quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Despertar


50.

“Isto não é uma atochada, praça” disse o capitão Marcos para Pedrinho, depois do demorado silêncio rodando pelas estradas repletas de comboios, carros de rodas para o ar, tanques incendiados e famílias de refugiados em farrapos estendendo as mãos e pedindo alimento. “Não, capitão?” “Não. É um assunto sério. Uma missão.” A “tocha” era como os soldados, oficiais, sargentos, praças, todo mundo, chamavam o abandono das linhas de frente, geralmente surrupiando um jipe, para passeio numa cidade próxima, visita a alguma namorada ou a ida a bordel improvisado na beira da estrada por cafetões com espírito empreendedor. Pedrinho olhava para o capitão Marcos, o misterioso capitão Marcos, de quem ouvira histórias raras, e pensava para onde ele o estava levando. Nesse exato instante, três horas da tarde do dia 30 de abril de 1945, quando pensava que missão seria essa, a 600 quilômetros dali, no escuro bunker no centro de Berlim, Adolf Hitler estava colocando a ponta da sua pistola Walther na boca, onde já boiava uma capsula de cianureto. Sua amante, Eva Braum, jazia no sofá, parecendo adormecida. Eva, 33 anos, tentara pouco antes se matar com aquela mesma pistola, mas não conseguira e ingerira veneno. Agora eles eram apenas mais dois dos 50 milhões de mortos que o sonho do nazismo custou. Lá fora, o exército russo entrava na capital da Alemanha, já chegava ao centro de Berlim, em longas e assustadoras filas. A população civil fugia em bicicletas, carroças e a pé. Os ruídos dos canhões faziam tudo estremecer. Ouviam-se paredes desmoronando. Pedrinho apertava o pé no acelerador. “Em frente!” comandava o capitão Marcos e eles seguiam em frente, sempre para a frente, através de vilas abandonadas, cidades fantasmas, pontes destruídas, camponeses que acenavam de longe. Ás vezes, parando para Pedrinho incrédulo ver o capitão Marcos descer do jipe e dirigir-se resoluto a algum oficial de um comboio americano. Falava gesticulando com energia e voltava com um galão de gasolina na mão. A noite de primavera caiu e Marcos tomou a direção. Pedrinho dormia profundamente apesar dos solavancos. Amanheceram numa encruzilhada, com placas sinalizando nomes de cidades que Pedrinho mal podia soletrar.
“Onde estamos, capitão?” “França, meu rapaz. Na verdade, saindo da França. Ali adiante é a Alemanha, e é pra lá que a gente vai.” Mastigaram as rações, beberam água dos cantis e tornaram a encarar a estrada. O capitão Marcos começou a consultar um mapa. Finalmente ele disse: “Estamos chegando.” Uma divisão americana bloqueava a estrada. Marcos falou longamente com um sargento, depois um tenente, depois um capitão, mostrando uma carteirinha e documentos até que chegou alguém a paisano, conferiu os documentos e fez sinal para que o seguisse. Pedrinho dirigiu o jipe atrás do homem e então viu a paliçada, o grande portão e os guardas. Pedrinho percebeu que o capitão Marcos endurecia o corpo quando transpuseram os portões. Seus olhos demoraram a decifrar o significado das roupas que as pessoas vestiam, roupas cinzas com listas negras, em farrapos, enormes nos corpos magérrimos e então o brusco horror de ver os corpos só pele e osso e os terríveis olhos no fundo das órbitas e os olhares que lhes dirigiam e eram centenas e mais ainda, milhares, se movendo como numa onda, lentos, adormecidos, semivivos, arrastando os pés e movendo os braços sem sentido nem direção. Estacionaram ao lado de uma fila de caminhões e eles estavam carregados de corpos, aqueles corpos só pele e osso, uns sobre os outros, homens, mulheres, velhos, crianças, e estavam mortos. Mortos. O capitão Marcos entrou num pavilhão onde um oficial nazista era interrogado. Pedrinho deu alguns passos vacilantes, espiou por uma janela para dentro dum alojamento e viu os mortos vivos nos beliches, viu os braços pendendo no ar, o silêncio vagando no ar fétido e podre. “Era possível, entendeu, era possível” dizia o oficial nazista com os olhos brilhantes de medo e de audácia, encarando seus interrogadores. “Exterminar os judeus era possível e não fomos nós que inventamos a ideia do genocídio. A prática é política, política, nada mais do que isso e remonta há muitos séculos. Os ingleses provaram isso quando exterminaram os tasmanianos. Povos inteiros foram exterminados no Congo Belga e na Namíbia. O senhor compreende, a Tasmânia era uma ilha habitada por um povo há dez mil anos e os ingleses foram lá e em poucos anos os tasmanianos foram sistematicamente caçados, assassinados e deportados pelos agentes britânicos e assim acabaram com todos, todos, entendeu, em grupos ou de um a um, a raça tasmaniana acabou quando só restou uma mulher, o nome dela era Trugonini, ela morreu em 1869, seu corpo foi dissecado, e seu esqueleto, depois de medido e devidamente estudado, está exposto em uma vitrine no Museu Hobart de Londres, e se eles fizeram isso por que nós não poderíamos também fazer, me responda, capitão, me responda!” Marcos deu as costas, olhou o campo de extermínio, o arame farpado, os galpões onde funcionavam os fornos crematórios, a multidão de esfarrapados se movendo lentamente com aquelas rígidas máscaras moribundas, o silêncio, o silêncio que era levemente roçado pelos passos vagarosos e sem rumo. Pedrinho se aproximou de Marcos. Queria gritar, mas nem para gritar tinha forças. “Capitão, quero ir para casa” disse num fio de voz. O capitão olhou para ele. Dirigiram-se para o jipe. Fizeram a viagem de volta em silêncio. Depois que regressaram a unidade Pedrinho nunca mais encontrou o capitão Marcos e nunca mais voltou a sentir aquela sensação de desamparo absoluto, de silencioso desespero, a não ser muito tempo depois, quando mataram Maciel, seu primogênito, com a idade de 20 anos. O pesadelo tinha acabado. Agora, tinham de lidar era com o despertar. Os brasileiros voltaram com a consciência tranquila: todas as missões que lhes foram confiadas eles cumpriram integralmente. Diante da monstruosidade do conflito, a participação foi pequena, mas fundamental: conquistando Monte Castelo a FEB derrubou a última muralha que impedia o avanço para Berlim. A FEB teve 433 mortos e 3 mil feridos. Capturou 20.573 prisioneiros. Lutou de setembro de 1944 a maio de 1945, apenas nove meses dos seis anos da guerra. Entretanto, há um dado dos arquivos Aliados que revela o tamanho da aventura da FEB na Itália. Pela quantidade e intensidade do seu emprego, a FEB foi, proporcionalmente, a segunda tropa que ficou mais tempo em ação durante o conflito. Os pracinhas tiveram uma grande aclamação em sua chegada no Rio de Janeiro, mas uma semana depois foram desmobilizados. Talvez Getúlio não gostasse de ter em suas mãos um exército experimentado em derrubar tiranos. E então os pracinhas foram voltando para suas cidades e estados. Alguns não tinham dinheiro para a passagem e dormiram nas ruas. Muitas promessas de aposentadoria e de soldos polpudos nunca se cumpriram. Tudo era um pouco estranho. As multidões nas ruas sem medo de bombardeios ou fome ou massacres. Conversas inconsequentes sobre futebol. Filmes com Oscarito e Grande Otelo nos cinemas. Mas todos eles sonhavam a noite com os horrores que tinham vivido. Todos despertavam com um gosto amargo, como se estivessem cegos e tateassem a procura de uma voz amiga. Alguns enlouqueceram. Alguns se mataram. Outro, mais esperto, conseguiu uma aposentadoria milionária. Dulce ficou no exército e fez brilhante carreira militar. Zoé voltou para Recife, casou e nunca mais entrou num quartel. Virginia foi morar em Londres. Pedrinho e Atílio voltaram a fazer a dupla de ataque do Imbituba, mas sem o mesmo sucesso de antes. O alemão João Wogel chegou em casa e foi recebido com uma grande festa. O kerb durou uma semana com mesa farta e dezenas de barris de chopp, com direito a discurso do prefeito. Passaram os anos, que é o que fazem. Pedro Diax andou algum tempo embarcado na marinha mercante, mas voltou a Imbituba e abriu uma mercearia. Casou e teve dois filhos, Maciel e Aldemir. O gago Atílio ganhou na loteria, mas perdeu tudo no jogo e na bebida. Tinha ataques de pânico. Pedrinho ia busca-lo em becos fedendo a urina. O gago chorava e falava incoerências. O Brasil perdeu uma Copa em casa. Mas depois ganhou cinco. Alguns generais da FEB chegaram ao poder, mas não foi pelo voto.  O Brasil se tornou mais triste.
Nos fins de semana Pedrinho se afastava de todos, subia na duna e ficava olhando o mar. Tomava chimarrão, sozinho, hábito que adquirira com o cabo Quevedo. Pedrinho gostava de ficar assim, sozinho, lembrando. Gostava mesmo era do mês de junho, quando vinham as baleias. Em alguma coisa o mundo tinha melhorado. Ninguém mais saía atrás de baleias com arpões e fuzis. Em algum momento da tarde chegava a lembrança do primogênito, Maciel. Disseram-lhe que foi morto num quartel da aeronáutica, no Rio de Janeiro, mas ele nunca viu o corpo. Não ficou sabendo se isso era mesmo verdade nem como ele foi morto. Disseram que era um subversivo, que teve o fim que buscou. Pedrinho não disse nada. Era outro tempo, outra guerra. Mas a lembrança chegava e ficava ali com ele. Na tarde dominical fria e cheia de sol, sentado no alto da duna, olhando a dança das baleias, o velho Pedrinho pensa no filho. As gaivotas dão voos rasantes e gritam. Há uma grande paz no mar e na tarde.  Mas o velho Pedrinho não se engana. Ele sabe: o maior e mais cruel dos monstros, a fúria humana, está à espreita, sempre, do nosso silencioso desespero.


