41.
“Tomamos Gaggio
Montano dos alemães no dia 20 de novembro, já estamos chegando ao último dia do
ano e nada da gente arredar pé de Gaggio Montano. Pra dizer a verdade tô até
gostando desta vilazinha.” “Gostando, Bandeira? Isto aqui é o fim do mundo.” “As
pessoas são simpáticas, todos nos cumprimentam e abrem suas casas para nós.”
“Abrem suas casas para nossas provisões, Bandeira, não seja ingênuo.” “Pode me
chamar do que quiser, é gostoso repartir com quem precisa esta gororoba que é
nossa ração, é gostoso a gente ficar conversando numa cozinha quentinha com o
fogão aceso.” “É gostoso ficar olhando para as italianas.” “As vezes elas
deixam a gente dar um beijinho.” Ninguém mais ria, as conversas eram um tédio,
rondava em todas as mentes a ameaça do descontrole do impulso sexual agora que não havia mais
distrações como a possibilidade de subir a montanha para um ataque em massa.
Essa era uma hipótese totalmente descartada. Tudo que podiam fazer era suspirar
e esperar, olhar as mulheres da vila, suspirar e esperar. Gaggio Montano estava
totalmente coberta pela neve. Gaggio Montano era um amontoado de casas no alto
da montanha, bem ao pé da elevação pontuda que tinha o enigmático nome de Monte
Castelo. Os moradores diziam que antes ali havia um castelo, quando os
brasileiros conseguissem subir até lá em cima, onde estão os alemães, eles
veriam as ruinas do castelo. Uma semana antes dos brasileiros tomar Gaggio
Montano os alemães promoveram um massacre em represália á morte de um soldado
pelos partigiani. Foi uma ação fria e
cruel. Setenta pessoas foram arrebatadas de suas casas, a maioria eram velhos e mulheres, e foram
obrigados a cavar uma longa cova, longa e profunda, a menos de 100 metros da
rua principal e depois ficaram todos em fila, trêmulos de pavor, quando o
pelotão de fuzilamento se colocou diante deles. O padre Giordano chegou
correndo e se ajoelhou na frente do tenente que comandava o pelotão de
fuzilamento, mas levou um pontapé da pesada bota na boca. O rosto do padre de 25
anos se encheu de sangue. Ele viu o esguio tenente apontar a Luger para ele e
esboçou o gesto do Sinal da Cruz mas o tenente apertou o gatilho e o padre de
25 anos caiu para trás. Dois soldados o arrastaram pelos pés e o jogaram na
cova. Uma gritaria irrompeu da fila de velhos e mulheres. No mesmo instante
seus corpos foram cravejados de balas e foram tombando um a um, dentro da cova.
Agora a neve tapa a cova, agora os alemães fugiram da cidade e se instalaram
nas grimpas mais altas dos Apeninos e soldados brasileiros, morenos, negros,
pardos, vagam pela vila, não sabem o que fazer para afastar o tédio e o frio e
a desesperança que a enorme montanha despeja sobre eles. Quevedo, o negro
Bandeira que tinha dado baixa do hospital, o gago Atílio e o segundo sargento
Bóris estavam sentado junto a um fogão, espiando de vez em quando pela janela.
Nevava. Nevava sem parar a dez dias. Quevedo falou olhando pela janela: “Hoje
em dia não tem mais carga frontal, dando grito e reboleando o facão como no
tempo antigo.” Todos olharam para ele. “Meu pai me contava da revolução de 30,
ele participou de muita carga á cavalo, dando grito e reboleando o facão.”
Bóris sorriu. Esse tal cabo Quevedo sempre o surpreendia. “E eu sei por que dava pra fazer uma carga
frontal contra o inimigo, reboleando facão e tudo, o que é uma coisa de homem.
É que antigamente, no tempo do meu pai, as balas vinham mais devagar, dava
tempo pra o cidadão se abaixar, hoje em dia essas metralhadoras, essa tal de
Lurdinha é uma um despropósito de bala
em cima da gente, não dá nem pra sair da frente. A guerra perdeu o seu lado
humano, como diria aqui o companheiro Bóris.” “A guerra não tem nada de humano,
gaúcho, eu nunca disse isso.” “Não disse mas devia, um homem que anda o tempo
todo carregando essa tonelada de livros devia dizer uma coisa do tipo.” “Me
poupe de sua ironia de troglodita, cabo Quevedo.” “Opa, ofendi o homem.
Desculpe, camarada Bóris, eu me recolho á minha ignorância, não falo mais. Vou
ficar aqui de boca bem fechada, olhando essa nevezinha cair.” O segundo
sargento Bóris sacudiu a cabeça, perplexo. O cabo Quevedo ainda resmungou,
enigmático: “O segundo time do Ferro Carril ganha essa guerra sozinho.” Bem
nesse momento o coronel Brayner chegava ao aeroporto de Pisa. Ele sabia que
estava tomado duma calma fora do comum, afinal estava voltando ao Brasil em
missão especial do general comandante, teria sua amada Maria nos braços por
algumas noites quentes do Rio de Janeiro, afinal lá era pleno verão, e aqui
essa neve, essa neve que não para. O jipe o deixou na calçada, ele entrou no
grande prédio, abrindo a pasta para apanhar os documentos que devia apresentar.
Em dez horas veria o Rio de Janeiro. Mas não estava excitado nem ansioso. Essa calma
que o dominava era mau sinal. Estavam a beira de um precipício onde cairiam
todos eles, mas principalmente o exército como instituição, o Brasil como
nação, todos eles, oficiais brilhantes ou não, como seres humanos derrotados e
fracassados. Ele não tinha condições de reverter o quadro. Teria uma audiência
com Getúlio Vargas mas não sabia em que isso poderia ajuda-los. Sentiu um frio na barriga quando o avião
levantou voo, estava voltando para o Brasil e tudo o que levava no peito era
amargura e desesperança.
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