sexta-feira, 18 de maio de 2012

Batismo de fogo na noite escura

18.

"A ponte que dá acesso à estrada para Camaiore está destruída, senhor”, disse o sargento Nilson, olhando para o capitão Ernani com insistência. “E essa agora”,pensou o capitão Ernani, “sempre tem uma novidade ruim, e é esse sargento que vem me trazer”. “Destruída? Como, destruída? Uma hora atrás não estava destruída”. “Foi bombardeada, senhor, não temos como passar o rio”. O capitão Ernani sabia que Camaiore era uma cidade antiga, muito antiga. Do tempo dos romanos. E no latim ancestral, queria dizer Campus Maior, como explicou o general Zenóbio. Lá estava ela, lá longe, do outro lado do rio. Era uma coisa maciça e cinzenta, toda de pedra. Casas de dois andares rigorosamente iguais. Ruas estreitas e labirínticas. “Recebemos ordens de tomar Camaiore dos alemães. E o senhor, capitão Ernani, vai comandar o ataque”, disse Zenóbio. “Eles ocupam a cidade há mais de um ano. Entrar lá é entrar numa arapuca mortal. Mas isso todos já sabemos”. O rosto insondável do capitão Ernani escondia a angústia de estar dividido entre dois sentimentos: a euforia de ser indicado para a primeira verdadeira missão da FEB e o pavor legítimo de avançar contra uma fortaleza totalmente blindada, onde se ocultavam membros da 148, a famosa divisão que combatera na Rússia, na África e agora estava na Itália para interceptar a invasão aliada. “A ponte está destruída?”. “Foi bombardeio, capitão”. “A nado é que não vamos atravessar”. Claro que não, pensou o sargento Nilson, olhando para o capitão Ernani. A correnteza era muito forte, a profundidade ignorada e ali perto tinha acabado de explodir um projetil lançado por um canhão. Súbita sucessão de explosões assustou os brasileiros, que se encolheram contra o chão, atrás dos tanques, caminhões e jipes, atrás de árvores e de pedras. A primeira missão difícil começava difícil. O capitão mascava alguma coisa, o sargento olhava para ele. Será que esse capitãozinho está com medo? “Liguem para o pelotão de Engenharia”, disse o capitão, “precisamos de botes.” O sargento Nilson ficou observando o capitão falar ao rádio. Parecia calmo e incisivo, mas terminou com certa petulância. “Não sei como vão conseguir, mas consigam!”. Quase uma hora depois, três caminhões chegaram com barcos de borracha. Eram 12 e cabiam 12 homens em cada barco. A travessia começou no meio da tarde, quando o outono começa a ficar velho, e a brisa, mais fria. Os pracinhas desembarcavam na outra margem e corriam para a estrada, postando-se agachados nos dois lados da via. Os bombardeios caíam mais ao longe. “Acho que não perceberam ainda nossa presença nesta posição”, murmurou o capitão Ernani para o tenente Molina, agarrados ao bote inflável, que sacudia nas águas da corredeira. Desembarcaram e correram para a  argem da estrada esburacada. Deste lado do rio, a cidade de pedra parecia maior, mais ameaçadora. “Não vamos ficar parados, vamos indo”, ordenou o capitão ao tenente. “Faça o pessoal se mexer”. “Mas não vamos ter a proteção dos tanques, capitão”. “Certo, vamos sem proteção, tenente”. À medida em que a tropa transpunha o rio, a fila na estrada ia se tornando cada vez maior. Agora subiam uma lomba acentuada,   cansaço começava, as pernas doíam. Das casas de pedra na margem da estrada, apareciam cabeças de velhos, curiosas, tensas. Ouviam cantos de galos, algum balido de ovelha. O sargento Nilson levantou a mão. “Alto!”. O capitão se aproximou. “O que foi?” .