segunda-feira, 7 de maio de 2012

A porta do inferno está aberta




17.

A ordem era sucinta, mas Brayner teve que ler duas vezes para entender com clareza seu conteúdo: “Substituir os elementos do II/370 Regimento de Infantaria, às 19 horas do dia 15 de setembro, na região Vecchiano-Massacinccali-Filetole. Manter contato com o inimigo e sondar seu dispositivo por meio de vigorosa ação de patrulha. Caso o inimigo se retire, persegui-lo mediante ordem deste IV Corpo. Manter contato com a 1ª Divisão Blindada que opera a Leste”. Finalmente. Depois de dois meses de instrução e exercícios, chegara a hora do batismo. Brayner reuniu o Estado-Maior e solicitou a presença do comandante-em-chefe general Mascarenhas de Moraes. A coisa tinha que ter um viés de solenidade. Iam entrar em ação. Mascarenhas chegou e deu uma notícia confortadora: “O segundo escalão já está no mar, viajando para cá”. Reuniram-se ao redor da mesa, Zenóbio abriu o mapa. Zenóbio tinha gotas de suor na testa. Zenóbio ia comandar. Aquilo era missão da Infantaria. “O terreno é todo escarpado, o caminho minado e o inimigo não se apresenta, estará o tempo todo à espreita”, disse Zenóbio. “Que ninguém se engane, vai ser duro.” “Quem está lá é a 148. É uma Divisão famosa, com veteranos da Rússia. Eles não vão se expor”, disse o coronel Segadas Viana, comandante do 6º Regimento de Infantaria, destacado para a missão, “só vão atacar quando for favorável a eles, o que significa que vamos avançar por um corredor de morte.” Zenóbio não gostou do comentário: “É a guerra, coronel”. “Desculpe, mas não estou reclamando, general, só constatando.” “Quando substituirmos os americanos vamos ficar responsáveis por uma frente de nove quilômetros”, disse Brayner. “Se ficarmos só na defensiva já é muito, mas na ofensiva é simplesmente absurdo”, disse Segadas Viana, olhando para Zenóbio, que sustentou o olhar. “Sei disso muito bem, mas essa é a nossa primeira missão nesta guerra, coronel Viana, e vamos começar imediatamente, sem queixas nem indecisões. Vamos atacar em três linhas. Olhem este mapa: o Primeiro Batalhão do 6º inicia a marcha para tomada de contato com o inimigo na direção de Filetole-Monte Ghilardona, dois vilarejos, com poucas casas de pedra. É  uma subida íngreme e aí poderemos ter surpresas; o Segundo segue pela direita, na direção de Bozzano-Vecoli, deve haver resistência moderada, segundo os partiggiani; e o Terceiro sai da reserva para avançar sobre Le Corti-Bozzano. A população desses povoados pode ser hostil, não sabe quem nós somos, tem medo de todos, dos alemães, dos americanos, dos partiggiani, e agora vêm esses estranhos com cara de índios. Eles devem estar aterrorizados, fartos dessa guerra que não compreendem. Vamos com prudência, vasculhando o terreno, que é todo minado, ainda segundo informação dos partiggiani. Quem serão seus comandantes de batalhão, coronel Segadas?” Zenóbio sabia perfeitamente quem eram os comandantes dos batalhões, mas estava um tanto solene e gostaria de ouvir isso da boca do oficial encarregado da missão. “Os majores Gross, Silvino Nóbrega e Abílio Pontes.” “Muito bem, que eles saibam que essa estrada que vamos percorrer é a nossa entrada na História pela porta da frente, meu coronel. Ponha seus homens em forma. Vamos marchar de madrugada.” De madrugada, a porta da frente da História estava tomada por uma cerração forte que a encobria totalmente. Nada era visível da estrada. Os montes dourados de Toscana, que os rodeavam, eram apenas vultos. O major Abílio pensava com certa ironia nas palavras do chefe da infantaria. Todos sabiam que Zenóbio era fanfarrão espalhafatoso, mas essa sua veia poética não era conhecida. O major Abílio era homem de leituras, e os oficiais mais velhos estavam de olho nele porque dissertava com certo entusiasmo sobre as teorias de Marx, esse alemão judeu. O major  Abílio tinha 30 anos e nenhuma experiência de combate. O 6º RI avançava encolhido dentro dos caminhões e amontoado nos jipes. Era uma longa coluna de veículos, avançando sem pressa na estrada cheia de curvas. Pedrinho, Atílio, o Alemão e Quevedo estavam encostados uns nos outros, apertando seus fuzis numerados. Cada um já sabia o número do seu fuzil de cor, e a ordem era não largá-lo, não perdê-lo, não emprestá-lo porque no último dia da guerra teriam de devolvê-lo mediante recibo ao órgão provedor. E enquanto sacudiam na carroceria, e vagamente sentiam enjoo devido a tantas curvas na estrada, enquanto tinham na memória o espanto das coxas das mulheres nos becos escuros de Nápoles, ouviram a primeira explosão. Pedrinho fechou os olhos e num relance se viu a bordo do Baependy, sacudido pela explosão. Mas o caminhão continuava intacto. A explosão foi longe. Abriu os olhos e seus companheiros estavam um tanto pálidos, naturalmente angustiados, escutando. Nova explosão, mais forte. “Começou a guerra pra nós”, murmurou o Alemão. “Já estava demorando”, disse Quevedo. “T-t-tá ch-chechegando a hora.” O caminhão parou. A porta de lona se abriu, e o sargento Nilson enfiou a cara para dentro do caminhão. “Vamos desembarcar, macacada, e ir se postando em fila de um ao longo da estrada. Temos uma bela subida a nossa espera e vamos fazer isso com nossos belos sorrisos de dentes cariados.” O sargento Nilson era um tanto barroco ao falar, mas isso – e o humor misturado de ironia – era legado açoriano dos legítimos manezinhos da Ilha de Santa Catarina. Deu uma olhada nos dois garotos de Imbituba. “Quero ver vocês fazendo bonito.” “Sim, senhor, sargento”, disse Pedrinho. “Quero ver vocês indo pra frente, sempre pra frente e nada mais do que pra frente, entendido?” “Sim, senhor, sargento.” Outra explosão sacudiu as paredes da montanha, os pracinhas se encolheram, se olharam, mas o gago Atílio deu um empurrão em Pedrinho, e começaram a se apressar, a pular para fora do caminhão, atentos e ansiosos. De todos os caminhões e jipes os homens começaram a saltar. Iam entrando em fila nos dois lados da estrada. Os capitães comandavam aos gritos para começar a marcha, os tenentes corriam de um lado para o outro, os sargentos berravam e empurravam, Pedrinho olhou para sua frente, para a névoa que se desmanchava e permitia ver entre raios de luz a longa coluna de homens a pé, fuzis nas mãos, curvados, silenciosamente subindo a estrada estreita e cheia de curvas.

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