sábado, 10 de março de 2012

Nono Capítulo


Pedrinho se alista na Infantaria

Pedro Diax voltou para Imbituba e para sua vidinha de antes de embarcado, ou seja, passava os dias vagando na praia, pescando de vez em quando e ajudando os pescadores a recolher suas redes e barcos, polindo lampiões e consertando tarrafas, redes e covos. Jogava futebol no Imbituba Football Club como ponta-direita, fazendo tabelas com Atílio, meia-direita, baixo, forte, gago e seu melhor amigo. Nos fins de semana, missa com a família, depois olhava o jogo de dominó dos mais velhos na pracinha, espiava de longe o baile nos fundos da igreja. O luto o impedia de dançar e de ir a festas, e ele sabia que seu isolamento não era uma mera formalidade social, um costume em honra aos mortos. Havia sofrido um impacto brutal em sua compreensão da vida e lutava amargamente para assimilar essa experiência. A todo momento se flagrava a lembrar de Rita Maria cantando com voz veludosa Besame Mucho, a brincar durante alguns segundos com a fantasia de tirar aquele vestido cor de rosa de cima do corpo pequeno e quente da cantora, e que nem tivera tempo de sentir remorso sobre o fato de que ela era a garota do seu irmão Dico, quando foi arrebatado pela vaga queimante e inesperada. Nada no mundo podia sugerir que aquilo pudesse acontecer. Havia, claro, conversas sobre a guerra, e murmú- rios dos marinheiros no bar sobre submarinos, mas tudo isso era tão distante, tão em outras terras, outros mundos. E de repente estava na água revolta, sem fôlego, vendo tudo arder e gritar e se contorcer. Nesses dias sombrios passava longas horas sentado num cômoro numa enseada de Imbituba, olhando a dança das baleias ao longe. Foi quando pensou, pela primeira vez com horror, que seus companheiros de toda a vida que se aproximavam dos grandes animais para arpoá-las, tinham alguma semelhança com aquele submarino alemão que os afundou, chegando sorrateiro e sem aviso, matando sem motivo no momento em que se entregavam ao prazer e ao trabalho. Prometeu a si mesmo duas coisas: nunca caçaria baleias e iria se alistar para combater os nazistas de Hitler. Não queria pensar nisso como um ato de vingança por seu irmão. Era muito mais. Era uma atitude. Algo que fazia não apenas pela memória de seu irmão Dico, já que tantas vezes o padre Heitor o avisara contra o enorme pecado que era a vingança (“Deixa a vingança nas mãos de Deus, meu filho”), mas porque alguma coisa muito grave e muito grande estava em andamento contra seu país e contra tudo que ele amava, e essa coisa era brutal, e ele sabia muito bem: maligna. Ele sabia. Aqueles sujeitos engomadinhos do submarino sorriam para ele, ofereciam café e chocolate, chegaram a colocar um cobertor nas suas costas, mas tinham por sua dor uma indiferença que o assustava mais do que qualquer coisa. Iria se alistar na tal força expedicionária que estavam montando. Esperou muito tempo a prometida indenização pelo afundamento do Baependy, percebeu que era conversa fiada e papelada demais e juntou os trocados que tinha guardado no colchão, contou junto com Atílio o dinheiro de que dispunham, dava para comprar duas passagens para o Rio de Janeiro. Abraçou pai e mãe chorando e chegaram ao Rio dois dias depois, debaixo dum temporal. Trataram de arrumar quarto numa pensão perto da rodoviária e na manhã seguinte se informaram sobre o ônibus para Realengo/Vila Militar. Pelo jeito não havia muita gente querendo ir para a guerra, pois depois de explicar o que eles pretendiam a uma sentinela no portão do quartel, foram mandados para falar com o sargento mau humorado, que começou imediatamente a debochar de sua origem: catarinas! " Com vocês não vamos ganhar guerra nenhuma, mas vão passando, ô catarinas, vão passando, precisamos mesmo de bucha de canhão". Ambos tinham agora 18 anos, foram aprovados nos exames médicos e logo estavam experimentando os uniformes, os coturnos, os cinturões e se sentindo importantes. Pedro estava acostumado com a disciplina rígida dos navios mercantes, mas estranhou a maneira brutal como os praças eram tratados por sargentos e oficiais. A experiênciade bordo era um passeio de férias diante do dia a dia massacrante do quartel. Alvorada, ordem unida, exercícios, aprendizado das normas e dos manuais, exercícios de tiro e montagem de armas de fogo, um trabalho exaustivo com sargentos e oficiais em cima deles, exigindo e escarnecendo. Ficaram amigos de João Wogler, um alemão de Vacaria, no Rio Grande, baixo e forte como o Atílio, que não desdenhava de suas origens de catarinenses e nem de ninguém, mas era afoito e duro para assimilar uma ordem. Era o favorito dos sargentos para receber reprimendas e castigos de exemplo, até o dia em que encontrou o tenente De Líbero. Este tenente era o janota mais vaidoso e autoritário que jamais vestiu a farda de oficial do Exército, e, quando percebeu em Joãozinho Wogler o olhar de desafio, exultou intimamente.“Vais limpar o chão da cozinha com a língua para aprender a respeitar teus superiores, alemão batata.”João cuspiu no chão, rente à botina brilhante do tenente. O tenente empalideceu. “Sargento, sargento!” E, enquanto o alarmado sargento Onda se aproximava para saber a causa dos gritos do tenente: “Quero este alemão amarrado no poste lá na estrebaria, eu mesmo vou dar vinte chicotadas no lombo dele”. Ao desfechar a quarta chicotada, a que abriu profundo corte nas costas de João Wogler, os poucos soldados que assistiam começaram a protestar. Chegaram mais soldados, aumentaram os protestos e logo um tumulto começou a se espalhar na estrebaria. Talvez só então o tenente De Líbero tenha percebido a dimensão da sua fúria irracional: estava cercado por 40 soldados enfurecidos, que gritavam palavrões e o ameaçavam. O sargento Onda chamou mais três sargentos e alguns cabos e soldados veteranos, que a custo mantiveram os soldados afastados, enquanto o tenente se paralisava com o cinto na mão, pálido, já arrependido do seu ato.“Isso vai dar o que falar”, disse o sargento Onda entre dentes para o cabo, “vai sobrar para todos nós”.

Próximo capítulo: A geografia sagrada

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