“Então isto é o
Hospital de Campanha” disse Zoé, largando a mala no chão. Dulce olhou ao redor
com desconforto. Já estavam há dois meses na Itália e aquele era seu primeiro
Hospital de Campanha. Até agora tinham trabalhado e feito estágio em dois
grandes hospitais montados em Nápoles, nas dependências onde foi realizada a
Feira Mundial. Peças arejadas, grandes corredores, pé direito gigantesco e
cheiro de éter e substâncias semelhantes pairando no ar. Desfrutavam de
relativo conforto para trabalhar. Virginia postou-se ao lado das duas e também
largou sua mala no chão. “Que horror” murmurou, baixinho. O que viam não era
muito animador. A chuva tinha parado a pouco, o barro tomava conta dos
caminhos, a água empoçava no teto das centenas de barracas. A noite se formava
pegajosa, alguns relâmpagos estalavam abrindo claros na escuridão. Um jipe se
aproximou. A enfermeira chefe, Elza, desceu e foi direto a elas. “Não fiquem aí
paradas como baratas tontas. Guardem suas tralhas na barraca e se preparem que
vem aí grande confusão.” As três se olharam. Elza examinou-as um instante,
carrancuda, e depois sorriu. “Mas antes tenho uma surpresa para vocês.” Fez um
gesto para o jipe e o oficial desembarcou e se aproximou e elas reconheceram o
capitão Marcos. Zoé se pendurou no pescoço dele, trocaram forte e demorado
abraço. Zoé chorava. “Desculpem, eu sei que sou boba.” Marcos apanhou um lenço,
ofereceu-o a Zoé. “Pode chorar, prima. Eu sei que vocês estão sendo
maravilhosas.” Marcos ajudou-as a levar as malas para a barraca mas foi
impedido de entrar pela enfermeira-chefe. “Homem não entra nessas barracas,
capitão, principalmente se for um oficial bonitão.” “Não sabia que era bonitão,
tenente Elza.” “Sua fama corre desenfreada como um garanhão pelas enfermarias,
capitão Marcos, e eu tenho que zelar pela reputação das minhas moças. Diga-me
uma coisa, capitão: como oficial de ligação, que inconfidência o senhor pode
fazer a pessoas tão famintas de novidades?” “O Ministro da Guerra vem aí, fazer
uma visita ao front.” “Essa já sabíamos,
capitão. Conte outra.” “Churchill manca da perna direita.” “O que?” “Winston
Churchill, o grande estadista, visitou nossas tropas na semana passada. Foi uma
grande honra. Ele manca da perna direita. Ele passou nossas tropas em revista. O
velhinho caminha apoiado numa bengala.” “Grande novidade, capitão, obrigado. E
vá ver se estou na esquina, por favor.” E afastou-se em passos rápidos, sumindo
no tumulto dos soldados e enfermeiras que iam e vinham no lusco fusco. “É
bonitinha, mas não tem senso de humor” pensou Marcos, quando viu suas amigas
saírem da barraca. “Vocês estão muito bem, meninas, estão lindas. Parece que
vão para um baile no Copa.” “Capitão Marcos, o senhor é um grande mentiroso”
disse Dulce “estamos horrorosas.” “Acabamos de chegar de seis horas de viagem,
por uma estrada que era um suplício” disse Zoé. “Muito trabalho nos hospitais
em Nápoles?” “Chegamos um dia antes do 1º- Escalão e trabalho não faltou desde
o momento em que ele desembarcou. Nada menos que 300 homens foram diretamente
de bordo para os dois hospitais.” “Cruzes.” “E isso que um número enorme foi
mandado para o Hospital de Venéreas.” “Mas lá não tem enfermeiras” disse
Virginia, corando. “Ainda bem” disse Marcos, e todos riram. “Onde você está,
Marcos?” “Por enquanto em Pisa, pertinho daqui, 40 quilômetros. Bom hotel, bons
restaurantes. Vou sequestrar vocês um dia desses e vamos comer num restaurante
fantástico que eu descobri.” “E visitar a Torre.” “Naturalmente.” “Tenho amigos
lá. A Aviação vai se instalar em Pisa brevemente, e o tenente Torres está lá
organizando a chegada. Mas isso é segredo militar, gurias, é só para saberem
que o queridinho das moças, o heroico capitão aviador Torres está perto.” As
três riram com prazer, lembrando do tenente Torres, mas a inquietação que
pairava sobre o Hospital, com a ameaça de chuva e os relâmpagos distantes,
pareceu de repente desabrochar num tumulto de ruídos e buzinaços e ordens em
voz urgente. Se aproximava um comboio de ambulâncias. Elza apareceu. “É um
regimento de infantaria americano, só de negros, o 370.” A enfermaria de choque
se preparou para o desembarque dos feridos, e á medida que as portas das
ambulâncias eram abertas o ar começou a se saturar do som de gemidos e gritos
de dor. Marcos percebeu a transformação nas suas três amigas. Elas rapidamente
adotaram atitude profissional. Com rapidez, mas sem alarme, posicionaram-se
para receber as macas. Elza falava com o médico americano. Parecia contrariada.
Aproximou-se de Marcos. “A coisa foi feia” ela disse. “São mais de 60 feridos,
e talvez a metade já sem vida.” Tomou o pulso de um soldado que era
desembarcado numa maca, olhou para Marcos e sacudiu a cabeça. “Este se foi.”
Marcos notou que a enfermeira-chefe era bonita, uma beleza nordestina, morena e
com olhos de onça. “Sabe o que esse médico idiota me disse? Que esses soldados
são covardes, que eles bateram em retirada e que mereceram o que aconteceu.”
Estava chocada, pálida, e com raiva. Marcos tentou dizer alguma coisa. “Os
americanos são um povo bastante racista, tenente Elza, sabemos disso.”
“Sabemos, mas é repugnante falar assim de feridos.” “Tenente Elza” chamou
Virginia “acho que temos um brasileiro aqui.” Elza e Marcos aproximaram-se.
Numa maca estava um negro enorme, com a calça rasgada e uma bandagem na coxa.
Curvaram-se sobre ele. “Praça Bandeira” disse o negro “fui atingido, mas o sargento
Nilson me resgatou. Devo minha vida para ele.” “Muito bem, soldado, vamos tomar
conta de você” disse Elza. “Tá sentindo dor no ferimento?” “Não senhora, não
está doendo mais, me deram uma injeção e eu tô leve como uma pluma.” “Onde você
estava, soldado?” perguntou Marcos. “Monte Prano, senhor. Fiquei cara a cara
com os alemães, levei o maior susto da minha vida, mas acho que eles também
levaram. Nunca viram de perto um negrão tão feio como eu.” A enfermeira Elza
disse: “Você é um negrão muito bonito, soldado, e nós vamos tomar conta de
você. Levem ele para a enfermaria.” Dulce e Zoé acompanharam a maca entrando na
grande barraca de lona, Elza voltou-se para Marcos. “Pois é capitão, os
americanos são racistas, mas os feridos deles, quando desembarcam no Hospital
já vem com a Purple Heart no peito. Os nossos, se querem uma medalha, tem que
requerer por escrito. Isso não é uma humilhação?” O capitão Marcos ficou
calado. A enfermeira-chefe Elza, além de bonitinha e carrancuda, era mulher de
caráter. Seria interessante tornar a vê-la.
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