fora, o
exército russo entrava na capital da Alemanha, já chegava ao centro de Berlim,
em longas e assustadoras filas. A população civil fugia em bicicletas, carroças
e a pé. Os ruídos dos canhões faziam tudo estremecer. Ouviam-se paredes
desmoronando. Pedrinho apertava o pé no acelerador. “Em frente!” comandava o
capitão Marcos e eles seguiam em frente, sempre para a frente, através de vilas
abandonadas, cidades fantasmas, pontes destruídas, camponeses que acenavam de
longe. Ás vezes, parando para Pedrinho incrédulo ver o capitão Marcos descer do
jipe e dirigir-se resoluto a algum oficial de um comboio americano. Falava
gesticulando com energia e voltava com um galão de gasolina na mão. A noite de
primavera caiu e Marcos tomou a direção. Pedrinho dormia profundamente apesar
dos solavancos. Amanheceram numa encruzilhada, com placas sinalizando nomes de
cidades que Pedrinho mal podia soletrar.
“Onde estamos,
capitão?” “França, meu rapaz. Na verdade, saindo da França. Ali adiante é a
Alemanha, e é pra lá que a gente vai.” Mastigaram as rações, beberam água dos
cantis e tornaram a encarar a estrada. O capitão Marcos começou a consultar um
mapa. Finalmente ele disse: “Estamos chegando.” Uma divisão americana bloqueava
a estrada. Marcos falou longamente com um sargento, depois um tenente, depois
um capitão, mostrando uma carteirinha e documentos até que chegou alguém a
paisano, conferiu os documentos e fez sinal para que o seguisse. Pedrinho
dirigiu o jipe atrás do homem e então viu a paliçada, o grande portão e os
guardas. Pedrinho percebeu que o capitão Marcos endurecia o corpo quando
transpuseram os portões. Seus olhos demoraram a decifrar o significado das
roupas que as pessoas vestiam, roupas cinzas com listas negras, em farrapos,
enormes nos corpos magérrimos e então o brusco horror de ver os corpos só pele
e osso e os terríveis olhos no fundo das órbitas e os olhares que lhes dirigiam
e eram centenas e mais ainda, milhares, se movendo como numa onda, lentos,
adormecidos, semivivos, arrastando os pés e movendo os braços sem sentido nem
direção. Estacionaram ao lado de uma fila de caminhões e eles estavam
carregados de corpos, aqueles corpos só pele e osso, uns sobre os outros,
homens, mulheres, velhos, crianças, e estavam mortos. Mortos. O capitão Marcos
entrou num pavilhão onde um oficial nazista era interrogado. Pedrinho deu
alguns passos vacilantes, espiou por uma janela para dentro dum alojamento e
viu os mortos vivos nos beliches, viu os braços pendendo no ar, o silêncio
vagando no ar fétido e podre. “Era possível, entendeu, era possível” dizia o
oficial nazista com os olhos brilhantes de medo e de audácia, encarando seus
interrogadores. “Exterminar os judeus era possível e não fomos nós que
inventamos a ideia do genocídio. A prática é política, política, nada mais do
que isso e remonta há muitos séculos. Os ingleses provaram isso quando
exterminaram os tasmanianos. Povos inteiros foram exterminados no Congo Belga e
na Namíbia. O senhor compreende, a Tasmânia era uma ilha habitada por um povo
há dez mil anos e os ingleses foram lá e em poucos anos os tasmanianos foram
sistematicamente caçados, assassinados e deportados pelos agentes britânicos e
assim acabaram com todos, todos, entendeu, em grupos ou de um a um, a raça
tasmaniana acabou quando só restou uma mulher, o nome dela era Trugonini, ela
morreu em 1869, seu corpo foi dissecado, e seu esqueleto, depois de medido e
devidamente estudado, está exposto em uma vitrine no Museu Hobart de Londres, e
se eles fizeram isso por que nós não poderíamos também fazer, me responda,
capitão, me responda!” Marcos deu as costas, olhou o campo de extermínio, o
arame farpado, os galpões onde funcionavam os fornos crematórios, a multidão de
esfarrapados se movendo lentamente com aquelas rígidas máscaras moribundas, o
silêncio, o silêncio que era levemente roçado pelos passos vagarosos e sem
rumo. Pedrinho se aproximou de Marcos. Queria gritar, mas nem para gritar tinha
forças. “Capitão, quero ir para casa” disse num fio de voz. O capitão olhou
para ele. Dirigiram-se para o jipe. Fizeram a viagem de volta em silêncio. Depois
que regressaram a unidade Pedrinho nunca mais encontrou o capitão Marcos e
nunca mais voltou a sentir aquela sensação de desamparo absoluto, de silencioso
desespero, a não ser muito tempo depois, quando mataram Maciel, seu
primogênito, com a idade de 20 anos. O pesadelo tinha acabado. Agora, tinham de
lidar era com o despertar. Os brasileiros voltaram com a consciência tranquila:
todas as missões que lhes foram confiadas eles cumpriram integralmente. Diante
da monstruosidade do conflito, a participação foi pequena, mas fundamental: conquistando
Monte Castelo a FEB derrubou a última muralha que impedia o avanço para Berlim.
