21.
Pedrinho parou
numa curva da estrada e sentou numa pedra. Começou a descalçar a botina do pé
direito. O sargento Nilson parou na frente dele. “O que estás fazendo, estupor?”
“Tô com os pés cheios de bolha, sargento, mal posso caminhar.” O sargento
Nilson já ia despejar uma série de impropérios, mas conteve-se. Conhecia esse
praça, sabia que ele não era dissimulado nem mandrião. “Vais ter de aguentar.
Logo vai escurecer e aí vamos parar. Não vamos subir essa montanha no escuro.”
“E vamos dormir onde, sargento?” “No hotel de luxo que te falei.” Esse praça
não era dissimulado nem mandrião, mas as vezes parecia muito idiota. Dizem que
ele foi levado pra dentro de um submarino. Deve ser por isso, devem ter
injetado algum soro nele para ser tão bobo. “Vamos lá, istepô, em marcha.” Em
marcha, em marcha, isso era o que mais Pedrinho escutava desde que saíram de
Camaiore. O tenente Mário disse que a caminhada até o cimo do Monte Prano iria levar
umas vinte horas, mas já fazia dois dias que estavam nessa marcha e ainda não
tinham chegado nem na metade do caminho, isso porque os alemães não deixavam.
Desde o dia anterior caía sobre eles uma carga de bombas e metralhas
incessante, que os obrigava a buscar abrigo atrás de pedras e árvores, sem
verem sequer o vulto do inimigo. Passavam a maior parte do tempo abaixados e
escondidos do que avançando. Isso era a manobra envolvente que ordenara
Zenóbio. O fato é que ele tinha razão. Se subissem de peito aberto já contariam
dezenas de mortos. Milagrosamente, até agora nenhum soldado brasileiro fora
morto. Já havia quase 100 feridos, morto nenhum, graças a Deus. Mas mal
Pedrinho calçou a botina do pé direito e deu o laço no cadarço, o soldado que
passava na sua frente, na desordenada fila que subia a montanha, caiu com um
grito, rosto coberto de sangue. Pedrinho ficou estarrecido e sentiu-se erguido
no ar. Era a mão pesada do sargento Nilson que o agarrava pelo pescoço e o
arrastava para fora da estrada, que estalava de estilhaços, pó e o cheiro
nauseante de pólvora. Padioleiros apanharam o corpo do pracinha ferido debaixo
de uma torrente de explosões e o arrastaram para uma reentrância da parede
rochosa. O capitão Ernani apareceu na frente de todos: “Em marcha, em marcha!”
e eles continuaram a marchar, na beira do precipício de mais de mil metros de
profundidade, de onde subia uma fina camada de nuvens. Passaram por casas
abandonadas. Entraram para conferir: as salas vazias davam angústia, tudo fora
abandonado ás pressas. Quevedo brincou com um gato pardo que se enroscou em
suas botinas. Bandeira sentou numa cadeira de balanço e fingiu que roncava. “É
igualzinha a de minha avó, só que ela roncava mais grosso.” Depois de se
alimentar, continuaram a escalada, a estrada tornava-se cada vez mais estreita,
as curvas mais fechadas. Anoiteceu e a sensação de medo e desconforto aumentou.
Como nas duas noites anteriores, formaram círculos para dormir, os comandantes
dos grupos um pouco afastados. Agora a ordem era silêncio absoluto. Sabiam que
o grosso dos alemães estava muito próximo, e eles podiam tentar um golpe de mão
aproveitando a escuridão. “Golpe de mão” era a expressão da moda, e os enchia
de pavor. Os alemães eram mestres em “golpes de mão”, uma manobra rápida feita
por um grupo reduzido, cair sobre o alvo, metralhar, esfaquear e retirar,
deixando mortos e feridos. Dormiram sonhando com “golpes de mão”, envoltos por
uma cerração que encharcou as fardas, os calçados e as armas, e os deixou
enregelados. “Não sinto minha mão” murmurou o Alemão para Atílio, mas já era de
manhã e o sargento Nilson passava cutucando com o coturno e sussurrando “de pé,
de pé, mandriões” e em pouco estavam novamente naquele estrada agora
escorregadia e sem fim. “Onde estamos, capitão?” perguntou o tenente Mário, e o
capitão Ernani o olhou com profunda irritação: “Isso eu gostaria de saber, tenente.”
Prosseguiram em meio ao torpor da cerração gelada mais um dia inteiro, com
paradas cada vez mais frequentes. Numa curva da estrada Bandeira ouviu vozes. Da
cerração surgiu um vulto estranho. Era um burro carregado com cestas, tocado
por um homem e um menino. Ficaram paralisados, se olhando, Bandeira colocou o
indicador nos lábios e fez sinal para eles seguirem. O burro, o homem e a
criança passaram espremidos entre o exército que subia a montanha e o abismo. E
finalmente, no dia seguinte, com a cerração ainda mais densa e indevassável, o
esclarecedor Bandeira tropeçou numa cerca de arame farpado. Ficou sem mover um
dedo, rezando para que não fosse ligada a uma mina. Afastou-se e chamou o
sargento. Examinaram a cerca. “Chegamos” sussurrou o sargento Nilson “isto deve
ser a primeira linha de defesa deles.” O capitão Ernani arrastou-se até eles.
Tocou no arame como em algo nunca visto. “Aqui é o começo da tal Linha Gótica.”
De repente a névoa abre uma brecha e
podem ver mais adiante. Fortificações, maciços de concreto, um enorme canhão
105. “É aquele o filho da mãe” diz o tenente Mário, procurando espaço entre
eles. “São dois” diz o sargento, apontando outro mais adiante. “São três” diz o
tenente Mário, apontando o terceiro. “E agora?” o sargento olha para o capitão.
“Um grupo de combate avança, dois dão cobertura” diz Ernani. “Vamos nos
arrastar até lá e cair de surpresa sobre eles, duvido que pensem que estamos
tão perto.” “Sargento, você vem comigo” diz o tenente Mário “traga seu Grupo de
Combate.” E o tenente Mário Cabral de Vasconcelos, 23 anos, começou a se
arrastar em direção ao posto de artilharia alemã, sem dar tempo do sargento
Nilson dizer sim, senhor. Eram quinze homens se arrastando em silêncio. Suas
únicas experiências de guerra até o momento tinha sido a tomada de Camaiore e aquela
subida penosa pela estrada da montanha. Pedrinho, o gago Atílio, Alemão,
Quevedo, Bandeira, com os dedos duros de frio, apertando os fuzis, agarrando as
granadas, se arrastavam com o máximo de cuidado. O sargento Nilson colado no
tenente Mário. Mal respiravam. Escorregaram por baixo de uma cerca de arame
farpado. A farda do gago Atílio se prendeu e ele safou-se com um arranco
nervoso, que fez um ruído de coisa rasgada. A névoa se abriu por um momento e
eles viram os alemães a menos de 10 metros, com seus capotes cinzentos.
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