40.
O fogo na
lareira aquecia a sala toda, os rostos estavam corados e a grapa começava a
soltar as línguas. A neve caía sem parar lá fora. Para os homens ali reunidos
isso dava um sabor nostálgico para
aquele evento. Eram todos católicos. A neve em dezembro era um símbolo cultural
patético e deprimente, mas a mesa
montada para a celebração de Natal no hotel onde funcionava o QG da FEB estava
festiva. No centro, o comandante em chefe, general Mascarenhas de Moraes, e de
cada lado dele os generais Zenóbio e Cordeiro de Farias. Diversos oficiais
completavam a mesa, em torno de quinze, e havia um convidado especial, o major
Vernon Walters, o oficial de ligação e intérprete, que tanto participara das
tensas conversas com Crittenberg. Vernon se debruçou sobre Mascarenhas e
sussurrou: “Folgo em ver que os oficiais de seu Estado Maior não farão as
mesmas queixas do visconde de Taunay contra o conde d´Eu, na guerra do
Paraguai, general.” “E que queixa foi essa, major?” “A de que não participava
da mesa do conde, sendo seu ordenança imediato. E isso que Taunay tinha título
de nobreza.” Cordeiro entrou na
conversa. “O conde d´Eu era conhecido por ser um oficial pedante, major.” “E eu
sou conhecido por ser um oficial pelo duro de São Gabriel” disse Mascarenhas. Ele
sabia que Vernon e Cordeiro de Farias eram profundos conhecedores de História
Militar, e gostava de ouvir suas trocas de ideias e discussões sobre fatos do
passado. Zenóbio e Brayner, lado a lado,
trocavam confidências em voz baixa. “Recebemos a munição, Brayner. Finalmente
nossos amigos americanos se lembraram de nós.” “Amigos, general?” “Ué, aliados
não são amigos?” “Não necessariamente. Tenho minhas dúvidas, general. É preciso
verificar o estado dessa munição.” Mascarenhas ouviu um resto da frase e
pareceu se lembrar de algo. “Major Vernon” disse, “o segundo e o terceiro
escalão estão a um mês na Área de Instrução e o material para equipar as
unidades ainda não chegou. O que eu devo fazer, major, na sua opinião? Enviar
um comando para conseguir esse material?”
Vernon sorriu sem graça. “O próprio general Mark Clark me informou ontem
que já ordenou a entrega do material, general.” “Major Vernon” disse Cordeiro
de Farias “sinto me meter nesse assunto, mas meia hora atrás eu li o relatório
de campanha e descobri que esse equipamento está a disposição desde que o
segundo escalão chegou.” “Há um entrave na entrega dos materiais fundamentais
para o adestramento da tropa que chega a ser suspeito, major.” “Compreendo sua
frustação, general. Vou insistir com o general Mark Clark.” “Obrigado, major.
Agora, senhores, não quero mais ninguém fazendo perguntas indiscretas ao major
Vernon. Ele é nosso convidado e o estamos deixando constrangido. É noite de
Natal, vamos afastar os maus presságios.”
Mau presságio é o que o sargento Nilson sentiu quando viu alguém
rastejando na neve e se aproximando do buraco onde estava. Engatilhou a arma
mas quem apareceu na sua frente foi o cabo Quevedo. “Tá de serviço, sargento?”
Nilson olhou para ele desconfiado. “Por que? E o que você faz aqui?” “Nas
noites de Natal baixa em mim o Papai Noel. Tá de serviço ou não?” “Tô sempre de
serviço, cabo.” “Então, infelizmente, não vou poder lhe passar este elixir dos
deuses, que os italianos chamam de graspa. Sinto muito, sargento.” E já ia se
afastando quando o sargento o apanhou pelo coturno. “Espera aí, mandrião. Deixa
essa garrafinha aqui.” Quevedo alcançou o cantil para ele. “Um gole só,
sargento, a distribuição é racionada.”
Nilson bebeu um gole fundo. “Não fica bem um sargento beber em serviço”
disse Quevedo. Estava fazendo mais de 15 graus abaixo de zero, a neve não
parava de cair e ali naquele buraco estreito, o fox-hole como se acostumaram a
chamar, se apertavam além do sargento Nilson os praças João Wogel e o gago
Atílio. A graspa passou de mão em mão, voltou para Quevedo. “Missão cumprida,
vou indo para a próxima chaminé.” E viram-no rastejar na neve em direção ao
próximo buraco. Todos estavam de branco. Agora que os grandes movimentos de
tropa estavam cancelados pela dureza do inverno e a rotina da guerra se
restringira a ações de patrulha, havia outra desvantagem em relação aos
alemães. Eles usavam fardamento inteiramente branco, o que os tornava
invisíveis e aptos para ataques de surpresa. Os brasileiros logo se deram conta
da enorme desvantagem. Os prometidos uniformes de inverno não chegavam e foi
preciso mais uma vez improvisar. Tudo que era possível transformar em um
camisolão branco para enfiar por cima da farda verde-negra foi mandado para as unidades
da linha de frente. Então vieram aventais de médicos, enfermeiras, cozinheiros,
barbeiros, e vieram lençóis, fronhas, tudo que era branco e podia ser
transformado nos camisolões que os soldados que saíam em patrulha ou montavam
guarda nos fox-holes enfiavam por cima do uniforme. Eram com esses remendos
improvisados que os pracinhas faziam sua camuflagem para se igualar aos alemães
na nova modalidade de guerra que começavam a enfrentar. Quevedo chegou noutro
fox-hole. A grapa correu de mão em mão. “Ei, Quevedo, pensei que tu ia trazer
uma italiana pra nós.” “Essa grapa é italiana, pra ti é mais do que
suficiente.” “Ei, Quevedo, conheci um americano que quer me vender um jipe.
Quer que eu te apresente?” “Quero. Eu tenho comprador. Quem é o americano?” “Um
cara da Decima Divisão de Montanha, um baita dum gringo, diz que o jipe tem os
quatro pneus novos.” “Deve ser mentira, mas me apresenta pro cara que eu tenho
comprador. Agora me devolve o cantil que eu vou seguir em frente.” Quevedo
apanhou o cantil, tomou um gole, viu que acabara, derramou as últimas gotas na
palma da mão, apanhou outro cantil, pendurou-o no ombro e seguiu sob a nevasca,
arrastando-se em direção ao próximo buraco.
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