quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Dulce e Zoé no Hospital de Campanha

23.

“Então isto é o Hospital de Campanha” disse Zoé, largando a mala no chão. Dulce olhou ao redor com desconforto. Já estavam há dois meses na Itália e aquele era seu primeiro Hospital de Campanha. Até agora tinham trabalhado e feito estágio em dois grandes hospitais montados em Nápoles, nas dependências onde foi realizada a Feira Mundial. Peças arejadas, grandes corredores, pé direito gigantesco e cheiro de éter e substâncias semelhantes pairando no ar. Desfrutavam de relativo conforto para trabalhar. Virginia postou-se ao lado das duas e também largou sua mala no chão. “Que horror” murmurou, baixinho. O que viam não era muito animador. A chuva tinha parado a pouco, o barro tomava conta dos caminhos, a água empoçava no teto das centenas de barracas. A noite se formava pegajosa, alguns relâmpagos estalavam abrindo claros na escuridão. Um jipe se aproximou. A enfermeira chefe, Elza, desceu e foi direto a elas. “Não fiquem aí paradas como baratas tontas. Guardem suas tralhas na barraca e se preparem que vem aí grande confusão.” As três se olharam. Elza examinou-as um instante, carrancuda, e depois sorriu. “Mas antes tenho uma surpresa para vocês.” Fez um gesto para o jipe e o oficial desembarcou e se aproximou e elas reconheceram o capitão Marcos. Zoé se pendurou no pescoço dele, trocaram forte e demorado abraço. Zoé chorava. “Desculpem, eu sei que sou boba.” Marcos apanhou um lenço, ofereceu-o a Zoé. “Pode chorar, prima. Eu sei que vocês estão sendo maravilhosas.” Marcos ajudou-as a levar as malas para a barraca mas foi impedido de entrar pela enfermeira-chefe. “Homem não entra nessas barracas, capitão, principalmente se for um oficial bonitão.” “Não sabia que era bonitão, tenente Elza.” “Sua fama corre desenfreada como um garanhão pelas enfermarias, capitão Marcos, e eu tenho que zelar pela reputação das minhas moças. Diga-me uma coisa, capitão: como oficial de ligação, que inconfidência o senhor pode fazer a pessoas tão famintas de novidades?” “O Ministro da Guerra vem aí, fazer uma visita ao front.” “Essa já sabíamos, capitão. Conte outra.” “Churchill manca da perna direita.” “O que?” “Winston Churchill, o grande estadista, visitou nossas tropas na semana passada. Foi uma grande honra. Ele manca da perna direita. Ele passou nossas tropas em revista. O velhinho caminha apoiado numa bengala.” “Grande novidade, capitão, obrigado. E vá ver se estou na esquina, por favor.” E afastou-se em passos rápidos, sumindo no tumulto dos soldados e enfermeiras que iam e vinham no lusco fusco. “É bonitinha, mas não tem senso de humor” pensou Marcos, quando viu suas amigas saírem da barraca. “Vocês estão muito bem, meninas, estão lindas. Parece que vão para um baile no Copa.” “Capitão Marcos, o senhor é um grande mentiroso” disse Dulce “estamos horrorosas.” “Acabamos de chegar de seis horas de viagem, por uma estrada que era um suplício” disse Zoé. “Muito trabalho nos hospitais em Nápoles?” “Chegamos um dia antes do 1º- Escalão e trabalho não faltou desde o momento em que ele desembarcou. Nada menos que 300 homens foram diretamente de bordo para os dois hospitais.” “Cruzes.” “E isso que um número enorme foi mandado para o Hospital de Venéreas.” “Mas lá não tem enfermeiras” disse Virginia, corando. “Ainda bem” disse Marcos, e todos riram. “Onde você está, Marcos?” “Por enquanto em Pisa, pertinho daqui, 40 quilômetros. Bom hotel, bons restaurantes. Vou sequestrar vocês um dia desses e vamos comer num restaurante fantástico que eu descobri.” “E visitar a Torre.” “Naturalmente.” “Tenho amigos lá. A Aviação vai se instalar em Pisa brevemente, e o tenente Torres está lá organizando a chegada. Mas isso é segredo militar, gurias, é só para saberem que o queridinho das moças, o heroico capitão aviador Torres está perto.” As três riram com prazer, lembrando do tenente Torres, mas a inquietação que pairava sobre o Hospital, com a ameaça de chuva e os relâmpagos distantes, pareceu de repente desabrochar num tumulto de ruídos e buzinaços e ordens em voz urgente. Se aproximava um comboio de ambulâncias. Elza apareceu. “É um regimento de infantaria americano, só de negros, o 370.” A enfermaria de choque se preparou para o desembarque dos feridos, e á medida que as portas das ambulâncias eram abertas o ar começou a se saturar do som de gemidos e gritos de dor. Marcos percebeu a transformação nas suas três amigas. Elas rapidamente adotaram atitude profissional. Com rapidez, mas sem alarme, posicionaram-se para receber as macas. Elza falava com o médico americano. Parecia contrariada. Aproximou-se de Marcos. “A coisa foi feia” ela disse. “São mais de 60 feridos, e talvez a metade já sem vida.” Tomou o pulso de um soldado que era desembarcado numa maca, olhou para Marcos e sacudiu a cabeça. “Este se foi.” Marcos notou que a enfermeira-chefe era bonita, uma beleza nordestina, morena e com olhos de onça. “Sabe o que esse médico idiota me disse? Que esses soldados são covardes, que eles bateram em retirada e que mereceram o que aconteceu.” Estava chocada, pálida, e com raiva. Marcos tentou dizer alguma coisa. “Os americanos são um povo bastante racista, tenente Elza, sabemos disso.” “Sabemos, mas é repugnante falar assim de feridos.” “Tenente Elza” chamou Virginia “acho que temos um brasileiro aqui.” Elza e Marcos aproximaram-se. Numa maca estava um negro enorme, com a calça rasgada e uma bandagem na coxa. Curvaram-se sobre ele. “Praça Bandeira” disse o negro “fui atingido, mas o sargento Nilson me resgatou. Devo minha vida para ele.” “Muito bem, soldado, vamos tomar conta de você” disse Elza. “Tá sentindo dor no ferimento?” “Não senhora, não está doendo mais, me deram uma injeção e eu tô leve como uma pluma.” “Onde você estava, soldado?” perguntou Marcos. “Monte Prano, senhor. Fiquei cara a cara com os alemães, levei o maior susto da minha vida, mas acho que eles também levaram. Nunca viram de perto um negrão tão feio como eu.” A enfermeira Elza disse: “Você é um negrão muito bonito, soldado, e nós vamos tomar conta de você. Levem ele para a enfermaria.” Dulce e Zoé acompanharam a maca entrando na grande barraca de lona, Elza voltou-se para Marcos. “Pois é capitão, os americanos são racistas, mas os feridos deles, quando desembarcam no Hospital já vem com a Purple Heart no peito. Os nossos, se querem uma medalha, tem que requerer por escrito. Isso não é uma humilhação?” O capitão Marcos ficou calado. A enfermeira-chefe Elza, além de bonitinha e carrancuda, era mulher de caráter. Seria interessante tornar a vê-la.

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