quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Corredor da Morte

32.

O general Von Gablez contempla suas mãos brancas e longas e sussurra. “Há muitos negros?” “Boa parte deles são negros, general, mas nem todos. A maioria são mestiços” respondeu o coronel Pfeffer. O general Von Gables suspira. “Agora lutamos contra mestiços... que guerra! Chegou o relatório?” “Neste momento, general.” “Algo interessante?” “Como previmos, o ataque foi entregue aos brasileiros.” “O Mark Clark é, como eu pensava, um comandante previsível. É lógico que entregariam o comando aos brasileiros agora que não tem mais o Belvedere.” “Temos também o dossiê dos brasileiros.” “Alguma novidade?” “Não, senhor. Tudo que está aqui já sabemos. Diz que o Moraes tem o desprezo dos americanos, e, ao que parece, também dos brasileiros. Acreditamos que os americanos esperavam um tipo de caudilho indiático, de bigodão, espalhafatoso. Diz que o Moraes é tímido, pequeno, sem carisma. O Crittenberg riu dele. Chamou-o de velho, mas o Vernon, diplomaticamente, não traduziu.” “Esse folclore não me interessa, Pfeffer. E sobre os outros?” “Aqui diz que o Zenóbio é voluntarioso, vaidoso e ambicioso.” “Parece a descrição de um dos nossos.” Os doze oficiais em torno a mesa riram polidamente. Cada um dos doze oficiais tinha medo do general Von Gablez. “O perfil do general Cordeiro é mais complexo, general. Ele é do tipo cerebral, gosta de intrigas, foi diversas vezes conspirador. Tem vocação de político. Foi inclusive governador nomeado de uma província do sul.” “Estado, Pfeffer, no Brasil chamam de estados. O Rio Grande do Sul. Tenho parentes lá.” “Tanto Zenóbio como Cordeiro são soldados experimentados em guerras, pelo menos em guerras civis, dessas que abundam por lá.” “Nossa Inteligência presume que o ponto principal do ataque será no flanco de Abetaia, Zolfa e Fálfare. Se eles se estabelecerem nesses lugares poderão tentar uma manobra mais contundente contra nós, comandante.” “Eles não vão se estabelecer por lá, coronel Pfeffer, porque não vamos permitir.” “Sim, senhor.” “Agora vou descansar um pouco. Me chamem se houver novidades. E vamos fortalecer a artilharia contra Abetaia. Não podemos perder o controle de Abetaia.” “Já ouviram falar de Abetaia?” perguntou o capitão Hézio, abaixado contra o barranco, trêmulo de frio, observando com certa surpresa, mas sem comentar, que a chuva tinha parado. “Abetaia é um aglomerado de casas miseráveis. Um dia foram lares confortáveis e aquecidos, mas agora quase todas as casas foram destroçadas pelas bombas, e para a gente chegar lá vai ter que passar por uma espécie de vale, uma depressão funda no terreno, e esse é nosso calcanhar de Aquiles” disse Hézio para o tenente Roberto e o sargento Amílcar. “Nosso o quê?” estranhou o sargento. “Nosso ponto fraco” explicou o tenente. “Aquiles era um deus grego cujo ponto vulnerável era o calcanhar.” “Conheço essa história, tenente, não sou tão burro assim, o senhor me desculpe, mas o que eu estranhei é porque esse lugar tem que ser nosso calcanhar de Aquiles se a gente pode muito bem dar uma volta maior e evitar esse corredor.” “Não temos como evitar esse corredor, sargento” disse o capitão Hézio, “as ordens são claras. Ou tomamos Abetaia ou o flanco esquerdo fica desguarnecido e aí toda operação vai por água a abaixo.” “Não podiam inventar uma tática mais flexível, capitão? O bombardeio já tá forte e nós ainda nem começamos a subida de verdade.” “Quando a gente voltar você tem permissão para ir questionar o Estado Maior, sargento, mas por enquanto vamos seguir a hierarquia e subir por essa trilha o mais rápido que a gente puder, porque o bombardeio vai ser fogo.” “Tô sentindo.” “Então mande a tropa se mover.” E o capitão Hézio deu o exemplo e galgou o barranco escorregadio, olhando o relógio, 6h30min, onde andará o pessoal da Primeira? O pessoal da Primeira Companhia rastejava na lama a 800 metros dali, totalmente silenciosos, e o capitão Bueno, que detinha o comando, pensava que precisava afastar esse pressentimento sombrio que persistia em se agarrar em alguma parte de sua coragem.  Pressentimentos sombrios são o pior inimigo do soldado antes de uma batalha e ele estava no comando e não podia sucumbir numa armadilha tão banal dessas, principalmente depois do fiasco da debandada do Onze. O fiasco da debandada do Onze ia ficar grudado nas suas vidas para sempre. Isso soava como aquelas frases idiotas com que os cadetes eram bombardeados na academia, mas era a pura verdade. A honra do regimento só seria lavada com sangue. Outra frase idiota, mas pura verdade. Eles debandaram não foi só por medo. O medo e a coragem são separados por uma linha fininha que quase não se vê. Atacar e fugir é quase a mesma coisa, só muda o ânimo. Naquela noite o ânimo era uma boa bosta. Estavam mal preparados. Psicologicamente mal preparados. Além de que estavam mal preparados de fato. Pronto. Começou a se justificar. E ele nem estivera lá na debandada. Não pode começar a se justificar. “Capitão.” Estremeceu. Ao lado dele o praça Quevedo. Esse praça tinha sido manejado para sua companhia com centenas de outros do Sampaio para ajudar a dar estabilidade moral para a Primeira. Outra humilhação. “Sim?” “Estamos indo direto para o corredor.” “Que corredor, praça?” “Bueno, o pessoal chama de corredor da morte.” O capitão Bueno tornou a estremecer, de súbita raiva contra esse rapaz desconhecido, que o encarava com um olhar dissimulado entre o deboche e a seriedade. “Que palhaçada é essa?” “É como chamam o lugar, capitão.” “Qual é teu nome, praça?” “Quevedo, capitão.” “Olha aqui, Quevedo, escuta bem: se tu abrir a boca outra vez pra fazer comentários idiotas como esse eu vou dar um tiro bem no meio da tua testa, ouviu? E se por acaso tu ficar vivo, eu te mando a conselho de guerra por covardia, ouviu?” “Sim, senhor, capitão, mas por covardia vai ser difícil me condenar porque eu sou de Uruguaiana.” Uma mão poderosa agarrou o soldado Quevedo pelo pescoço e quase o ergueu no ar. O sargento Nilson aproximou seus olhos fuzilando do rosto do praça Quevedo. “Olhaqui, estupor, cala a boca e sobe quieto ou eu juro pela minha mãe como vou te ferrar.” No Posto de Comando o general Mascarenhas de Moraes procurou o foco certo do binóculo, viu vultos se arrastando no meio da neblina que crescia. “Estão subindo, Brayner, estão subindo por enquanto, mas a cerração aumenta cada vez mais. Não vamos ter apoio da aviação.”

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