terça-feira, 27 de março de 2012

Décimo Primeiro Capítulo

O comandante em chefe


O general Mascarenhas de Moraes recebeu o envelope das mãos do mensageiro, em seu gabinete de comandante da Segunda Região Militar. Leu “Ministério da Guerra” embaixo do escudo. Examinou-o, preparando a antiga couraça que o protegia de surpresas. O telegrama era seco e direto como era Dutra. 25/H.1- Urgente - 9/VIII- 1943- Cifrado- Gen. Mascarenhas – São Paulo- Consulto prezado camarada se aceita comando de uma das Divisões que constituirão corpo expedicionário. Impõe-se resposta urgente porque, caso afirmativo, fará estágio Estados Unidos. – Gen. Eurico Dutra – Ministro da Guerra. Então era isso. Agora que todos os bonitões tinham recusado os convites, agora que os fanfarrões tinham alegado as desculpas mais risíveis, se voltavam para ele, o patinho feio, o velho, o obscuro general que não falava alto nem se desmanchava em mesuras nos salões de Getúlio. Pensou em Liliana. Se aceitasse, ficaria afastado de Liliana durante muito tempo. João Batista Mascarenhas de Moraes tinha pouco mais de metro e meio de altura e faria 61 anos de idade no próximo ano, mas se havia alguma coisa no mundo de que se orgulhava, profunda e completamente, era de ser um soldado. Talvez não fosse grande coisa, mas ser um soldado dera sentido a sua existência e ele tinha bem amadurecida a exata compreensão disso. Redigiu a resposta de próprio punho, procurando ignorar o júbilo que o acossava como a uma fraqueza nefasta. Passou a nota para seu secretário: Gen. Dutra – Rio – Urgentíssimo – De São Paulo – 0.40.10.VIII.1943, 17,15 hs. 345 – Muito honrado e com satisfação respondo afirmativamente consulta V. Excia. acaba fazer-me em rádio 25/H. Gen. Mascarenhas de Moraes – Cmt 2º RM. No arrastado e nervoso segundo semestre de 1943 os preparativos para organizar a FEB encontravam tantos obstáculos na máquina burocrática da ditadura de Vargas que pareciam irreais. Entretanto, a realidade era mais veloz e desencontrada que os boatos e as fofocas que inundavam o país. Os acontecimentos na Europa se precipitavam e anunciavam dias de mais fúria, perplexidade e horror. A guerra começava a mudar seu curso. A poderosa máquina de destruição alemã dava os primeiros sinais de vulnerabilidade. Os Aliados já planejavam a preparação das medidas para tomar a iniciativa e finalmente atacar o poderoso exército que se julgava inatacável. Para isso, qualquer ajuda seria valiosa, mesmo de um país pobre, sem presença política internacional e seguramente sem a infra estrutura necessária para participar de um conflito dessa natureza. No avião para o Rio, Mascarenhas meditava nessas coisas e percebia com certo humor semelhanças de sua pessoa com o país: obscuro, pobre, lutando para ser ouvido. Sua vida não fora nada fácil. Aos 14 anos saiu de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, para Porto Alegre, sozinho, praticamente sem um centavo no bolso. Trabalhou de dia como caixa de um armazém e estudou à noite. Conseguiu vaga na Escola Preparatória e Tática de Rio Pardo, no interior do Rio Grande, fronteira com a Argentina, onde tinha garantidas três refeições diárias e a rude camaradagem de seus colegas. Não era o aluno mais brilhante, nem se destacava nos esportes, mas dura e silenciosamente ia vencendo as etapas, até que passou nos exames para a Escola Militar do Brasil, conhecida como Escola da Praia Vermelha, no Rio. Tornou-se oficial do exército brasileiro. Tinha orgulho de si mesmo e dos valores que aprendera na vida. Na revolução de 30 foi leal ao presidente deposto Washington Luiz e por isso foi preso pelos rebeldes liderados por Getúlio. Agora ia ter uma conversa em particular com o próprio, o estranho ditador, amado e odiado, cordial e perverso. Dutra o esperava na antessala do gabinete. “O presidente quer falar a sós contigo, Mascarenhas, mas vamos entrar juntos, depois eu saio”. Achou curiosa aquela cerimônia toda, mas não teve muito tempo para tentar se acostumar com o clima de poder e pompa que imperava no palácio do Catete. Em breve estava a sós com Getúlio, seu sorriso, seus pequenos olhos brilhantes, seu terno bem cortado. “Essa expedição de guerra não é um capricho, general. Será uma missão de alto nível, de extrema complexidade, e não quero me meter a sabichão em assuntos militares, mas acho que será a empreitada mais difícil em toda a história de nossas Forças Armadas”. “Assim me parece, presidente”. “O que vou lhe dizer por enquanto é estritamente confidencial, mas eu confio no senhor, totalmente, sem restrições, e olhe que, 10 anos atrás, em 1932, o senhor foi preso pela segunda vez, por apoiar uma revolta militar e civil contra mim.” “Fiquei com a legalidade, presidente, como me cabia.” “O senhor conspirou contra mim.” “Não tenho esse hábito, presidente. Não sou conspirador. Existem sob suas ordens homens melhores do que eu nessa prática.” “É verdade, sei disso, por isso o que desejo do senhor não são suas qualidades de conspirador, desejo para esta missão essa sua firmeza de gaúcho e de homem de pequena estatura.” A máscara habitualmente impassível de Mascarenhas se sobressaltou. Getúlio percebeu e soltou sua famosa gargalhada, súbita e estrondosa, que assustava e maravilhava as pessoas. “Me perdoe a intimidade, general, mas nós, baixinhos, nos entendemos”. Estendeu-lhe um charuto. “Obrigado, presidente, não fumo.” “Tinha esquecido. Então vou pedir que preparem um mate pra nós. Acho que temos muito para prosear, porque, general, vou lhe dizer: quero que o senhor seja o comandante em chefe da expedição.” Examinou o impassível rosto enrugado de Mascarenhas, já recomposto da súbita intimidade que manifestara. “A honra é minha, presidente.” “Vou lhe dizer o que penso antes de chamar o Dutra para nossa conversa. Eu lhe garanto uma coisa, João Batista: essa é a pior e mais difícil incumbência que eu já dei para alguém”. “Sim, senhor.” “Vai ser uma missão longe da pátria, sob um comando estrangeiro e, possivelmente e, mais ainda, com toda certeza, arrogante e autoritário, e o senhor vai receber as tarefas mais duras e até mesmo as irrealizáveis e vai sentir a inveja e o ciúme e a traição rondando por todos os lados. Lá, seja onde for esse lá, vai conhecer uma coisa que eu conheço muito bem, a solidão. O senhor vai se sentir só, meu general, como nenhuma criatura já se sentiu na face da terra”.

Próximo capítulo: Três Senhores da Guerra

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