FIM.

A Divisão 148 se Rende

49.

O irritante general Crittenberg enviou um ofício ao general Mascarenhas: “A Divisão de Infantaria Brasileira foi a única Grande Unidade que cumpriu integralmente a missão recebida. As outras, 92ª.Divisão Americana, a 10ª.Divisão de Montanha, a 1ª.Divisão Blindada e a 6ª.Divisão Blindada Sul-Africana, pouco progrediram e sofreram grandes perdas. A Divisão Brasileira recebeu, dentro de Montese, só numa  noite, mais granadas do que todas as outras somadas, sem arredar pé das posições conquistadas.” Brayner observou a reação do general Mascarenhas enquanto ele lia, mas o veterano soldado parecia de pedra. Talvez pensasse que o cowboy já não estava tão irritante assim. Afastou o ofício para a pilha de papéis ao lado, e virou-se para Brayner. “Vamos cuidar do que vem pela frente. Vamos avançar sem parar. Nossos aliados gostam de nomes pomposos. Agora chegou o momento da Grande Ofensiva.” A premissa da Grande Ofensiva era avançar sem parar, avançar o mais que pudessem cada dia, avançar até as pernas não aguentarem e o combustível sumir nos tanques. Mas o avanço tinha um sentido: deslocavam-se as unidades brasileiras em direção ao norte, depois de cobrir o avanço da 10ª. Divisão de Montanha que marchava para Bolonha. As unidades eram o Onze de São João del Rey, o Sexto e o Primeiro Regimento de Infantaria. Avançavam pelas estradas poeirentas do Vale do Pó, ao longo dos rios Panaro e Taro, já próximos a vila de Fornovo de Taro. Esta era uma vila cercadas de parreirais, casas de pedra brilhando ao sol, equilibradas nas curvas da estrada rente aos abismos dos contrafortes dos Apeninos, estrada que levava para Bolonha, para o norte, para Berlim. E de lá saiu o primeiro ataque, pegando de surpresa os brasileiros. Foi uma barragem violenta de intenso fogo. Granadas e tiros de canhão explodiam de todo lado. Enquanto buscavam proteção nas valas da estrada e nas barrancas do Taro, os oficiais trataram de se informar quem estava ali com tão formidável poder de fogo. E logo descobriram. “É a 148, uma Divisão Panzer. Uma unidade de elite. Eles combateram sob o comando de Rommel no Afrika Korps. Vai ser uma parada dura” disse o coronel Nelson de Melo, comandante do Sexto. “São duas divisões” disse o major João Carlos Gross “está com eles a Divisão Bersagliere, italiana. Eles vão cobrar um pedágio caro para nos deixar passar.” “Eles estão metidos dentro dos muros da vila, acho que podemos preparar uma surpresinha para eles.” Os três comandantes dos três regimentos de infantaria da FEB acertaram um plano de ação, onde o fundamental era a rapidez. “Vamos envolvê-los” disse Nelson “se der certo eles ficarão imobilizados.” E assim o Onze se estendeu pela ala esquerda, ao sul de Fornovo, com grande rapidez e cautela para não ser observado. O Primeiro se deslocou para a ala direita, ao norte da vila. E o Sexto avançou pelo eixo central, chamando a atenção para si dos defensores da fortaleza, que ignoravam o ataque pelos flancos.
Ao final da tarde, os brasileiros apertavam as Divisões de Hitler em suas posições como se tivessem uma torquês. “Eles estão cercados. Agora é uma questão de tempo” disse Gross. Ao anoitecer apareceu um jipe com bandeira branca. O coronel Melo foi taxativo. “Os senhores estão cercados. Rendam-se incondicionalmente. Vamos tratar dos vossos feridos e terão toda a proteção das leis da guerra.” Os emissários se retiraram. A noite houve uma tentativa desesperada de romper o cerco. Ao amanhecer novos emissários aceitaram a rendição incondicional. Uma neblina cobria a vila e os campos ao redor. E por fim, após duas horas de negociação, começaram a surgir da névoa os vultos do exército derrotado. Era uma longa fila de homens cansados, abatidos, sem esperança e orgulho, que passavam diante das duas mesas onde estavam os oficiais e iam depositando as armas.

Quem comandava a 148 era o prestigiado general Fretter Pico. Ele entregou sua arma para o general Falconiére, chamado ao local para receber os prisioneiros. Falconiére permitiu que o general alemão conservasse sua arma, até ser internado em Florença. Pedrinho, Atílio e o alemão Wogler assistiam a tudo, quando Pedrinho julgou reconhecer um dos oficiais que interrogava ou conversava com os oficiais prisioneiros. Era o capitão Marcos, que o interrogara depois que saíra do submarino alemão. Seus olhares se encontraram, o capitão se aproximou. “Olá, rapaz. Conseguiu o que queria?” Pedrinho ficou confuso, nunca disse para o capitão que queria alguma coisa. “Estou bem, capitão.” “Que bom que está vivo.” “Obrigado, capitão.” “Você veio longe, meu rapaz. Sabe dirigir um jipe?” “Sim, senhor.” “Preciso de um motorista. Vou falar com teu comandante.” Pedrinho ficou perplexo, porque o capitão deu as costas e avançou para um grupo de oficiais que conversava. No dia seguinte, bem cedo, o general Mascarenhas recebeu um ofício do general Mark Clark: “Queira aceitar as minhas mais calorosas felicitações pela brilhante ação das tropas brasileiras ao capturar a 148ª. Divisão de Infantaria Alemã. A captura de tantos homens, veículos e cavalos, constitui uma prova do espírito combativo da FEB e representa o ponto culminante da organização da FEB e da esplêndida contribuição dos brasileiros para o nosso sucesso no teatro de guerra da Itália.” E como se não bastasse, chegou outro ofício, este assinado por Crittenberg: “Vossa ação contínua e agressiva contra as colunas inimigas que tentavam desembocar no Vale do Pó levou-os á confusão com pesadas baixas, ação essa que resultou com a rendição dos Generais Comandantes da 148ª.Divisão Alemã e de uma Divisão Italiana, num total de 14.779 prisioneiros de guerra e grande quantidade de material vital. Meu General, os resultados obtidos pela FEB, sob o vosso elevado comando, constituem um alto feito militar que vos concederá um lugar preeminente na história dessa guerra.” Enquanto os oficiais liam os ofícios e se regozijavam, fazendo piadas com a mudança de atitude dos americanos, Pedrinho dirigia o jipe com o capitão Marcos ao seu lado, tomando cuidado para não atropelar nenhum dos milhares de soldados que infestavam a rodovia. O Alemão e o Gago Atílio viram quando ele passou bem perto, orgulhoso, e acenou para eles. Depois viram que rumava para o norte, e desapareceu numa curva da estrada que circundava a montanha.

Montese Morta

48.


