sábado, 4 de fevereiro de 2012

Quarto Capítulo

Na praia de Pajuçara




Dulce e Zoé, jovens bronzeadas na praia de Pajuçara, Maceió, no pino do sol da manhã. Imóvel na areia, sussurra Dulce para Zoé com voluptuosa preguiça, “Vamos jogar tênis hoje de tarde?” “Vou se você me emprestar uma raquete”. “E a tua?” “Tá sem corda”. “Com uma raquete sem cordas pode ser que o teu jogo melhore”. “Gracinha”. Ouviram vozes alarmadas e se apoiaram nos cotovelos. Banhistas e pescadores corriam agitados. Nos dias cheios de espanto que se seguiram aos ataques do capitão Harro Schacht os jornais publicavam manchetes arrebatadoras, apesar da censura. O país inteiro se transformou numa caixa ressonante de boatos. De Sul a Norte havia passeatas de multidões inflamadas de patriotismo, manifestações, abaixo-assinados e discursos clamando por vingança. Pescadores olhavam com temor para o mar, que agora apresentava um tipo de ameaça que nunca imaginaram enfrentar. Pairava no ar uma dúvida que separava os brasileiros: quem era o autor dos atentados? Tudo era sobressalto naqueles dias, e as duas moças olhavam a agitação com mau pressentimento. “Isso é coisa dos americanos”, disse Zoé, 18 anos, as pernas longas e morenas brilhantes de uma mistura de óleo de coco, “sou capaz de jurar que foram eles que torpedearam os navios”. “Quem diz isso é a Quinta-Coluna, e você devia saber mais do que ninguém, afinal, seu pai é general”, retrucou Dulce, 17, massageando as pernas com o óleo. “Pois é meu pai general quem diz que é coisa dos americanos, então é coisa dos americanos”. Havia algo de glorioso no calor, no céu azul e no mar brilhante onde tremulavam as brancas velas das jangadas. Banhistas em grupos olhavam para o mar, havia um ponto escuro além dos recifes: tubarão? Por essa época de suas vidas as duas meninas estavam começando com cautela a apalpar os grandes mistérios do futuro bem próximo: sexo, amor, casamento. E agora, no fim da adolescência, essa história de guerra. Que tédio. As duas ergueram os óculos de sol para a testa, olharam na direção para onde todos apontavam e viram, além dos recifes e da espuma branca das ondas, o ponto escuro. Zoé deu um grito: “tubarão!” Dulce se ergueu e ficou olhando, fascinada. “Submarino”, disse baixinho. Em torno do periscópio havia uma leve agitação da água esmeralda. O periscópio submergiu, formando uma espécie de redemoinho. As duas se olharam, pálidas e sem palavras. “Vamos para casa”. Juntaram toalhas e frascos e bolsas e saíram em disparada para o ponto de ônibus mais próximo. Não olharam mais para o mar, como temendo ver algo que não suportariam. Quando chegaram na casa de Dulce havia alvoroço, “afundaram um navio aqui perto”, anunciaram as tias com estupor, “o rádio disse que os destroços estão chegando na praia, tem feridos, muitos feridos!” A mãe, quatro tias, a avó que apareceu ninguém sabe como, corriam pela casa, falando ao mesmo tempo. A tia beata e uma negrinha recitavam ladainhas. Toca o telefone, todas se precipitam, Dulce chega primeiro. “Mãe, é do hospital, o doutor Máximo”! A mãe de Dulce atende, muito pálida, e vai concordando com a cabeça, “sim, senhor, doutor, sim senhor, agora mesmo”. Larga o telefone, olha dramaticamente para todos. “Era um navio de passageiros, o Itagiba, são muitos feridos, muitos! O doutor Máximo quer que eu vá para lá ajudar, eles não têm sequer uma enfermeira formada”. “Eu vou com a senhora”, diz Dulce. “Eu também”, emenda Zoé. “Não, vocês são muito crianças para isso”. “Crianças, mãe”, e Dulce se eriçou como uma gata indignada. “A gente fez no colégio o curso de Defesa Passiva”, dona Clô, disse Zoé. “Vocês vão ver muitas coisas horríveis no hospital”, disse dona Clô. “Mãe, estamos perdendo tempo”. “Muito bem, então vamos ver o que vocês sabem fazer: ao telefone! Precisamos arrecadar roupas, alimentos, camas e colchões. Falta tudo isso no hospital. Organizem comissões, uma comissão para cada item. Telefonem para todas as amigas de vocês, organizem um mutirão. Entrem em contato com a LBA, peçam remédios e ataduras, avisem que eu sou a única enfermeira diplomada por perto, as outras são Voluntárias Socorristas sem experiência nenhuma. Espero vocês lá”, e saiu em disparada. As duas garotas se olharam, perplexas: Dulce, de olhos azuis, Zoé, de olhos negros. Dulce apanhou o telefone: “lápis e papel”, comandou para Zoé que olhou suplicante para as tias de Dulce que correram cada uma para um lado e voltaram com lápis e papel enquanto Dulce com voz firme dizia: “sim, levem para o hospital, ah, sei lá, deem um jeito, é pra já, quanto mais colchões melhor, e lençóis, e fronhas”. Quando saíram para a rua, meia hora depois, no rumo do hospital que não ficava longe, duas quadras dali em frente ao mar, a manhã continuava azul e dourada. Os sinos das igrejas dobravam fúnebres pelos mortos.

As duas meninas conheceram o horror muito de perto, nessa manhã. Quando chegavam ao hospital também chegavam os primeiros feridos, transportados em caminhões do exército. Havia urgência e gravidade nos rostos, e elas ouviram os gemidos de dor, e mesmo gritos e rezas em voz alta. Dulce viu sua mãe de longe, debruçada sobre um corpo numa maca, tentando desabotoar a camisa dele. Ela a chamou com um gesto urgente, Dulce amou sua mãe nesse momento mais do que nunca, sua cor pálida e a firmeza do seu gesto, e a maneira doce como olhou para ela (o olhar dizia “confio em ti, pequena”) e disse, “ajuda a tirar a roupa deste aqui". A camisa estava em frangalhos ensanguentados que se grudavam à pele. O homem era escuro de uma maneira estranha, como se aquela não fosse a verdadeira cor de sua pele, mas produto das queimaduras ou talvez ele fosse mesmo negro, era difícil saber, o que ela sabia muito bem é que as contorções súbitas que seu corpo dava eram de dor, uma dor lancinante entrelaçada à surpresa e ao horror que ele vivera naquela manhã de céu azul e de sol quente. Quem era esse homem? Jovem? Velho? Um simples marinheiro? Um oficial? Ou um passageiro? Aí estava ele no limiar da morte, de olhos arregalados de dor e desespero. “Dona, eu ainda tenho na boca o gosto da fumaça do torpedo, vou levar esse gosto comigo”. Dulce sentiu o aperto da mão do desconhecido no seu pulso, e com um estremeção de horror soube que esse era o adeus do homem, ele se despedia do mundo com a mão escura apertando seu pulso, o último contato com a vida, busca de explicação para o desespero, para o horrível gosto da fumaça do torpedo na boca.


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