Dulce e Zoé entram na FEB
Os instrutores lá embaixo pareciam miniaturas. Cinco metros, meu Deus do Céu, se escorrego e caio quebro todos os ossos. Exagero? Não. Cinco metros de altura não é uma distância confortável para uma queda. Trêmula, Zoé se equilibrava sobre o pórtico de concreto, estreito, com malditos e exatos cinco metros de altura. Os instrutores lá embaixo pareciam, sim, miniaturas. Na frente de Zoé, Dulce avançava impávida, como se toda sua vida tivesse atravessado pórticos de concreto estreitos e com cinco metros de altura. De todos os exercícios com que as torturavam, fora levantar de madrugada, lutar com bastão, pular obstáculos, mais a Falsa Baiana, ridículo teste de equilíbrio sobre uma corda com outra sobre a cabeça para segurar, e as corridas intermináveis ao redor do campo de treinamento da Fortaleza de São João, na Urca, de todos os exercícios o que dava pesadelos noturnos para Zoé era a travessia do pórtico. Era a primeira vez que o Exército tinha mulheres em seus quadros, e para estabelecer uma convivência mais harmoniosa foram necessários alguns ossos femininos partidos, constantes luxações e cansaço permanente. Para entrar no curso de enfermeiras, as duas tiveram que travar um duro combate com suas famílias. Tanto o empertigado general, pai de Zoé, quanto o polido advogado, pai de Dulce, deixaram de falar com as filhas, como crianças amuadas. O preço de suas vontades era caro, e as duas pagavam sem se queixar: moravam em Laranjeiras, em casa da tia de Zoé, e estagiavam das 8 até meio-dia no Hospital Central do Exército, em Benfica. Depois, saíam em disparada para pegar o bonde para as aulas teóricas no Ministério do Exército até as 3 da tarde, quando corriam mais uma vez para chegar no horário (16 em ponto, senhoras!) para as aulas de educação física na Fortaleza de São João. Mastigavam um sanduíche durante os deslocamentos, e passavam o tempo todo com fome. Zoé ficava boquiaberta quando, à noite, Dulce ainda tinha fôlego para ir ao Centro, assistir à reprise de ...E o Vento Levou no Cine Metro. O filme tem quatro horas de duração, berrava Zoé, mas tem Clark Gable, retrucava Dulce, quatro horas de Clark Gable. As duas garotas ainda estudavam inglês duas vezes por semana, à noite, com uma professora particular, e nos fins de semana circulavam com os primos e amigos pelos cassinos e bares da cidade, repletos de shows e espetáculos internacionais. O Rio de Janeiro se tornava uma cidade internacional. Milionários europeus fugindo do teatro da guerra compravam casas e apartamentos nos bairros nobres, homens de negócios desembarcavam no Galeão de olho na decisão de Getúlio sobre compra de armamentos, espiões de Hitler e de Mussolini arregimentavam aliados, a cidade fervia de intrigas e boatos, mais feliz do que nunca. Quem não estava de nenhuma maneira feliz eram as famílias das duas meninas. A todos horrorizava o fato de elas andarem o dia todo em convívio com soldados. O general pai de Zoé chegou a interpelar asperamente seu sobrinho, o capitão Marcos, quando soube que ele tinha intermediado algumas gestões para que elas ingressassem no curso de enfermeiras. Exigiu relatórios pormenorizados sobre as atividades da filha, deixando o capitão com um preocupante sentimento de culpa. Era legítimo o sentimento, porque o capitão Marcos andava sentindo uma atração cada dia mais irresistível pela delicada Dulce, a dos olhos azuis, de pele alva, agora com cor de mel pela constante exposição ao sol. Dulce achava o capitão Marcos romanticamente misterioso, além de que tinha um bigode que o deixava muito parecido ao Clark Gable. Marcos era bom estrategista e achou correto preservar sua retaguarda. Para isso convidou o herói da temporada, o tenente Torres, para as excursões noturnas pela noite do Rio com as duas garotas. O tenente Torres, todos o chamavam de Betinho, também considerava a jovem Zoé, miúda e elétrica, uma companhia adorável, e todos eles começaram a sair juntos nos fins de semana. Foi numa noite dessas, quando assistiam a um show de Dircinha Batista, que se aproximou da mesa deles a eletrizante Adelaide, “a jornalista mais fofoqueira do Rio”, sussurrou Betinho, tão cheia de sensualidade e calor que assustou as duas meninas. “Oi, gente, que surpresa, dois másculos oficiais com duas ingênuas beldades, soltos na noite pecaminosa.”. Deu uma gargalhada e disse: “Desculpem, meninas, me perdoem, eu sou assim mesmo, brinco com todo mundo, mesmo com quem não conheço, muito prazer Adelaide Scoraro”. As duas se deslumbraram, “Adelaide, a jornalista, a da coluna social?”. “Ela mesmo; tenente Torres, bravo piloto da pátria, hoje estou feliz.” “É mesmo, por quê? Que maldade fizeste?” “Fiz uma entrevista maravilhosa com o Adhemar Gonzaga, o dono da Cinédia, e ainda apresentei para ele a ideia de um musical, filmado aqui mesmo no Cassino da Urca, com o Colé e a Virgínia Lane, mais a Dircinha, com quem eu tomei o café da manhã às três da tarde.” E deu outra gargalhada, puxou Marcos para perto de si e murmurou com a piteira dourada entre dentes: “Tens visto nosso comum amigo, Herr Blücher?”. “Nunca mais o vi, desde aquele show a fantasia naquela mansão misteriosa.” Adelaide deu uma risadinha contida: “Posso marcar outro encontro”. E, voltando-se para as duas garotas: “Quer dizer então que vocês estão se preparando para ir para a guerra, que maravilha, escutaram a última, o famoso Dia D foi marcado para depois de amanhã, mas acho que é boato, me confirma isso, capitão Marcos?”. “Não posso confirmar, querida, o Churchill não me consultou... ainda.” Outra gargalhada espantosa, e Adelaide encarou Dulce e Zoé: “Sorte para vocês, meninas, quando forem para a guerra, seja lá onde for, aliás, vocês já sabem para onde vão? Onde é mesmo que fica essa guerra, Marcos? África, Ásia ou quem sabe Portofino? Querem saber mesmo quando vocês vão embarcar, meus amores, pois eu digo, tomem nota e depois me cobrem: será no Dia de São Nunca, ou quem sabe quando galinha criar dente, ou, melhor ainda”, e soprou com displicência a fumaça da piteira dourada no rosto delas, “quando cobra fumar”.
Próximo capítulo: Pedrinho se alista na Infantaria.
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