O comando do pelotão da vanguarda do ataque principal coube ao tenente Iporan. Todos o achavam um pouco verde para aquilo. Ele olhava de binóculo as casas de pedra. Os homens olhavam para ele. Conheciam o Iporan. Todos eram velhos conhecidos do Sampaio. Todos pensando que aquela era, como andavam dizendo, a última batalha da guerra.  Talvez não fosse, mas ninguém ia achar engraçado morrer logo quando a guerra chegava ao fim. O sargento Max, ninguém menos do que o sargento Max, estava atirado no chão a 200 metros dali, cheio de balas, e ninguém podia fazer nada.  O sargento Mathias olhou para as casas de pedra. “Se avançarmos muito vamos levar tiros pelas costas, tenente.” “Vamos avançar até a crista da elevação e lá avaliamos. Andando!” Avançaram abaixados até o ponto mais alto. De lá puderam examinar a cidade onde agora o sol batia em cheio. E então brilhou sobre eles um foguete de sinalização, que se desmanchou em estrelas vermelhas, como fogo de artifício. “Já sabem onde estamos” disse Iporan. E imediatamente desabou sobre o pelotão uma compacta barragem de artilharia. “Vamos sair daqui, pra frente, pra frente!” Correram desesperadamente no meio das explosões, jogando-se ao chão, levantando, prosseguindo. Iporan viu o garoto da saúde receber uma bala na testa, viu o negrão especialista em minas ser partido em dois por obus que o atingiu em cheio. Iporan se jogou dentro de uma vala, bateu com o rosto no chão, ficou com a boca cheia de terra. Depois de tomar fôlego e cuspir terra, com toda calma, chamou os sargentos Celso, Rubens e Mathias. “Celso, pega teu Grupo de Combate e vai pela direita. Rubens, você vai pela esquerda. Mathias, você vai pelo centro. Quando eu mandar.” Os três sargentos se entreolharam. O tenentezinho quer cantar de galo. “Celso, você vai primeiro. Agora!” O sargento Celso Racioppi olhou para seu Grupo de Combate e falou, ríspido: “Comigo, macacada, avançando!” e disparou no rumo das casas, jogando-se nas estrias do terreno, espiando, avaliando e tornando a correr. Súbito, o sargento estaca. Fica imóvel. “Minas. Nossa Senhora. Estamos no meio de um campo  minado.” O tenente Iporan se aproximou rastejando. “Minas, tenente.” Iporan olhou o artefato. “Não é mina. É booby-trap. Eu sei desmontar essas bostas.” Todos ficaram de olho arregalado vendo o tenente mexer com seus dedos longos e aristocráticos aquelas pequenas caixinhas diabólicas. O tenente desmontava uma e dizia “pronto!” e seguia em frente e desmontava outra. Depois de meia hora não tinha mais booby-trap ativo. “Vamos continuar. Quero o Grupo de Combate do Mathias aqui com a gente. Vamos avançar juntos.” Rastejaram cada vez mais próximos das primeiras casas. Viam nitidamente suas paredes velhas e ásperas. “Quero o Grupo de Combate do Rubens avançando. Vamos nos preparar para invadir.” “Tenente.” “Sim.” “Estamos sem telefone. Os fios foram cortados com as explosões.” “Vamos usar o rádio.” “Estamos sem rádio também, tenente. Deixou de captar. Estamos muito longe, e o terreno é...” “Vamos invadir com ou sem rádio.” Os três sargentos se entreolharam. “Sim, senhor.” Esse tenentezinho estava saindo melhor do que a encomenda. “Vamos mandar um mensageiro avisando que vamos entrar na cidade. Que suspendam o bombardeio porque vamos entrar. Praça Melo.” O praça Melo era um negrinho só osso e nervo. Tocava pandeiro no bloco de carnaval do batalhão. “Sim, senhor.” “Vai até o comando da Companhia e avisa que vamos invadir, que suspendam o bombardeio. Dá um jeito de chegar até lá, Melo, pelamordedeus.” “Pode deixar, tenente.” O praça Melo saiu que era uma ventania, rastejando como um lagarto.  Viram-no sumir numa dobra de terreno. “Agora, vamos.” E os três Grupos de Combate começaram a aproximação da fortaleza alemã, com o tenente Iporan na frente. Mal deram os primeiros passos começou o fogo alemão. Jogaram granadas para o lugar de onde vinham os tiros e foram avançando. Iporan olhava e via que o avanço era firme, mas que alguns caíam feridos. De um buraco de metralhadora saiu o primeiro alemão e foi varrido, depois outro e outro. Agora tinham ultrapassado os primeiros baluartes da defesa, já caminhavam numa rua de pedra, rente ás paredes. Das janelas atiradores derrubavam mais soldados. Iporan tinha o olhar transtornado. “Quantas baixas?” “Calculo umas trinta.” Davam pontapé nas portas, entravam em salas vazias, irromperam numa cozinha onde enorme fogão a lenha imperava. O cabo Scliar se aproximou gritando: “Consegui contato, tenente, estou com o capitão Sidney.” “Alô, capitão, é o tenente Iporan. Introduzimos uma cunha na defesa deles, estou em Montese com três Grupos de Combate, mas a situação é crítica. Precisamos de reforço imediato para manter a posição.” “Muito bem, tenente, parabéns e aguenta firme mais um pouco, estou mandando para aí um pelotão de fuzileiros.” Os Grupos de Combate dos três sargentos se espalharam pelas ruas da cidade e foram tomando casa por casa. De várias delas saíam soldados alemães com as mãos para cima. Já não acreditavam mais numa resistência eficaz. Pouco depois os fuzileiros também entraram na cidade protegidos por tanques. A tarde já estava pela metade. Os poucos moradores que restavam apareciam e gritavam “liberatori, liberatori!” Uma mulher trouxe um garrafão de vinho para o tenente Iporan, que timidamente recusou. Afinal, estavam ainda em combate. Mas o sargento Mathias tomou o garrafão das mãos da mulher e levou-o a boca, bebendo com sofreguidão. O tenente Iporan fez que não viu e se afastou. Chegou na rua. Os fuzileiros marchavam dos dois lados, colados ás paredes, vigiando cada porta e janela. O tenente Iporan caminhou pelas ruas da cidade que conquistara. Os bombardeios, dos aliados e dos alemães, tinham destruído a cidade completamente. Não havia uma casa intata. A imponente torre desmoronou. Uma fumaça negra envolvia tudo. Havia gritos e correrias. O gago Atílio, Pedrinho e o alemão Wogler se apertavam contra a parede de uma capela com mais de 600 anos. “Estou com cãibra” gemeu o alemão. Caiu sentado, Pedrinho agarrou seu pé e começou a empurrar para trás. João Wogler gritava de dor, quando o gago Atílio gritou: “O-o-o-lhem lá.” Não tiveram dúvidas. Era Quevedo. Estava dobrado em dois, havia escombros ao seu redor, e no peito crescia uma grossa, escura, lenta mancha de sangue. O gago Atílio se ajoelhou ao lado dele e ficou ali parado, com medo de o tocar. Pedro Diax se aproximou. O alemão Wogler se arrastou até ele. Montese estava tomada, mas o cabo Quevedo estava morto.

O Palco Está Pronto Para a Matança

47.