“Minas, capitão”. Foi necessário esperar um engenheiro de minas. Pacientemente ele foi localizando as minas, marcando com fitas uma passagem segura. A aproximação do objetivo continuou, mais lenta ainda. Chegaram ao alto da lomba, olharam para trás. A fila estava enorme e desprotegida. Mas o pior era o que estava diante deles. A descida da lomba era abrupta, longa e toda esburacada. Terminava aos pés da cidade. Pedro Diax, Atílio e o Alemão olharam para o fim do declive com um arrepio de pavor. O capitão, o tenente e o sargento, sem abrirem a boca, pensavam o mesmo: vai ser a coisa mais maluca que já fiz na vida, mas, de um jeito ou outro, vamos ter de descer essa lomba e ir bater na porta de Camaiore. Foi quando ouviram o vozeirão de Zenóbio. “Então, moçada, por que estão aí parados?” Antes que o capitão tentasse uma resposta, Zenóbio falou: “Jipes. Quero jipes aqui, agora, todos os que puderem trazer”. Era um espanto um general estar ali, na primeira linha, prestes a avançar contra o inimigo entrincheirado. Mas Zenóbio tinha aquele estilo que era só dele, fazendo as coisas com um sorriso e mascando o charuto. Os jipes foram chegando. Tinham atravessado o rio em barcaças que a Engenharia construiu com rapidez. “Já vai escurecer”, disse Zenóbio, “e não vamos descer essa lomba a pé.” No primeiro jipe, subiram Pedro, Atílio, Alemão, Quevedo, o esclarecedor do pelotão, o negro Bandeira, gaúcho de Caçapava do Sul, o sargento Nilson, o tenente Molina e o capitão Ernani. O motorista era o Cego Aderaldo. “A toda velocidade!”, berrou Zenóbio, sinalizando com o braço a partida. O jipe arrancou. Pedrinho sentiu aquele frio inevitável no estômago, quando se desce uma rampa em alta velocidade. Todos se agarravam e mordiam o grito. O capitão fechou os olhos. “Alea jacta est!”, dissera Zenóbio, que andava com fumos intelectuais nas últimas preleções. Aí iam eles, como se estivessem num parque de diversões, numa montanha russa, descendo desamparadamente, ao encontro da mutilação, da loucura ou da morte. O Cego Aderaldo se agarrava ao volante e rezava. Zenóbio comandou mais uma partida. “Agora, vai!”. O segundo jipe partiu, com 10 dentro dele. Depois, o terceiro, o quarto. Iam chegando e se amontoando uns sobre os outros nas primeiras ruas, rolavam, deitavam-se no chão, ficavam imóveis, examinando se estavam com os ossos inteiros. Um jipe perdeu a estrada bem próximo deles e virou, com os soldados saltando para todos os lados. “Vejam se há feridos”, gritou o capitão Ernani, “chamem os padioleiros.” O capitão Ernani ficou de pé e empunhou seu rifle. Camaiore estava completamente às escuras. Nem uma luz havia em nenhum lugar. “Vamos entrar na cidade, em fila, rente às paredes”. Constatou com susto que todos olhavam para ele. “Os alemães têm grupos de combate espalhados pelas ruas, nos becos, nas vielas. Tanques, metralhadoras, obuses. Estão nos esperando”. Não conteve a vontade de fazer uma bravata: “Vamos ver se esses alemães são tão bons como dizem”. E lançou um olhar aos homens sob seu comando. Era um grupamento misto composto da 2ª Companhia do 6º Regimento de Infantaria, de um pelotão de Engenharia e de um grupo de tanques e carros de combate americanos que finalmente chegaram. O capitão pensou por um segundo de que adiantavam os tanques se eles não cabiam nas vielas estreitas. Sacudiu a cabeça. Aquilo era assunto da Infantaria. Entrar nessa cidade é assunto da Infantaria. Então, é com a gente mesmo. O capitão Ernani Ayrosa, 29 anos, disse, bem alto: “Vamos, macacada”. E deu o primeiro passo para entrar na cidade coberta pela escuridão da noite.

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