domingo, 20 de maio de 2012

Horror em Camaiore

19.

Então agora estavam dentro daquilo que Zenóbio tinha chamado de arapuca mortal. Cada passo que davam era como pisar em areia movediça. Mas o chão era de pedra, irregular, as botinas escorregavam e havia alguns buracos traiçoeiros, onde se podia enfiar o pé e quebrá-lo. “N-n-não t-t-tô v-ve-vendo nada”. “Ninguém tá vendo nada, gago”, resmungou Quevedo. “Já disse pra não me chamar de gago, seu...” . “Tá bom, desculpe, me esqueci”. “S-sse me chamar de gago ou-ou-outra vez, n-n-não é só a-a-alemão que vai morrer hoje”. “Epa, ficou valente o catarina”. “Calem a boca vocês dois”, rosnou o sargento Nilson. “Es-es-esse ga-ga- aúcho t-tá m-me chamando de ga-ga-gago, sargento”. Estavam rodeados pela escuridão. O sargento Nilson suspirou. Sabia que os alemães estavam ali, a poucos metros, atrás de alguma esquina, em uma janela, num beco, esperando por eles. Sabia que os alemães tinham ordem de atirar primeiro nos sargentos, por comandarem grupos de combate, depois atirar nos oficiais comandantes de pelotão. Ele era um alvo preferencial, portanto. Ele e o capitão Ernani. Sabia que estava com medo. Ele, sargento Nilson, para ser honesto consigo mesmo, tinha que admitir que estava com medo. Com muito medo. Nenhum daqueles homens que avançavam rente à parede, atrás dele, tinha entrado em combate. Nenhum deles tinha atirado em outro homem. Eram todos garotos, de 18 a 22 anos. Velhos ali, só ele mesmo e o capitão. E ele, sargento Nilson, com uma dorzinha súbita no fundo da alma, porque sentiu, no ar escuro, cheiro da cozinha de sua casa em Saco dos Limões, Florianópolis. Tinha 24 anos e um pressentimento de morte no peito quando a explosão da granada iluminou o escuro e mostrou os olhos aterrorizados dos soldados atrás dele. Sucedeu-se uma rajada de metralhadora, depois outra, e logo outra granada caiu no piso de pedra – ouviram nitidamente o baque e, em seguida, o ruído do artefato deslizando. Todos imobilizados contra a parede. Os tiros pararam. A granada não explodiu. A rua estreita e em curva conduzia para uma escuridão ainda mais negra. “Cuidado”, disse o capitão Ernani, “que ninguém pise na granada”. Por mais que olhassem, que forçassem os olhos, nada viam. “Capitão, a gente precisa mesmo avançar?” Era a voz de Pedrinho, um fio de voz se desfazendo em medo. O capitão entendeu nesse instante o que era ser capitão. Ele era pai, irmão mais velho, mãe e amigo daqueles rapazes que estavam na rua escura, espremidos contra a parede, paralisados de medo, olhando para a escuridão que escondia a morte. Minha voz precisa ser calma, precisa ser ponderada, precisa ser enérgica, precisa ser voz de capitão e precisa responder duma só vez tudo o que eles querem ouvir. “Garoto, precisamos avançar, sim, mas não com pressa, entendeu?” “Sim, senhor”. “Vamos passo a passo, na malandragem, que a gente chega lá”. “Sim, senhor”. “Fica atrás de mim e do sargento Nilson que a gente chega lá”. Lá aonde?, ressoou a voz dentro dele quando uma explosão iluminou o pedaço de rua, e eles viram, pela primeira vez, os alemães, ou o que poderia ser os alemães – vultos que atravessaram a rua de lado a lado, correndo e disparando as metralhadoras. O capitão Ernani deu seu primeiro tiro na guerra. Apertou o gatilho sem raiva nem pressa, mais pela necessidade de praticar uma ação, e viu um vulto caindo e escutou o palavrão de júbilo do sargento Nilson bem em seu ouvido. “Istepô! Pegou um, capitão!”. O sargento Nilson deu uma rajada de metralhadora e soltou seu brado favorito: “Avançar, macacada!”. E os brasileiros avançaram em tropel pela escuridão, tropeçando, se empurrando, estremecendo com as explosões e as rajadas de metralhadoras que tornavam a noite um pesadelo. Pedrinho Diax e o Alemão, afoitos, avançaram demais e perceberam que não sabiam mais onde estavam os companheiros. A voz grossa do esclarecedor do grupo de combate, o soldado Bandeira, negro como a asa da graúna, disse: “Aqui, moçada, tem um beco aqui, à direita!”, e eles entraram no beco onde tênue luz deslizava de uma janela entreaberta. E ali no beco travou-se uma súbita e brutal troca de tiros quando uma porta se abriu e dois alemães saíram atirando como loucos, derrubando o esclarecedor Bandeira, que deu um grito, e dispararam para a rua, encontraram mais brasileiros e houve uma ininterrupta e assustadora troca de disparos de metralhadora, e os dois alemães caíram como bonecos de trapo. Pedrinho ficou ali olhando os corpos, mas foi empurrado para a frente pelo Alemão, agora um jipe avançava pela rua e seus faróis mostravam as paredes de pedra que os sufocava e constringia naquele labirinto escuro, e então um artefato atingiu em cheio o jipe, causando uma explosão, os soldados saltaram com gritos de pavor e, em seguida, o jipe pegou fogo. Pedrinho assistia estarrecido, foi derrubado por um dos soldados que escapavam do jipe, quando nova explosão aumentou as chamas, e a cidade de Camaiore apareceu nítida aos seus olhos: paredes cinzas, ruas estreitas, janelas fechadas. Quevedo o tomou pelo braço e o levantou, e eles foram indo para a frente, se empurrando, ouvindo tiros ao longe, explosões ao longe, gritos ao longe e percebendo que uma luz tímida, de um novo dia, começava a revelar a cidade. Havia alguns corpos caídos no fim da rua. Um soldado brasileiro que eles não conheciam se arrastava no chão, a boca cheia de sangue. Pedrinho e o Alemão o recolheram e puxaram para trás de uma esquina. O soldado não falava nem gritava, tinha os olhos arregalados numa expressão de espanto. A luz aumentava sobre Camaiore, e revelava uma névoa cinzenta, volátil, subindo lentamente. O capitão Ernani apareceu de repente. “Ninguém parado, ninguém parado, em frente!”. Prosseguiram se atropelando, dobraram uma esquina, um tanque apareceu como um monstro irreal no centro de uma pequena praça. “É americano!”, gritou o sargento Nilson. Não tinham ideia como aquele tanque tinha entrado na cidade, devia haver ruas mais largas. Quevedo se abaixou sobre o chafariz no centro da pracinha e bebeu água das mãos em concha. “Tá amanhecendo”, disse. “Passou tanto tempo assim?”, perguntou o Alemão. Pedrinho deu um passo, saiu da esquina e olhou ao redor. A névoa subindo revelava a grande curva da rua de pedra, as duras casas cinzas com suas janelas fechadas. Havia um vasto silêncio de amanhecer. Alguém passou correndo ao longe. Pedrinho olhou para Atílio e para Quevedo, que examinava as correias do tanque com ar de entendido. Pedrinho sussurrou: “Acho que tomamos a cidade”.

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