Depois da conquista do Monte Castelo, a passagem pelos Apeninos tornou-se mais acelerada. Foram conquistadas pelos brasileiros, sem muito esforço, localidades há pouco consideradas inexpugnáveis como La Serra, Bela Vista, Cota 958, Soprassasso, Castelnuovo, Santa Maria Villena. Ninguém mais questionou a eficiência da FEB. Os exércitos aliados avançavam com ímpeto na direção de Bolonha. Em todos os encontros de comando se proclamava de peito inflado que chegara o momento da Grande Ofensiva. Havia ansiedade e euforia. Faltava um sinal do Alto Comando Aliado. E ele veio no dia 20 de março, quando em requerimento foram convocados todos os comandantes de Divisão para uma reunião em Casteluccio. No dia 24 de março, na sala de pedras de um castelo medieval, em torno de uma gigantesca mesa que refletia o teto em abóboda, realizou-se a reunião secreta com a presença dos comandantes de Divisão para a discussão do plano de operações para a investida sobre Bolonha. Estavam presentes Mark Clark, Trussaud, Crittenberg, Hayes e Mascarenhas de Moraes com todos seus estados-maiores. Para desgosto de Mascarenhas, a FEB foi sendo relegada dos planos e ao final do dia, esquema montado, nenhuma missão para os brasileiros. Foi então que o comandante da Décima de Montanha coçou a cabeça e lamentou: “Temos um erro aqui. Tudo se encaixa, menos o flanco esquerdo. Estou completamente desprotegido nesse lado.” Crittenberg deixou transparecer sua perplexidade. Estavam magnetizados pelo avanço rápido até Bolonha e esqueceram as precauções. “O maciço Montese-Montello, ocupado pelo inimigo e fortemente armado de Artilharia, é uma ameaça fundamental para o avanço” disse Hayes. Um silêncio caiu na sala em penumbra e sobre os homens cansados de um dia inteiro de especulações e montagens de táticas. “Com licença, senhores” disse Mascarenhas, prontamente traduzido pelo major Vernon. “Minha Divisão está sem tarefa nesta empreitada. Poderíamos nos ocupar de Montese, se nos derem essa honra.” Se havia alguma ponta de ironia no semblante sério de Mascarenhas nenhum dos imponentes generais acusou, mas Hayes foi rápido e jovial:  “O general Mascarenhas tem certeza de tomar Montese?”  “Tenho. Mas quero saber se o general Hayes tem certeza de aproveitar nossa vitória em Montese.” Todos deram risadas comedidas, mas Crittenberg bateu na mesa como encerrando a questão. “O general Mascarenhas nos dará Montese como precioso presente de primavera.” E no dia seguinte foi distribuído aos oficiais o plano da Grande Ofensiva. Este era longo, minucioso e técnico, mas terminava com um parágrafo curioso e que mostrava o estado de ânimo de todos. “Sobre prosseguir. Prossiga rapidamente, não amanhã, hoje a noite, esta tarde, agora mesmo! Saiba para onde está indo. Saiba suas linhas atingir os objetivos. Por exemplo: os brasileiros no vale a leste do Panaro. Não é momento para cautela. Uma vez que começou a avançar, dê todo o vapor. Não estamos em 1942 ou 43. Estamos no fim. Podem se permitir ao risco. Se não acham que tem todas as vantagens sobre o alemão, coloquem-se no lugar deles, e imaginem quanto de espírito de luta ainda lhes resta. Jogue a precaução ao vento. Seja arrojado e ativo. Nosso objetivo imediato é a Linha Negra. Quando chegarmos lá, teremos apenas começado. Ali é que começa a arrancada final. O palco está pronto para a matança.” E assim, duas semanas depois, preparados, armados e alimentados, os brasileiros estavam diante de Montese. Mal sabiam eles que aquele seria o maior desafio da aventura de guerra que estavam vivendo. “Então, isso é Montese” disse Pedrinho, abaixado na vala, olhando para a cidade medieval, fincada no alto da colina, com uma grande torre apontando para o céu. A cidade era uma massa escura no lusco fusco do amanhecer. O cabo Quevedo, ao lado dele, terminou cuidadosamente de enrolar um cigarro, acendeu-o e soprou a fumaça para o ar. “Essa cidade está me dando um mau pressentimento” disse. O sargento Nilson deu um tapa nas suas costas. “Pressentimento não é coisa de gaúcho, cabo. Não leu a Ordem do Dia? Jogue a precaução ao vento.” “Essa poesia barata só podia vir dos americanos” rosnou o segundo sargento Bóris, com um sorriso perverso. “Poesia barata ou não, essa é a ordem” falou Nilson começando a erguer a voz e começando a se irritar. “São seis horas em ponto e já já vamos receber ordem de avançar. Vamos lembrar uma coisa, bando de pederastas passivos: esta pode ser a última batalha da guerra. Tratem de ficar vivos.” Ainda estava escuro, mas a claridade do sol espreitando atrás dos cerros começava a definir os contornos da paisagem. O terreno na frente deles parecia uma escadaria natural. Era formado por grandes degraus que se alternavam até as primeiras casas, todas de pedra. “Os caminhos estão minados, portanto vamos atrás dos sapadores, com cuidado onde botam o pé.” Aquela podia ser a última batalha da guerra, essa era uma frase que andava no ar, solta como uma nuvem, e isso era uma frase que atingia os soldados com sua ambiguidade de esperança e medo. Por um lado o fim da guerra estava próximo, por outro: “Perder a vida na última batalha é triste demais” disse o alemão Wogel. “É deprimente” disse Quevedo. O sargento Max passou com seu Grupo de Combate. Nilson o interpelou: “Onde vão?” “Sondar. Vamos tentar nos aproximar até aquela casa que tem uma fumacinha saindo da chaminé.” “Cuidado com as minas.” “Vamos devagar.” “E os jornalistas?” “Me livrei deles. Se grudaram em mim como carrapato, queriam seguir junto com a patrulha, mas fiz ver ao coronel Pitaluga que não era possível, eles iriam nos desviar o foco.” “Tá certo. Boa sorte, Max.” E o sargento Max começou a avançar com sua patrulha, aproveitando os desníveis da vasta escadaria natural que levava até os arredores de Montese. Estava já bem próximo da casa da qual saía fumaça pela chaminé quando uma rajada de metralha atingiu o grupo. O sargento Nilson sentiu um impacto na alma. “Meu Deus, acertaram o Max.” Todos viram o lendário sargento Max, o Rei das Patrulhas, dobrar o corpo e cair sobre os joelhos lentamente.

Monte Castelo: A Conquista

46.


