32.
O general Von
Gablez contempla suas mãos brancas e longas e sussurra. “Há muitos negros?”
“Boa parte deles são negros, general, mas nem todos. A maioria são mestiços” respondeu
o coronel Pfeffer. O general Von Gables suspira. “Agora lutamos contra
mestiços... que guerra! Chegou o relatório?” “Neste momento, general.” “Algo
interessante?” “Como previmos, o ataque foi entregue aos brasileiros.” “O Mark
Clark é, como eu pensava, um comandante previsível. É lógico que entregariam o
comando aos brasileiros agora que não tem mais o Belvedere.” “Temos também o
dossiê dos brasileiros.” “Alguma novidade?” “Não, senhor. Tudo que está aqui já
sabemos. Diz que o Moraes tem o desprezo dos americanos, e, ao que parece,
também dos brasileiros. Acreditamos que os americanos esperavam um tipo de
caudilho indiático, de bigodão, espalhafatoso. Diz que o Moraes é tímido,
pequeno, sem carisma. O Crittenberg riu dele. Chamou-o de velho, mas o Vernon,
diplomaticamente, não traduziu.” “Esse folclore não me interessa, Pfeffer. E
sobre os outros?” “Aqui diz que o Zenóbio é voluntarioso, vaidoso e ambicioso.”
“Parece a descrição de um dos nossos.” Os doze oficiais
em torno a mesa riram polidamente. Cada um dos doze oficiais tinha medo do
general Von Gablez. “O perfil do general Cordeiro é mais complexo, general. Ele
é do tipo cerebral, gosta de intrigas, foi diversas vezes conspirador. Tem vocação
de político. Foi inclusive governador nomeado de uma província do sul.”
“Estado, Pfeffer, no Brasil chamam de estados. O Rio Grande do Sul. Tenho
parentes lá.” “Tanto Zenóbio como Cordeiro são soldados experimentados em
guerras, pelo menos em guerras civis, dessas que abundam por lá.” “Nossa
Inteligência presume que o ponto principal do ataque será no flanco de Abetaia,
Zolfa e Fálfare. Se eles se estabelecerem nesses lugares poderão tentar uma
manobra mais contundente contra nós, comandante.” “Eles não vão se estabelecer
por lá, coronel Pfeffer, porque não vamos permitir.” “Sim, senhor.” “Agora vou
descansar um pouco. Me chamem se houver novidades. E vamos fortalecer a
artilharia contra Abetaia. Não podemos perder o controle de Abetaia.” “Já
ouviram falar de Abetaia?” perguntou o capitão Hézio, abaixado contra o
barranco, trêmulo de frio, observando com certa surpresa, mas sem comentar, que
a chuva tinha parado. “Abetaia é um aglomerado de casas miseráveis. Um dia
foram lares confortáveis e aquecidos, mas agora quase todas as casas foram
destroçadas pelas bombas, e para a gente chegar lá vai ter que passar por uma
espécie de vale, uma depressão funda no terreno, e esse é nosso calcanhar de
Aquiles” disse Hézio para o tenente Roberto e o sargento Amílcar. “Nosso o
quê?” estranhou o sargento. “Nosso ponto fraco” explicou o tenente. “Aquiles
era um deus grego cujo ponto vulnerável era o calcanhar.” “Conheço essa
história, tenente, não sou tão burro assim, o senhor me desculpe, mas o que eu
estranhei é porque esse lugar tem que
ser nosso calcanhar de Aquiles se a gente pode muito bem dar uma volta maior e
evitar esse corredor.” “Não temos como evitar esse corredor, sargento” disse o
capitão Hézio, “as ordens são claras. Ou tomamos Abetaia ou o flanco esquerdo
fica desguarnecido e aí toda operação vai por água a abaixo.” “Não podiam
inventar uma tática mais flexível, capitão? O bombardeio já tá forte e nós
ainda nem começamos a subida de verdade.” “Quando a gente voltar você tem
permissão para ir questionar o Estado Maior, sargento, mas por enquanto vamos
seguir a hierarquia e subir por essa trilha o mais rápido que a gente puder,
porque o bombardeio vai ser fogo.” “Tô sentindo.” “Então mande a tropa se
mover.” E o capitão Hézio deu o exemplo e galgou o barranco escorregadio,
olhando o relógio, 6h30min, onde andará o pessoal da Primeira? O pessoal da
Primeira Companhia rastejava na lama a 800 metros dali, totalmente silenciosos,
e o capitão Bueno, que detinha o comando, pensava que precisava afastar esse
pressentimento sombrio que persistia em se agarrar em alguma parte de sua
coragem. Pressentimentos sombrios são o
pior inimigo do soldado antes de uma batalha e ele estava no comando e não
podia sucumbir numa armadilha tão banal dessas, principalmente depois do fiasco
da debandada do Onze. O fiasco da debandada do Onze ia ficar grudado nas suas
vidas para sempre. Isso soava como aquelas frases idiotas com que os cadetes
eram bombardeados na academia, mas era a pura verdade. A honra do regimento só
seria lavada com sangue. Outra frase idiota, mas pura verdade. Eles debandaram
não foi só por medo. O medo e a coragem são separados por uma linha fininha que
quase não se vê. Atacar e fugir é quase a mesma coisa, só muda o ânimo. Naquela
noite o ânimo era uma boa bosta. Estavam mal preparados. Psicologicamente mal
preparados. Além de que estavam mal preparados de fato. Pronto. Começou a se justificar. E ele nem estivera lá na
debandada. Não pode começar a se justificar. “Capitão.” Estremeceu. Ao lado
dele o praça Quevedo. Esse praça tinha sido manejado para sua companhia com centenas
de outros do Sampaio para ajudar a dar estabilidade moral para a Primeira.
Outra humilhação. “Sim?” “Estamos indo direto para o corredor.” “Que corredor,
praça?” “Bueno, o pessoal chama de corredor da morte.” O capitão Bueno tornou a
estremecer, de súbita raiva contra esse rapaz desconhecido, que o encarava com
um olhar dissimulado entre o deboche e a seriedade. “Que palhaçada é essa?” “É
como chamam o lugar, capitão.” “Qual é teu nome, praça?” “Quevedo, capitão.”
“Olha aqui, Quevedo, escuta bem: se tu abrir a boca outra vez pra fazer
comentários idiotas como esse eu vou dar um tiro bem no meio da tua testa,
ouviu? E se por acaso tu ficar vivo, eu te mando a conselho de guerra por
covardia, ouviu?” “Sim, senhor, capitão, mas por covardia vai ser difícil me
condenar porque eu sou de Uruguaiana.” Uma mão poderosa agarrou o soldado
Quevedo pelo pescoço e quase o ergueu no ar. O sargento Nilson aproximou seus
olhos fuzilando do rosto do praça Quevedo. “Olhaqui, estupor, cala a boca e
sobe quieto ou eu juro pela minha mãe como vou te ferrar.” No Posto de Comando
o general Mascarenhas de Moraes procurou o foco certo do binóculo, viu vultos
se arrastando no meio da neblina que crescia. “Estão subindo, Brayner, estão
subindo por enquanto, mas a cerração aumenta cada vez mais. Não vamos ter apoio
da aviação.”
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