quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Os Canhões de Monte Prano - II

21.

Pedrinho parou numa curva da estrada e sentou numa pedra. Começou a descalçar a botina do pé direito. O sargento Nilson parou na frente dele. “O que estás fazendo, estupor?” “Tô com os pés cheios de bolha, sargento, mal posso caminhar.” O sargento Nilson já ia despejar uma série de impropérios, mas conteve-se. Conhecia esse praça, sabia que ele não era dissimulado nem mandrião. “Vais ter de aguentar. Logo vai escurecer e aí vamos parar. Não vamos subir essa montanha no escuro.” “E vamos dormir onde, sargento?” “No hotel de luxo que te falei.” Esse praça não era dissimulado nem mandrião, mas as vezes parecia muito idiota. Dizem que ele foi levado pra dentro de um submarino. Deve ser por isso, devem ter injetado algum soro nele para ser tão bobo. “Vamos lá, istepô, em marcha.” Em marcha, em marcha, isso era o que mais Pedrinho escutava desde que saíram de Camaiore. O tenente Mário disse que a caminhada até o cimo do Monte Prano iria levar umas vinte horas, mas já fazia dois dias que estavam nessa marcha e ainda não tinham chegado nem na metade do caminho, isso porque os alemães não deixavam. Desde o dia anterior caía sobre eles uma carga de bombas e metralhas incessante, que os obrigava a buscar abrigo atrás de pedras e árvores, sem verem sequer o vulto do inimigo. Passavam a maior parte do tempo abaixados e escondidos do que avançando. Isso era a manobra envolvente que ordenara Zenóbio. O fato é que ele tinha razão. Se subissem de peito aberto já contariam dezenas de mortos. Milagrosamente, até agora nenhum soldado brasileiro fora morto. Já havia quase 100 feridos, morto nenhum, graças a Deus. Mas mal Pedrinho calçou a botina do pé direito e deu o laço no cadarço, o soldado que passava na sua frente, na desordenada fila que subia a montanha, caiu com um grito, rosto coberto de sangue. Pedrinho ficou estarrecido e sentiu-se erguido no ar. Era a mão pesada do sargento Nilson que o agarrava pelo pescoço e o arrastava para fora da estrada, que estalava de estilhaços, pó e o cheiro nauseante de pólvora. Padioleiros apanharam o corpo do pracinha ferido debaixo de uma torrente de explosões e o arrastaram para uma reentrância da parede rochosa. O capitão Ernani apareceu na frente de todos: “Em marcha, em marcha!” e eles continuaram a marchar, na beira do precipício de mais de mil metros de profundidade, de onde subia uma fina camada de nuvens. Passaram por casas abandonadas. Entraram para conferir: as salas vazias davam angústia, tudo fora abandonado ás pressas. Quevedo brincou com um gato pardo que se enroscou em suas botinas. Bandeira sentou numa cadeira de balanço e fingiu que roncava. “É igualzinha a de minha avó, só que ela roncava mais grosso.” Depois de se alimentar, continuaram a escalada, a estrada tornava-se cada vez mais estreita, as curvas mais fechadas. Anoiteceu e a sensação de medo e desconforto aumentou. Como nas duas noites anteriores, formaram círculos para dormir, os comandantes dos grupos um pouco afastados. Agora a ordem era silêncio absoluto. Sabiam que o grosso dos alemães estava muito próximo, e eles podiam tentar um golpe de mão aproveitando a escuridão. “Golpe de mão” era a expressão da moda, e os enchia de pavor. Os alemães eram mestres em “golpes de mão”, uma manobra rápida feita por um grupo reduzido, cair sobre o alvo, metralhar, esfaquear e retirar, deixando mortos e feridos. Dormiram sonhando com “golpes de mão”, envoltos por uma cerração que encharcou as fardas, os calçados e as armas, e os deixou enregelados. “Não sinto minha mão” murmurou o Alemão para Atílio, mas já era de manhã e o sargento Nilson passava cutucando com o coturno e sussurrando “de pé, de pé, mandriões” e em pouco estavam novamente naquele estrada agora escorregadia e sem fim. “Onde estamos, capitão?” perguntou o tenente Mário, e o capitão Ernani o olhou com profunda irritação: “Isso eu gostaria de saber, tenente.” Prosseguiram em meio ao torpor da cerração gelada mais um dia inteiro, com paradas cada vez mais frequentes. Numa curva da estrada Bandeira ouviu vozes. Da cerração surgiu um vulto estranho. Era um burro carregado com cestas, tocado por um homem e um menino. Ficaram paralisados, se olhando, Bandeira colocou o indicador nos lábios e fez sinal para eles seguirem. O burro, o homem e a criança passaram espremidos entre o exército que subia a montanha e o abismo. E finalmente, no dia seguinte, com a cerração ainda mais densa e indevassável, o esclarecedor Bandeira tropeçou numa cerca de arame farpado. Ficou sem mover um dedo, rezando para que não fosse ligada a uma mina. Afastou-se e chamou o sargento. Examinaram a cerca. “Chegamos” sussurrou o sargento Nilson “isto deve ser a primeira linha de defesa deles.” O capitão Ernani arrastou-se até eles. Tocou no arame como em algo nunca visto. “Aqui é o começo da tal Linha Gótica.” De  repente a névoa abre uma brecha e podem ver mais adiante. Fortificações, maciços de concreto, um enorme canhão 105. “É aquele o filho da mãe” diz o tenente Mário, procurando espaço entre eles. “São dois” diz o sargento, apontando outro mais adiante. “São três” diz o tenente Mário, apontando o terceiro. “E agora?” o sargento olha para o capitão. “Um grupo de combate avança, dois dão cobertura” diz Ernani. “Vamos nos arrastar até lá e cair de surpresa sobre eles, duvido que pensem que estamos tão perto.” “Sargento, você vem comigo” diz o tenente Mário “traga seu Grupo de Combate.” E o tenente Mário Cabral de Vasconcelos, 23 anos, começou a se arrastar em direção ao posto de artilharia alemã, sem dar tempo do sargento Nilson dizer sim, senhor. Eram quinze homens se arrastando em silêncio. Suas únicas experiências de guerra até o momento tinha sido a tomada de Camaiore e aquela subida penosa pela estrada da montanha. Pedrinho, o gago Atílio, Alemão, Quevedo, Bandeira, com os dedos duros de frio, apertando os fuzis, agarrando as granadas, se arrastavam com o máximo de cuidado. O sargento Nilson colado no tenente Mário. Mal respiravam. Escorregaram por baixo de uma cerca de arame farpado. A farda do gago Atílio se prendeu e ele safou-se com um arranco nervoso, que fez um ruído de coisa rasgada. A névoa se abriu por um momento e eles viram os alemães a menos de 10 metros, com seus capotes cinzentos.

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