terça-feira, 10 de abril de 2012

O Dia D está próximo


Décimo Terceiro Capítulo

No segundo domingo de maio de 1944, os praças Pedrinho, Atílio e João Wogler, que agora todos
chamavam de Alemão, saíram cedo do quartel e pegaram o ônibus para Laranjeiras. Estavam dominados por um entusiasmo quase infantil: iriam assistir Fluminense x Botafogo pelo Campeonato Carioca. Era a primeira vez que os três assistiriam a um clássico carioca. As equipes do Rio de Janeiro dominavam as imaginações jovens e tomavam um espaço enorme do afeto nos corações pelo Brasil todo. Os nomes dos craques cariocas retumbavam como tambores nas árduas discussões sobre futebol no quartel: Heleno de Freitas, Perácio, Barbosa, Biguá eram emblemas de uma alegria e glória que eles não sabiam definir. Em Imbituba e nas alturas geladas de Vacaria, ouvir o Campeonato Carioca pelo rádio era um rito que confortava a alma e acalmava a imaginação. O Alemão Wogler era um dissidente cauteloso nessas discussões, pois o futebol gaúcho era forte e competitivo, e ele alternava as escutas do campeonato carioca com o gaúcho. Mas seu clube, o Grêmio, não passava por um bom momento há muitas temporadas. O Internacional montara uma máquina de jogar futebol, arrogantemente chamada de Rolo Compressor, e isso, para o Alemão, era uma triste verdade: o Colorado simplesmente esmagava quem passava em seu caminho. Seus craques tinham nomes que ultrapassavam as fronteiras do Estado e despertavam a cobiça dos grandes do Rio, de São Paulo e de Buenos Aires. Carlitos, Tesourinha, Nena, Ruy e Villalba eram mais do que nomes e apelidos, se revestiam da aura mítica dos invencíveis. O Alemão não queria saber disso, e seus amigos tampouco. Numa parada da viagem, entraram no ônibus três moças bonitas e queimadas de sol, com uniformes de enfermeiras do Exército. Os três se inquietaram e trocaram olhares coniventes, mas sem muito entusiasmo. “Vamos convidar elas para o jogo”, sussurrou o Alemão, que era o mais despachado. As três enfermeiras passaram altivas, indiferentes, e os pracinhas sentiram sua condição de provincianos na grande cidade. Era verdade, e eles sabiam. Adoravam, aos domingos e dias de folga, pegar um ônibus e circular pela cidade, olhando-a com seus olhos juvenis, fáceis ao espanto. Sabiam intuitivamente que entre eles e aquelas garotas havia um áspero e grosso muro social que os separava. Dulce e Zoé estavam mais bonitas do que nunca, e sua amiga Virginia tinha olhos verdes e os cabelos louros: sua mãe era inglesa, casada com um engenheiro carioca. Conheceram-se num Carnaval, e a turista pálida e frágil ficou para sempre na cidade. As três moças não olharam nem repararam nos três pracinhas. Seu destino era Copacabana, passear na beira-mar, dar uma recorrida no Cassino e voltar para casa. Na segunda-feira bem cedo, recomeçaria a estafante rotina de treinamento. Perto das Laranjeiras perceberam a agitação das torcidas chegando para o jogo, e os três pracinhas se levantaram precipitadamente. O casquete de Pedrinho caiu e quando ele foi levantá-lo uma mão branca, pequena, apanhou-o antes e o estendeu. Os olhos de Pedrinho encontraram os de Virginia. Ele corou, sem remédio. Murmurou “Obrigado”, e enquanto era arrastado por Atílio e Alemão se perguntava se ela também tinha sorrido para ele ou fora apenas impressão. Já na calçada, olhou com ínfima esperança. Ela o olhava! Deu um adeusinho, e o ônibus se foi no meio do trânsito e da multidão que chegava. Pedrinho ajeitou o casquete com cuidado, pensativo, no exato momento em que o major Brayner ajeitava seu quepe, entrando no elevador do Ministério da Guerra. Outro oficial acelerava o passo para tomar o elevador, e Brayner segurou a porta para esperá-lo. Reconheceu o tenente-coronel Castello Branco, o Humberto de Alencar, considerado intelectual e influente em algumas áreas do Exército. Trocaram continências, mas não falaram. Quando foram apertar o botão de comando os dedos de ambos procuraram o número 10. Curioso. No 10º andar do Ministério ficava o Gabinete Secreto do Ministro da Guerra, e para ir até lá só com convite especial. Subiram em delicado silêncio até o 10º e quando saíram do elevador encontraram, refestelados nas poltronas do saguão, o general Mascarenhas de Moraes, o coronel Henrique Lott e o tenente-coronel Amaury Kruel. Todos tinham recebido convites sigilosos e individuais. Não havia justificativa ou definição de finalidade. E nenhum sabia que o outro tinha sido convidado. Logo juntou-se a eles o general americano Hayes Kröner, adido militar dos Estados Unidos, acompanhado de dois tenentes-coronéis também americanos. A porta do gabinete se abriu, e o coronel José Bina Machado, chefe de gabinete do general Dutra, convidou-os a entrar. Dutra cumprimentou um por um e passou para seu lugar na grande mesa no centro da sala. “Senhores”, começou, “agradeço a presença e a pontualidade de todos. Este é um encontro totalmente sigiloso, como podem deduzir, e sem mais delongas vou passar a palavra ao general Kröner, com quem deliberei sobre convocar esta reunião”. Brayner mentalmente classificou o americano de “enigmático e autoritário”. Era muito magro, e não conseguia esconder certo ar superior, que colocou um invisível e tênue mal-estar no ambiente. “Senhores, comunicados oficiais alemães desde ontem já anunciam ao mundo que o Brasil enviará tropas de seu Exército ao Teatro Europeu”, começou Hayes. “Esses comunicados avisam, ou melhor, ameaçam que nenhum combatente brasileiro tomará pé em terras da Europa. Ou seja, o barco que os transportar será afundado por seus submarinos. Quero dizer aos senhores que o governo dos Estados Unidos afirma o contrário.” Fez uma pausa (teatral, pensou Brayner), e olhou seus interlocutores, que sequer piscaram. “O governo dos Estados Unidos assume a responsabilidade e o risco de transportar as tropas brasileiras para qualquer lugar a que sejam destinadas. Mas, senhores, isso exige um grave compromisso de todos nós. E por isso, pedi ao senhor ministro da Guerra que nos reunisse aqui, no mais absoluto caráter sigiloso. Os oficiais que aqui se encontram, neste momento, não podem transmitir a quem quer que seja o que se vai debater e decidir. Nem mesmo as esposas poderão ouvir confidências sobre o que aqui for tratado. Se alguma desgraça acontecer, na partida ou na travessia do Atlântico, a responsabilidade ficará conosco, pela inconfidência de algum de nós. A preparação final ficará a cargo do Estado-Maior da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária.” Olhou para Brayner, que assentiu com a cabeça. “O navio que transportará o 1º Escalão é americano. Seu nome, onde se encontra, quando chegará, nada sabemos, por enquanto. Mas esse dia, posso afirmar, está próximo.”

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