Sentindo cada vez mais próximo o ruído das explosões, Brayner foi se aproximando do Posto de Comando da Infantaria, onde estava o general Zenóbio da Costa no comando do ataque. Encontrou Zenóbio carrancudo, com as mãos ás costas, e caminhando de um lado para o outro, olhar cravado no coronel Caiado de Castro. Este, manobrando um telefone e o rádio, falava ansiosamente com o major Uzeda, detido na última etapa da arrancada para o cimo do Monte pela barragem de canhões e morteiros dos alemães. Na sala ardia um fogo na lareira, e vários oficiais e sargentos, todos atarefados, mexiam em papéis e falavam aos telefones. Brayner solicitou para falar a Zenóbio reservadamente. Afastaram-se para outra sala. Brayner contou a visita do Mark Clark e a pressão de Crittenberg. “Que ele fizesse isso já era de se esperar.” “Sabemos, general, mas o general Mascarenhas também está preocupado com a lentidão.  Ele quer que o Castelo seja tomado ainda com a luz do dia.” “Eu sei, eu sei, isso é o que todos querem, eu quero, você quer, o comandante em chefe quer. Quem tem de dar a ordem para o lance final é o Caiado, mas ele não se resolve.”  E num arrebatamento, abriu a porta e voltou para a sala de comando, aproximando-se do coronel Caiado de Castro. “Já disse a este camarada que dê imediatamente ordem para o ataque final ou eu irei pessoalmente atacar com o batalhão de reserva e o pessoal do estado-maior da Infantaria Divisionária que está comigo. Não tem outra alternativa.” Caiado de Castro se levantou num salto, muito pálido. “General, meu único intuito com a cautela é evitar o sacrifício inútil de vidas. Estamos sofrendo muitas perdas.” “Mas, meu caro, você quer conquistar o Monte Castelo com homens ou com flores?” Todos os olhares da sala convergiram para os dois homens. Brayner interviu: “Afinal, o que devo dizer ao general Mascarenhas?” “Diga ao general Mascarenhas que dentro de 20 minutos estarei em cima do monte Castelo, sem qualquer dúvida.” E dirigindo-se ao tenente-coronel Ademar de Queiroz, seu chefe de comunicações: “Transmita ao comando da Artilharia Divisionária o pedido de uma última concentração de 5 minutos de duração com a mais viva cadência e o máximo de potência, com a totalidade dos meios. Vamos partir para o ataque final. Brayner, essa é minha resposta ao general Mascarenhas.” E estendeu a mão para apanhar o telefone de Caiado, mas este não o entregou. Com amarga dignidade disse: “Eu estou no comando dos batalhões, general. Eu darei a ordem.” E discou mais uma vez o aparelho. “Alô, major Uzeda? A ordem é atacar agora. Agora. Com tudo. Só pare quando estiver na cota 977.” Depositava lentamente o telefone no apoio quando Brayner o apanhou. “Com licença. Alô, major Uzeda? Aqui é Brayner. O comandante da Divisão está acompanhando sua magnífica ação. Eu o felicito e desejo boa sorte no lance final.” “Obrigado, meu coronel. Eu não o decepcionarei, meu caro mestre.” Brayner largou o telefone e olhou os rostos ao redor. Havia intensa emoção em todos. “Vou indo, senhores, vou levar essa mensagem ao comandante.” E saiu porta afora, seguido pelos seus dois acompanhantes. A 700 metros dali, o major Olívio Uzeda coçou o bigode, olhou para o tenente Iporan e o sargento Nilson e disse: “Agora não paramos mais. Vamos com tudo, macacada.” E durante curto instante ficou como flutuando longe, pensativo, e então sacudiu a cabeça com força e levantou a mão que empunhava a metralhadora. Fez o sinal de avançar. Jogou o corpo para a frente.  E sentiu que todo seu batalhão, mais de 800 homens, como eletrizados, o seguiram no movimento. O major Franklin, no outro lado da montanha, percebeu que aumentava consideravelmente o fogo da artilharia brasileira contra o Castelo e gritou: “O Cordeiro tá querendo destruir o mundo! Alerta! Vamos nos preparar para a arrancada! Todo mundo um passo a frente!” E o terceiro batalhão do ataque, comandado pelo major Sizeno, o último a entrar em movimento, recebeu ordem de avançar pelo centro. A montanha parecia viva, com aqueles milhares de homens se deslocando sobre ela. “Formigas no lombo de um elefante” murmurou Bóris Schneidermann para Carlos Scliar,agarrado ao telefone, ambos a meio metro do general Cordeiro de Farias, calculando as coordenadas e mantendo o pedido de Zenóbio enquanto os homens rastejavam e se aproximavam cada vez mais do cimo da montanha maldita. “A noite vai chegar” disse Uzeda, “vamos fazer mais um esforço, moçada!” E Pedro Diax e o gago Atílio e o alemão Vogler e o esclarecedor Bandeira e o cabo Quevedo e os sargentos Nilson e Max e os tenentes e os capitães todos rastejando, resfolegando, suando, se espetando nas pedras e gemendo e ficando surdos com tanta explosão foram subindo e se arrastando e de repente  aparecem vultos de alemães com as mãos para cima. “Entreguem as armas, entreguem as armas!” Os alemães não entendiam mas entregavam as armas, mais alemães surgiam dos buracos, pálidos e atarantados e eram cercados e desarmados e empurrados para um canto e os brasileiros subiam cada vez mais e como num sonho o major Olívio Uzeda galga uma rocha redonda e percebe que está praticamente no alto da montanha e dá um grito selvagem, um grito de alívio, um grito sufocado lá dentro desde três meses atrás quando pela primeira vez tentaram subir a montanha e foram escorraçados e então ele vê vultos a 100 metros dali e são brasileiros, são mais brasileiros do Sampaio e são nada mais nada menos do que os homens do Batalhão Franklin, então eles conseguiram meu Deus, eles também conseguiram, e o major Uzeda sente as forças triplicarem e corre cada vez mais para o alto da montanha e puxa um dos soldados do Batalhão Franklin e pergunta cadê o Emílio, cadê o Emílio e ouve a voz do major Emílio Rodrigues Franklin dizer estou aqui estou aqui e então os dois soldados se olham e depois se abraçam.

Monte Castelo: O Segundo Dia

45.