A FEB teve 433 mortos e 3 mil feridos. Capturou 20.573 prisioneiros. Lutou de
setembro de 1944 a maio de 1945, apenas nove meses dos seis anos da guerra.
Entretanto, há um dado dos arquivos Aliados que revela o tamanho da aventura da
FEB na Itália. Pela quantidade e intensidade do seu emprego, a FEB foi, proporcionalmente,
a segunda tropa que ficou mais tempo em
ação durante o conflito. Os pracinhas tiveram uma grande aclamação em sua
chegada no Rio de Janeiro, mas uma semana depois foram desmobilizados. Talvez Getúlio
não gostasse de ter em suas mãos um exército experimentado em derrubar tiranos.
E então os pracinhas foram voltando para suas cidades e estados. Alguns não
tinham dinheiro para a passagem e dormiram nas ruas. Muitas promessas de
aposentadoria e de soldos polpudos nunca se cumpriram. Tudo era um pouco
estranho. As multidões nas ruas sem medo de bombardeios ou fome ou massacres. Conversas
inconsequentes sobre futebol. Filmes com Oscarito e Grande Otelo nos cinemas.
Mas todos eles sonhavam a noite com os horrores que tinham vivido. Todos
despertavam com um gosto amargo, como se estivessem cegos e tateassem a procura
de uma voz amiga. Alguns enlouqueceram. Alguns se mataram. Outro, mais esperto,
conseguiu uma aposentadoria milionária. Dulce ficou no exército e fez brilhante
carreira militar. Zoé voltou para Recife, casou e nunca mais entrou num
quartel. Virginia foi morar em Londres. Pedrinho e Atílio voltaram a fazer a
dupla de ataque do Imbituba, mas sem o mesmo sucesso de antes. O alemão João
Wogel chegou em casa e foi recebido com uma grande festa. O kerb durou uma semana
com mesa farta e dezenas de barris de chopp, com direito a discurso do
prefeito. Passaram os anos, que é o que fazem. Pedro Diax andou algum tempo
embarcado na marinha mercante, mas voltou a Imbituba e abriu uma mercearia.
Casou e teve dois filhos, Maciel e Aldemir. O gago Atílio ganhou na loteria,
mas perdeu tudo no jogo e na bebida. Tinha ataques de pânico. Pedrinho ia
busca-lo em becos fedendo a urina. O gago chorava e falava incoerências. O
Brasil perdeu uma Copa em casa. Mas depois ganhou cinco. Alguns generais da FEB
chegaram ao poder, mas não foi pelo voto.
O Brasil se tornou mais triste.
Nos fins de
semana Pedrinho se afastava de todos, subia na duna e ficava olhando o mar.
Tomava chimarrão, sozinho, hábito que adquirira com o cabo Quevedo. Pedrinho
gostava de ficar assim, sozinho, lembrando. Gostava mesmo era do mês de junho,
quando vinham as baleias. Em alguma coisa o mundo tinha melhorado. Ninguém mais
saía atrás de baleias com arpões e fuzis. Em algum momento da tarde chegava a
lembrança do primogênito, Maciel. Disseram-lhe que foi morto num quartel da
aeronáutica, no Rio de Janeiro, mas ele nunca viu o corpo. Não ficou sabendo se
isso era mesmo verdade nem como ele foi morto. Disseram que era um subversivo,
que teve o fim que buscou. Pedrinho não disse nada. Era outro tempo, outra
guerra. Mas a lembrança chegava e ficava ali com ele. Na tarde dominical fria e
cheia de sol, sentado no alto da duna, olhando a dança das baleias, o velho Pedrinho
pensa no filho. As gaivotas dão voos rasantes e gritam. Há uma grande paz no
mar e na tarde. Mas o velho Pedrinho não se engana. Ele sabe: o maior e mais cruel dos
monstros, a fúria humana, está à espreita, sempre, do nosso silencioso desespero.
FIM.