sábado, 14 de abril de 2012

Embarque para o desconhecido

DÉCIMO QUARTO CAPÍTULO


O major Brayner olhou demoradamente a rua silenciosa lá embaixo, pela janela do seu quarto. Só estavam ele e a mulher na casa, os empregados foram dispensados nesse dia. Formavam um casal sem filhos, e talvez por isso conviviam numa espécie de redoma de melancolia, ou talvez fosseapenas o caráter introspectivo do major. O carro chegou. Consultou o relógio, 1h30min. Apanhou o quepe, colocou-o na cabeça. Tivera que ser muito carinhoso para que o choro dela fosse silencioso e digno. Trocaram um beijo rápido, como se fosse uma despedida de poucas horas. “Vamos precisar de muita coragem, meu amor, nós dois.” Saiu e fechou a porta. O ordenança o esperava no carro, trocaram continência mas não falaram. O carro avançou pelas ruas desertas em direção ao porto. Tinha sido uma semana intensa. As notícias chegavam a toda hora, os boatos circulavam esencontrados, alguns afirmavam que o Dia D tinha sido acionado, que a invasão da Europa pelos Aliados tinha começado, que Hitler tinha sido morto num atentado. Era preciso muito sangue frio, era preciso examinar com calma cada uma dessas histórias, porque agora o que se aproximava realmente de sua vida era a partida para a guerra, e ele, Brayner, como chefe do Estado Maior da FEB, fora o oficial designado para a missão de coordenar o embarque do 1º Escalão. Quando o carro se aproximou do portão do cais, tornou a olhar o relógio. 2 horas emponto. Estava na hora de colocar os soldados no trem. E era o que acontecia, longe dali, na Vila Militar. “Acorda, vagabundo.” A mão pesada do sargento Onda quase derruba Pedro Diax do seu beliche. Pedrinho esfrega os olhos no susto do despertar e então se dá conta: “É hoje.” Sentou na cama e sentiu todo o corpo estremecer. “Puxa vida.” Não precisavam dizer nada, ele sabia. “É hoje. Não adianta choro nem reza.” 29 de junho, madrugada, escuridão. Sob o comando dogeneral Zenóbio da Costa, espremidos nos vagões da Central do Brasil, as aberturas completamente lacradas, sete composições sucessivas seguem da Estação de Deodoro, na Vila Militar, para o cais do porto. Na quarta delas, apertados no segundo banco da direita, Pedro, Atílio e João Wogler bocejam. “Vamos embarcar”, disse o alemão, “estamos indo para a guerra”. O rancho tinha sido rápido, mal enfiaram na boca uma bolacha e engoliram o café preto. Estamos indo para a guerra, pensou Atílio, e percebeu que estava com dores no corpo, com sono, com fome, vontade de chorar. Vou para a guerra, pensou, sou gago, podia ser dispensado, podia ficar em casa comendo rapadura e indo aos bailes da igreja no fim de semana. Estou indo para a guerra, pensou Pedrinho. Posso ficar aleijado, posso ficar louco, posso morrer. O trem sacudia levando milhares de homens de 18 a 25 anos de Pernambuco, da Bahia, do Rio, do Amazonas, do Piauí e de todos os recantos do Brasil que pensavam “estou indo para a guerra, posso ficar aleijado ou louco ou morrer. A metade dos que estão dentro deste trem vão morrer. Talvez mais, talvez todos”. O alemão Wogler ressonava de boca aberta. “Vamos para a morte. Este trem está nos levando para a morte.” Não muito longe, no carro que as levava para o aeroporto, Dulce, Zoé e Virgínia apertadas no banco de trás, entrelaçavam seus dedos, olhavam a cidade do Rio de Janeiro mais bela do que nunca ir passando deserta e silenciosa, como se também estivesse adormecida. “Todos estão dormindo.” “O que?” “Todos estão dormindo.” “É claro, sua boba. Émadrugada.” “Nossa partida é secreta?” “Ai, Zoé, tu me dá nos nervos com essas perguntas. E secreta é uma palavra muito idiota.” “Pela conversa do major Ernestino é mais ou menos secreta.” “Ou é secreta ou não é secreta.” “Ontem eu perguntei para ele para onde a gente vai e sabe o que ele me disse?” “É melhor não me dizer, começo a conhecer o major Ernestino e não estou gostando.” “Vamos para a base de Natal, depois para Dacar, depois só Deus sabe.” “O Marcos disse pra a gente não confiar no major Ernestino.” “Eu não confio é no bonitão do capitão Marcos.” E as três deram risadas, o carro avançou um sinal vermelho na madrugada enquanto o capitão Marcos olhava a roleta girar. A mão de unhas pintadas da estupenda Adelaide acariciava as fichas sobre a mesa, ao fundo Dick Farney acariciava um piano. “Soubeste do triste fim do nosso amigo gordinho?” “Nosso, vírgula. Teu amigo gordinho”. “Eu marquei outro encontro teu com ele.” “É, mas ele não apareceu.” “Apareceu. Morto na praia.” “O Rio é uma cidade perigosa.” A roleta parou de girar. “Bem, querida, perdi meu último centavo. Hora de partir.” “É cedo, meu capitão. Não é tua hora habitual.” “É que hoje vou pegar um avião”, e o capitão Marcos deu seu sorriso mais sedutor. Adelaide estudou-o inquieta, desconfiada. “Um avião? Que beleza! E para onde, pode-se saber?” “Ah, minha querida, para um lugar maravilhoso, mas vou te deixar com esse gostinho na memória, pra tu ficar saboreando enquanto eu vou saindo. Tchauzinho!” E o capitão Marcos se afastou entre os homens de terno de linho branco e as mulheres de vestidos com profundos decotes, a melodia do jazz de Dick em seus ouvidos, no momento exato em que o trem do 1º Escalão chegava no porto. Os 5 mil soldados ficaram fechados ali dentro quase duas horas, com as cortinas cerradas, até que um oficial abriu a porta e comandou: “Em fila, emordem e em silêncio!” Era um navio gigantesco, parado ali com sua enorme porta aberta, onde a fila de homens ia sumindo. Pedrinho, Atílio e João Wogler caminharam pela rampa carregando seus sacos, aproximando-se da boca escancarada, leram num costado o nome do monstro:”US Gen. Mann”. Ficariam amontoados na barriga dele durante 15 dias, à mercê dos submarinos e dos aviões da Alemanha, pensando em mutilação, loucura e morte, viajando através do mar para um lugar do mundo que nenhum deles sabia qual era.

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