terça-feira, 1 de maio de 2012

Numa terra estranha

16.

Zoé, Dulce e Virgínia voaram do Rio para Natal, de onde seguiriam imediatamente para Dacar. Mas após uma série de confabulações misteriosas entre os oficiais da FAB e os comandantes do Corpo de Enfermagem, acompanhadas por elas com ouvidos atentos, souberam que deveriam ficar em Natal, “talvez por alguns dias”. Enquanto arrastavam suas mochilas para os alojamentos no outro extremo da pista ouviram que um avião tinha sido abatido nesse mesmo dia, na rota que tomariam para Dacar. Somente decolaram três dias depois e pousaram após 12 horas de voo numa faixa estreita de terra que tinha o nome de Ilha de Ascensão. Abastecido o aeroplano, levantou para Acra, capital da Costa do Ouro. Pernoitaram em Dacar, mas após novas confabulações misteriosas foram para Atar, abasteceram, rumaram para Robert Field, depois Marrakesh, onde foram atropeladas por um camelo na saída do aeroporto. As 25 enfermeiras chegaram a Casablanca num final de tarde avermelhado, onde descansaram por três dias, em meio ao calor infernal, o pó da rua onde ficava o hotel e o alarido dos vendedores. Finalmente levantaram voo mais uma vez e aterrissaram em Alger. Era 12 de julho, tinham saído do Rio na madrugada do dia 2 e todas estavam confusas e atemorizadas. Elza, a mais despachada e influente do Corpo de Enfermeiras, disse “Vamos para Nápoles. O 1º Escalão já está lá”. Era verdade. O 1º Escalão já estava lá, mais exatamente nos arredores da cidade, em Agnano, acampado no barro, sem barracas, sem cozinha, sem mantas para se cobrir. Era pleno verão, mas a noite parecia de gelo. Estavam acampados na cratera do vulcão Astronia, abaixo do nível do mar, o que aumentava a sensação de frio. A maioria dos 5.800 homens não sabia desses detalhes. Estenderam-se no chão, cobriram-se com seus casacos. Foi oferecido aos generais Mascarenhas de Moraes e Zenóbio da Costa hospedagem no Parco Hotel de Nápoles, mas eles recusaram terminantemente. Foram montadas duas barracas onde passaram a noite com a tropa. Seria uma longa noite, ouviam-se tosses, gemidos, algum palavrão em voz contida. Os homens sonhavam com a devastação do porto de Nápoles, com os estranhos balões presos por cordas ao longo de todo o litoral, a fim de atemorizar voos rasantes de aviões inimigos. Súbito, irrompeu um alarido agudo e iniciou um corre-corre no lado direito do acampamento. Um oficial se aproximou da barraca de Mascarenhas. “Tentativa de suicídio”, disse o oficial, “já foi dominado.” “Quem era?” O oficial olhou para a tropa deitada na escuridão do chão enlameado. “O tenente-médico Soares Silva, ele teve um surto, algo assim, apanhou o revólver e tentou obrigar seu ordenança a atirar nele. Já está tudo sob controle, comandante.” “Muito bem, obrigado.” O oficial fez continência e se afastou. Mascarenhas procurou Zenóbio, ambos se olharam em silêncio. “Começamos mal, companheiro” disse Zenóbio. “Não vou subestimar este episódio” respondeu Mascarenhas, “mas já esperava algo parecido. A viagem foi muito tensa, estamos parecendo um bando de mendigos, vamos ter muito trabalho, meu amigo.” Zenóbio bocejou, apanhou um charuto. “Um médico, hein? Quem diria.” “Nossos tenentes vêm da turma de aspirantes a oficiais que deixou Agulhas Negras três meses atrás, Zenóbio, às vésperas de partir. Foram promovidos a 2º-tenentes no dia do embarque. Tudo era festa de estudantes. A maioria desses oficiais nunca viu um corpo de tropa, nunca entrou numa caserna.”  E agora estão aqui.” “Numa terra estranha, numa noite escura, no chão enlameado. Vamos ter muito trabalho, meu amigo.” Recolheram-se a suas barracas, mas foi difícil dormir. A frase “A viagem foi muito tensa” ficou repercutindo em seus ouvidos. Mascarenhas lembrava-se de que estava na sala de oficiais do General Mann ouvindo o noticiário da BBC quando o locutor anunciou: “Aproxima-se de Nápoles, navegando pelo Mediterrâneo, o comboio conduzindo o primeiro contingente de tropas brasileiras para participar da luta no Teatro de Operações europeu.” Era absurdo, mas verdadeiro. A operação mais secreta e sigilosa do exército brasileiro era anunciada aos quatro ventos pelos poderosos microfones da BBC. Um coronel americano esbravejou: “Ingleses filhos da mãe! Nos entregaram aos alemães!” E esse possível exagero do coronel logo se tornou realidade. O oficial de ligação do navio estendeu um telegrama para o major Brayner. “Um forte esquadrão de bombardeiros inimigos, oriundo do norte da Itália, devidamente protegido, voa na direção do comboio, que poderá ser atingido dentro de uma hora, caso não seja interceptado. Todos os meios de interceptação, das bases do norte da África, Sicília, Nápoles e Sardenha, foram acionados e deverão dar a cobertura ao comboio. Convém estar preparado para a luta antiaérea.” Mascarenhas lembra o olhar atento dos americanos para a reação dos brasileiros. Ele e Brayner ficaram impassíveis, mas a notícia se espalhou. Houve um calafrio na tropa amontoada nos porões, mas o ataque não aconteceu. Agora na sua barraca, sente o chão duro, dores no corpo. Pudera. Está com 61 anos, não é idade de ir para a guerra. No dia anterior sofrera uma humilhação inesperada, que ainda remoía.  Já passara uma semana do desembarque, continuavam amontoados no porto, via com apreensão os homens se misturando às prostitutas e aos proxenetas, às crianças famintas, às mulheres desesperadas. E nada de o comando americano lhes fornecer as armas do acordo firmado. Protelavam, davam desculpas, Mascarenhas olhava os soldados vagando sem objetivo, tomou uma decisão, chamou Brayner. “Major, vamos falar com o órgão provedor. Temos um acordo, eles nos devem.” Rumaram de jipe para o antigo e imponente Palácio Real, no bairro de Caserta, onde funcionava a base de suprimento. Esperaram mais de uma hora numa saleta barroca, olhando o quadro a óleo de um antigo e afetado monarca italiano. Enfim apareceu o general Harris, comandante do órgão. Denotava pressa, e brandiu no ar com desprezo a lista de petições enviada a ele. “Afinal de contas, o que vocês trouxeram para lutar?” O major tradutor se esforçou para amenizar a atitude do general americano, chegando a lembrar que Mascarenhas organizara a defesa do nordeste brasileiro para a América. “Para a América, não,” disse Mascarenhas, “para o mundo ameaçado pelo nazismo, meu senhor. E essa petição é produto do acordo firmado em Washington pelos nossos governos. Apenas isso.” Mas o clima da reunião estava definitivamente abalado, embora o general Harris tenha moderado seu tom. Mascarenhas e Brayner voltaram em silêncio no jipe, olhando a paisagem ferida, as ruínas e as pessoas vagando sem rumo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário