A geografia sagrada
“Boa noite, herr Blücher”, disse Marcos, parando o carro ao lado da calçada. Erhardt Blücher entrou rapidamente. “Boa noite, capitão, que prazer vê-lo justamente nesta noite.” Marcos engrenou a marcha, e o carro começou a avançar pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana. “Justamente? Que tem esta noite de tão importante?” “Além de nossos pequenos negócios se aproximando de um fim harmônico e previsível, muitas outras coisas estão acontecendo, capitão, a História mudando, o Grande Aniversário acontecendo, e um presente guerreiro está sendo gestado.” “Grande aniversário? De quem?” “Posso perdoá-lo por esse lapso, capitão, mas hoje, 20 de abril, é o aniversário do Chefe, todos devemos comemorar.” “Desculpe, herr Blücher, mas minha agenda não é tão completa assim.” “Depois que eu lhe mostrar os papéis que trago comigo, capitão, quem sabe poderemos erguer um brinde ao Führer, no Espaço Imperial do Copacabana.” “Tem os papéis aí?” “Claro, podemos estacionar num local discreto da avenida?” Marcos estacionou diante do mar, Blücher abriu a pasta e tirou vários papéis dobrados. “São planos originais, capitão, e devem ser estudados com muito sigilo. Como o senhor deve saber, dois anos atrás, precisamente no dia 20 de janeiro de 1941, o coronel Heydrich, assistente de Himmler, apresentou, no castelo de Wannsee, para 15 altos oficiais do partido, o projeto de uma solução final para a questão judaica.” “Sim, sim.” “Sei que o senhor sabe, embora isso seja altamente secreto; foi apresentado na reunião um elaborado esquema para a eliminação de 11 milhões de judeus, base para a criação da Sexta Raiz Racial.” “Sim, sim.” “Pesquisas recomendaram o uso do gás como o meio mais eficiente e barato, a indústria alemã se beneficiou com excelentes contratos com o governo, como espero o mesmo aconteça conosco; houve uma concorrência, e os vencedores foram Topf e Cia, de Erfurt, que apresentaram um crematório de alta capacidade, que poderia queimar 2.000 corpos a cada 12 horas, aqui está a planta; como o senhor pode ver, é de simples execução, mas aí vem o detalhe criativo: a Topf ganhou o contrato porque idealizou uma maneira de economizar combustível.” “É? Como foi isso?” “Gordura humana. Matéria prima não faltava. Não é genial?” Marcos passou a mão lentamente na testa. Havia uma palmeira na frente deles, e a brisa do mar agitava suas palmas. “A Armamentos Alemães Inc. ganhou o contrato para a fabricação das câmaras de gás, e o gás, aqui está o nome dele, Zyclon-B, foi fornecido pela German Vermin-Combating Corporation. Nossa célula em Santa Cruz tem a fórmula; e se me permite, fiz mais um modesto estudo que quero passar para suas mãos, um mapa das grandes linhas geométricas que unirão as unidades de produção através do país, de maneira a harmonizá-las com as sutis correntes de energia que passam acima e abaixo da superfície, um estudo de geomancia, que delimita a geografia sagrada de nossos empreendimentos.” Blücher estendeu com as duas mãos gordinhas a folha de papel dobrado, Marcos a apanhou e guardou-a no bolso. Pensou: às 11 preciso estar no Cassino da Urca, assistir ao show do Dick Farney, a Dulce adora o Dick Farney. O trânsito fluía ronronando suavemente nas costas deles. Marcos observou uma gota de suor se formando na testa de Blücher. “O senhor conhece o Dick Farney?” O rosto de Blücher se mostrou preocupado. “Não, quem é ele?” “Um pianista.” Percebeu a dúvida no olhar do gordo. “Não tem importância; que presente guerreiro é
esse que mencionou, herr Blücher?” “O senhor soube dos acontecimentos de Varsóvia, o levante no gueto judeu comandado pelo tal de Mordechai? Isso já se arrasta há semanas.” “Vi um telegrama hoje, lá no escritório”. “Pois é, o presente para o Führer será o total esmagamento do levante, o brigadeiro Stroop anunciou que comandará pessoalmente a invasão do gueto (e Erhardt Blücher consultou o relógio) para esta noite. Já deve estar acontecendo, lá é madrugada. Vão bombardear e incendiar tudo, não vai sobrar pedra sobre pedra! Esse será o presente.” “O senhor não acha um desperdício de munição e energia, considerando que a Alemanha começa a enfrentar dificuldades cada vez maiores na guerra? Afinal, em fevereiro os russos romperam o cerco de Leningrado, e, ao que parece...” “Meu rapaz, permita que o chame assim devido a nossa diferença de idades, é preciso entender que a guerra é apenas um meio, não um fim em si mesmo; acabar com os judeus é mais importante que a própria guerra, é o começo de uma Nova Era Racial; mesmo que a Alemanha perca esta guerra, a prioridade é a higienização do planeta, base para nosso destino de forjar uma nova raça, uma forma superior de existência; acima das religiões e da moral burguesa, o novo homem impulsionará as fronteiras de uma civilização baseada numa tecnologia infinitamente mais sofisticada do que as técnicas conhecidas no presente.” Marcos tocou no bolso do paletó de linho, sentiu o contato do papel dobrado: “Tecnologia como a destes fornos crematórios?” Blücher sorriu, deu um tapinha na coxa de Marcos: “Caro capitão, nosso projeto vai transcender a condição humana, vamos ganhar um poder ilimitado sobre o universo e vencer a morte, vamos nos tornar deuses”. “É uma meta ambiciosa, herr Blücher.” “Mais que ambiciosa, é científica; neste momento os tanques estão entrando no gueto; se eu fechar os olhos, posso vê-los; meu rapaz, em 1923, num discurso proferido em Colônia ao qual eu tive a honra de assistir, nosso então futuro Führer previu com lucidez sua meta, nossa meta, dizendo em alto e bom som que a libertação exige mais do que economia política; mais do que suor; para nossa libertação precisamos de orgulho, vontade, desafio, ódio, ódio e mais ódio!” Marcos observou a gota de suor deslizando na testa ampla e rosada de Blücher e perguntou, com tal gentileza na voz que o surpreendeu mais do que o ato que sabia iria em segundos cometer: “Como é mesmo o nome desse judeu lá do gueto?” “Mordechai”. “Herr Blücher, em nome de Mordechai, feliz aniversário do Chefe.” E acertou o tiro de 9mm bem no centro da testa, onde a gota de suor descia.
Próximo capítulo: O comandante em chefe
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