Ás seis da manhã, quando o sol frio do segundo dia do ataque iluminou a montanha, os batalhões do major Franklin e do major Uzeda, mais de dois mil soldados, já subiam as trilhas escarpadas. Havia um sentimento em todos os setores das linhas, o sentimento de que “desta vez vai”, como dissera o cabo Quevedo, mastigando sua ração. O batalhão do major Franklin progredira durante a madrugada silenciosamente, sem encontrar obstáculos, e começava a se aproximar das linhas de trincheiras alemãs mais avançadas. Mas aí parou: foi como se os defensores da montanha tivessem acordado de repente. Um fogo intenso e bem distribuído dizimou a vanguarda do batalhão Franklin em poucos segundos, causando súbito pânico, obrigando-os a se proteger e deter a progressão. “Muita calma, muita calma” dizia o major sem parar “vamos esperar o fogo diminuir e tentar um envolvimento.” Mas na verdade, o envolvimento daquele setor alemão só poderia ser feito pelo batalhão Uzeda. Este avançava por um setor mais íngreme, quase vertical, precisando utilizar equipamentos de alpinista que mal sabiam manejar. O gago Atílio ia pegado a Pedrinho. O gago Atílio tinha fobia de altura e subia praticamente de olhos fechados. Perto dele o major Uzeda atendeu o rádio que o sargento Horácio lhe estendeu. Era Mascarenhas de Moraes. “Como está a progressão, major?” “Estamos quase chegando na cota determinada, comandante.” “Muito bem, major.  Estamos todos confiantes na sua ação.” “Obrigado, comandante, não vamos falhar.” E então o major Uzeda estremeceu de horror porque o pescoço do sargento Horácio foi violentamente rompido em dois e esguichou sangue ao redor, encharcando sua jaqueta e suas mãos que instintivamente protegeram o rosto. Todos se encolheram quando nova rajada de metralha caiu sobre eles, pendurados na beira do abismo.  “Cobertura!” gritava Uzeda “tenente Iporan, cobertura!” O tenente Iporan vinha logo atrás deles em missão de cobertura e estava completamente desconcertado, porque não atinava de onde vinha o fogo. Nova rajada cai sobre os homens de Uzeda e três deles despencam e rolam pelo abismo, ficando presos vários metros abaixo em saliências da rocha. O tenente Iporan chama o sargento Nilson que chama o cabo Quevedo que chama o gago Atílio que se agarra a Pedrinho. “De onde vêm esses tiros?” “Dali.” Vinham detrás deles, de um local onde teoricamente jamais poderiam estar os alemães. Então ele viu um capacete, e em seguida dois capacetes.“Nossa Senhora” exclamou Pedrinho “são os americanos!” “São os caras da Décima!” “Alto, alto, não atirem, somos amigos, somos brasileiros, não atirem!” o capacete se ergueu um pouco mais e viram dois olhos arregalados de espanto. “Brasileiros?” O major Uzeda olhou para o rosto dilacerado do sargento Horácio e levantou a metralhadora contra os homens da Décima, trêmulo de fúria. “Americanos filhos da puta!” Mas o tenente Iporan se colocou na sua frente. “Calma, major, por favor!” A voz de Mascarenhas de Moraes ecoou no aparelho de rádio. “Major Uzeda, major, o que está acontecendo? Responda.” No Posto de Comando todo o Estado Maior ouvia pelos aparelhos de transmissão em fonia as vozes crispadas de ódio. “Fomos atacados pelas costas por homens da Décima, comandante. O sargento Horácio foi morto, e possivelmente há outros. Fomos atacados sem aviso e pelas costas.” “Mantenha a calma, major, é uma ordem. Não revide.” “Sim, senhor. Trate de se entender com eles, devem estar perdidos e confundiram vocês com alemães.” “Sim, senhor.” E foi o que aconteceu. Um capitão da Décima apareceu pouco depois, mas ao contrário do que esperavam, não parecia abalado nem pediu desculpas. “Posso ceder alguns dos meus homens para substituir os que o senhor perdeu, major” disse. Uzeda quase saltou no pescoço dele. “Quero que você saia da minha frente imediatamente. Imediatamente.” No Posto de Comando, ao iniciar a tarde, o segurança anuncia que se aproxima um grupo de visitantes. Mascarenhas vê entrar na sala da casa de pedras o comandante do XV Grupo de Exércitos, nada menos que o general Mark Clark, tendo a seu lado o general Truscott. E não era só, estavam também o general Crittenberg e mais quatro generais, sete ao todo com seus estados-maiores. A sala ficou pequena. Após os cumprimentos, Crittenberg pediu para Mascarenhas definir a situação. O major Vernon Walters traduzia. Crittenberg não gostou. “O Batalhão Franklin está detido? E o que o senhor está fazendo?” “O Batalhão Uzeda está executando uma manobra de envolvimento sobre os alemães que bloqueiam a progressão de Franklin pelo norte. Tiveram um contratempo, mas estão se aproximando, embora com lentidão. A região é muito escarpada.” “O senhor já empregou alguma reserva?” “Não. E não acho que seja o caso, pelo menos por agora.” “Onde se encontra sua reserva?” “Um batalhão em Gaggio Montano, o outro em Silla. Ambos serão acionados no momento oportuno.” Os dois generais se olharam com intensidade. Parecia que em alguns segundos um deles explodiria. Crittenberg apontou seu relógio de pulso. “A tarde já começou e ainda estamos longe de tomar o Monte Castelo. Nada! Mais uma vez.” Mascarenhas ia dar uma resposta dura, quando  Mark Clark interferiu: “O responsável pela manobra é o general Mascarenhas, senhores. A manobra está em curso e ele não solicitou nenhum auxílio. Não nos compete opinar neste momento. Na verdade, general Mascarenhas, passamos aqui apenas para desejar boa sorte. Senhores, eu os convido a nos retirarmos, porque o general Mascarenhas tem mais o que fazer do que nos dar atenção.” Crittenberg fechou o rosto, mas nada disse. Todos se retiraram com a mesma cautela com que chegaram. Mascarenhas sentou numa cadeira e deu um suspiro profundo. “O cowboy tem razão. A progressão está lenta. Já era para estarmos lá em cima.” “Perdemos mais de uma hora por causa da confusão com o pessoal da Décima que nos atacou, comandante” disse Brayner “até que eles se retirassem de nossa zona de ação e fossem substituídos não conseguimos avançar. Na verdade, segundo o major Uzeda, perdemos a chance de envolver completamente os alemães por causa desse contratempo. Eles conseguiram se retirar, inclusive arrastando canhões e armamentos.” “Muito bem, Brayner, mas vamos agir. Você vai subir a montanha.” “Sim, senhor.” “Quero que você faça um contato pessoal com o general Zenóbio. Diga-lhe que a Ordem de operações deve ser cumprida na íntegra. Diga-lhe que desejo chegar ao alto da crista ainda com a luz do dia. Agora vá, meu amigo, e tome cuidado.” “Sim, caro mestre, encontrarei o general Zenóbio em no máximo 30 minutos.” Brayner saiu da casa e olhou para a montanha gelada. Ia subir. O tenente Reverbel, seu ajudante, juntou-se a ele. Com o sargento Amaro de guia, começaram a subir a montanha que ardia ao som dos canhões e das explosões dos obuses.

Monte Carlo: A Decisão

44.


