domingo, 22 de abril de 2012

Alguns homens a mais

15.

No segundo dia da viagem, Atílio descobriu a função das duplas de PM americanos musculosos que ficavam de prontidão na porta do dormitório. “S-s-se o na-navio f-for t-t-totorpedeado, eles nos fecham aqui dentro.” Atílio era o melhor ouvido do batalhão. Ficava sentado quieto num canto, olho parado, e nem o mais leve sussurro a 10 metros de distância passava despercebido. Porque assim como sua fala era truncada, sua inteligência era rápida e musculosa, capaz de acionar as mais diversas informações e organizá-las com precisão de matemático. “N-no-nosso alojamento fica cinco metros abaixo da li-li-linha d’água.” “Os torpedos batem direto onde nós estamos”, intrometeu-se uma voz na conversa, “abrem um rombo do tamanho de uma porteira e o compartimento se enche de água. Esta banheira vai ao fundo em cinco minutos.” Atílio, Pedrinho e o Alemão olharam um tanto surpresos para o praça que se intrometera na conversa deles, com forte sotaque gaúcho. “É por isso”, continuou o praça, “que botaram aqueles dois postes de vigia, para fechar a porta imediatamente.” “Mas, por quê?”, perguntou Pedrinho alarmado. “Porque, índio velho, se eles fecham as portas, a água não passa para o resto do navio, e eles ganham tempo pra dar o fora.” “E nós?” “Nós? Nós morremos afogados.” Pedrinho puxou a coberta para o queixo. Escutou o navio. Agora estava silencioso, flutuando no meio do oceano. Lembrava da primeira noite. Depois que Getúlio foi embora cercado por uma corte de homens de terno e de farda que distribuía sorrisos e afagos, depois que todos estavam instalados em seus catres, depois que as luzes tinham se apagado e uma sombra melancólica descia sobre os 5 mil homens inquietos e cansados, a voz do capitão, em inglês, invadiu o navio através dos altofalantes, seguida por uma voz em português, rápida, traduzindo. “Soldados brasileiros! Sois a força sul-americana que primeiro deixou seu continente para combater em ultramar, com destino ao teatro de guerra europeu, constituindo um novo exército de homens livres, que se vêm juntar a tantos outros na luta pela liberdade dos povos oprimidos...” Atílio ouviu perfeitamente o praça de sotaque gaúcho dar uma risadinha: “Homens livres? Esse gringo tá brincando com a gente”. Atílio se mexeu inquieto: “P-por que? Vovo- você não é um homem livre?”. O praça sorriu no escuro. Tinha oponente. “Boa pergunta, gago.” “N-nnão me chama de gago que eu não gosto.” “Tá bueno, desculpe, não te chamo mais de gago. Como é teu nome?” “A-a-atílio.” “Atílio, certo. O meu é Quevedo. Não existem homens livres.” “O quê?” “Não existem homens livres.” “... Quem poderá avaliar da suprema importância que podereis representar no campo de batalha?”, continuava o comandante. E sua voz rouca encerrou a mensagem, flutuando nas sombras: “...não será a primeira vez na História que a adição de alguns homens a mais, num determinado setor da luta, fizesse pender definitivamente para ele o fiel da balança e os louros da vitória”. “P-p por que você dd-diz isso?” “Gato escaldado tem medo de água fria. Tu vem de onde, che?” “Imbituba.” “Nunca ouvi falar. Tu sabe de onde eu venho?” “N-n-não sou adivinho.” “De Uruguaiana. Mas não é pra me exibir.” Alemão Wolper, no catre em cima, deu um suspiro acintoso e murmurou em tom suficiente para ouvirem ao redor. “Agora sim, vamos ganhar a guerra.” Quevedo deu uma risadinha: “De pleno acordo, companheiro”. Finalmente a bruma foi levantando, e Nápoles começou a aparecer. O US General Mann estava cercado de destroços retorcidos e queimados de navios, dezenas e dezenas de gigantescas embarcações transformadas em monstros disformes, meio submersos na água oleosa, fruto dos ataques da força aérea aliada na batalha pela posse do porto. Os pracinhas foram descendo a rampa, sacos às costas, olhando com perplexidade e medo para aquelas ruínas. Algo espantoso, algo enorme e terrível tinha acontecido ali. No porto, pequena multidão silenciosa e em farrapos os examinava com desconfiança descendo a rampa. Aqueles soldados não carregavam armamento, a cor de suas fardas era verde, na mesma tonalidade usada pelo exército alemão, e não tardou para que fossem confundidos com prisioneiros alemães. A hostilidade começou com gritos de longe, tedeschi!, em seguida alguns mais valentes se aproximaram e gritavam rente a eles. Eram em sua maioria sujos, barba por fazer, olhos no fundo e com expressões de nojo, rancor e fome, que assustou e espantou a fila de homens morenos, saco às costas, se equilibrando no estreito caminho de tábuas sobre a lama. Um deles cuspiu num pracinha. Depois outro. E outro. Uma pedrada voou de longe, batendo numa cabeça, que começou a sangrar. O sangue despertou a ira da pequena multidão que começou a despejar pedras com fúria cada vez maior sobre os pracinhas estupefatos. A intervenção dos PM americanos foi rápida e brutal, avançando contra os esfarrapados e os afastando com golpes de coronha. Um oficial americano, falando italiano perfeitamente, gritava bem alto que os recém-chegados eram “aliados, aliados do Brasil, que vieram lutar pela Itália contra Hitler!”. Quando a compreensão se fez, os apupos mudaram em aplausos, em seguida se ouviam gritos de “bravo, bravissimo brasiliani!”. Quando, horas depois, sentado na calçada junto com os outros soldados, em longa fila, costas apoiadas na parede destruída do armazém, Pedrinho ainda relembrava  o episódio e pensava como enquadrá-lo em seu entendimento, viu, na sua frente, a poucos metros, várias mulheres com crianças de colo, olhando para eles. Olhavam para eles buscando captar suas atenções até sentirem que eram vistas, e então começaram a mastigar. Nada tinham para colocar na boca, porém mastigavam e mastigavam, caladas, olhando fixo para os soldados. Aquilo foi  surpreendente, e eles a princípio acharam graça. Mas as mulheres os olhavam nos olhos e moviam as bocas, salivando, num ritual silencioso. Pedrinho se levantou e se afastou para trás do armazém, nauseado. Uma mulher o seguiu, colocou-se na frente dele olhando-o nos olhos, um olhar duro e sem tradução, a boca se movendo. Pedrinho afastou-se, a mulher o seguiu. Ele dava meia-volta, ela persistia, ela escorregou, quase caiu, equilibrando a criança em seus braços, Pedrinho afastou-se para o meio da lama e a mulher o seguiu, escorregando, buscando seu olhar, mastigando, mastigando, mastigando sem parar.



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