“Um batalhão tem mais ou menos 700 homens, estamos atacando com três batalhões, mais de 2 mil homens, portanto.” “E quem comanda os batalhões?” “O coronel Caiado de Castro e os majores Uzeda e Franklin. Cada um comanda um batalhão. Esses três oficiais são os encarregados de chegar ao topo da montanha, tomá-la dos alemães e manter o terreno conquistado.” “Mas esses batalhões não são daquele mesmo regimento que... bem... foi batido... digamos, fracassou... nos  ataques anteriores?”  Havia uma ponta de maldade na pergunta do jornalista, já que todos sabiam a história do confronto do Regimento Sampaio com os alemães defensores do Monte Castelo. E havia mais: todos os que sabiam, agora observavam. Aquele era um momento de decisão: o Regimento Sampaio estava jogando toda sua história, passado e futuro, naquele único ataque. “Ele mesmo” respondeu o major. “O Sampaio. O Onze de São João dos Queijos. Foi batido e humilhado. Mas o general Mascarenhas tem confiança nele. O Sampaio vai á forra, meu amigo.” “Mas não é uma temeridade? E se não der...” “Vai dar. Desta vez o mecanismo do ataque é aquele que a FEB vem postulando desde o novembro do ano passado, quando começaram estas operações” disse o major Alcyr, admirando a audácia do repórter brasileiro que conseguira chegar até o Posto de Comando da 10º. Divisão de Montanha, onde o major servia como oficial de ligação. Como o repórter tinha chegado ali era um mistério. “A Décima já cumpriu a Fase A do plano, que é tomar as elevações dos montes Belvedere e Gorgolesco. Neste momento está se deslocando para Capela de Ronchidos. Depois deles ocuparem essa área o Sampaio sobe a montanha, com proteção nos flancos, fato que não aconteceu nas vezes anteriores. A operação da Décima na noite anterior foi exitosa mas nada fácil. Logo na saída, um dos projetores que deveriam fazer o luar artificial para os montanheses se equivocou e iluminou a base de partida onde se encontrava a Décima aguardando a ordem de iniciar o ataque. Os alemães os viram e mandaram um forte fogo de barragem, o que causou pesadas perdas e um início de pânico. As perdas foram tão graves que o batalhão atingido foi substituído por um da reserva. Mas normalizadas as coisas o ataque foi ordenado e eles tomaram o Gorgolesco e o Belvedere, subindo pelo lado mais vertical, onde os alemães jamais imaginariam que fossem atacados.” “E quando o Sampaio ataca?” O major Aldyr olhou o relógio. Eram 15 horas em ponto. “Agora.” A quatro quilômetros dali, em seu Posto de Comando na subida da montanha, Zenóbio apanhou o telefone e falou: “Caiado? Está me ouvindo? Passe a ordem: comece a ofensiva.” E assim, as grandes massas de soldados do Regimento Sampaio começaram a se mover lentamente, subindo a encosta íngreme. Estava um dia azul e gelado, ainda havia espaços cobertos de neve, mas a progressão era a luz do dia, o que diminuía o desconforto mas aumentava o perigo. O Grupo de Combate do sargento Nilson marchava bem a frente dos demais, tendo o soldado Bandeira como esclarecedor. Eles subiam com a sensação esquisita de que já conheciam aqueles caminhos. “Estivemos aqui antes” disse Bandeira, “logo ali fica Abetaia.” Aquele nome provocava amargas lembranças: lá tinham entrado no Corredor da Morte, sem a prometida proteção dos flancos, e deixaram dezenas de mortos sem sepultura. Nesse momento o ordenança de Zenóbio passa o telefone para ele. Zenóbio escuta. É o major Aldyr: “General, a Décima está encrencada na região de Capela de Ronchidos.” “O que acontece?” “Estão detidos pelo fogo inimigo. É muito forte. Se o batalhão Uzeda avançar vai ficar sem proteção, a história vai se repetir.” “Me mantenha informado.” E desligou. Se os americanos não ocupassem Capela de Ronchidos o pesadelo regressaria. O batalhão Uzeda ficaria num fogo cruzado, servindo de alvo. O que fazer? Mandar Uzeda esperar pelos acontecimentos ou continuar avançando? Enquanto pensava ouviu o ronco dos aviões passando baixo, um ronco possante que lhe deu um ímpeto de alegria. “É a FAB! São os nossos.” Correu para fora da casa de pedra e viu a esquadrilha de bombardeiros voando em formação sobre as montanhas, perfeita contra o céu azulado. “É a nossa força aérea! São os malucos do Moreira Lima! Agora os alemães vão sentir as bombas do Senta a Pua! Quero o Uzeda avançando, a FAB veio dar uma mão para a Décima.” E foi isso o que aconteceu. A Força Aérea Brasileira bombardeou com precisão os canhões e tanques alemães, destruindo muitos. O poder de fogo dos defensores do Monte Castelo diminuiu drasticamente. Os americanos da Décima sentiram o vacilo e tornaram a avançar com energia, saindo dos esconderijos. O batalhão Uzeda arremeteu pelo Corredor da Morte, mas desta vez não caiu em armadilha alguma. As 17;30 hs brasileiros e americanos se encontraram a beira de um precipício e houve um instante de estranhamento quando ficaram frente a frente. Mas logo o largo sorriso do inconfundível esclarecedor Bandeira desarmou os corpulentos soldados da Décima de Montanha. “São os brasileiros!” “São os americanos!” gritaram uns para os outros. Americanos e brasileiros confraternizaram durante alguns instantes, trocaram abraços, cigarros e chocolates. O ordenança passou o telefone para Zenóbio. “É o general Mascarenhas de Moraes.”  “Zenóbio, o general Crittenberg dá os parabéns pela arrancada da 1ª. Divisão de Infantaria e manda sustar a progressão por hoje. A tarefa e manter rigorosamente as posições conquistadas. Vamos tomar fôlego para a última etapa do ataque, amanhã.” “Muito bem, general, amanhã é que vai ser duro.” “Exatamente. Prepare patrulhas fortes para sondar o inimigo durante a noite, busque o contato, e ocupe as posições que ele abandonar.” “Sim, senhor, comandante.” E desligou, procurando decifrar o pressentimento que o rondava. Naquela noite os três batalhões do Regimento Sampaio dormiram muito pouco, atentos a noite gelada, a ruídos inesperados, a canhonaços distantes ecoando nas vastidões escuras. Quando começasse a amanhecer sabiam que teriam de retomar a marcha e subir a parte mais difícil da escalada e, quem sabe, enfrentar o maior desafio de suas vidas. “Quanto falta para chegar lá em cima, sargento?” perguntou Pedrinho. O sargento acendeu o cigarro: “Muito.”