35.
“Os batalhões
estão regressando á base de partida” confirmou o coronel Castelo Branco “era
uma decisão inevitável.” O general Crittenberg
mostra um tênue sorriso de desprezo. “Inevitável?” e dirigindo-se
diretamente a Mascarenhas: “O senhor empregou sua reserva?” “Não. Nem poderia,
sem sua permissão direta.” “Como assim?” “Está escrito na Ordem Geral de
Operações emitida por seu comando, general Crittenberg.”. O general americano
olhou para o major seu secretário que confirmou com a cabeça. “Qual a dotação
de munição que lhe foi fornecida para esta operação?” “Recebi 12 mil tiros de
todos os calibres, de artilharia e morteiros.” “Quanto gastou, até este
momento?” Mascarenhas olhou para Brayner, Brayner consultou sua caderneta de
anotações. “Pelo informado, gastamos cerca de 4 mil tiros, general.”
Crittenberg não conteve um largo gesto de impaciência, que alertou todos em
redor. Sua voz se elevou: “Se o senhor não empregou ainda sua reserva e dispõe
de um saldo de 8 mil tiros de artilharia e de morteiros, e sendo ainda menos de
15 horas, decide renunciar a continuar a atacar, outras razões mais fortes
devem existir para que desista do cumprimento da missão.” No silêncio da sala
se ouviram os ruídos distantes das explosões, esporádicas mas ainda
assustadoras. O ministro Salgado Filho depositou sua xícara de café na mesa
rústica e ficou olhando para ela um instante antes de erguer a cabeça e ver a
face crispada de Mascarenhas. “General Crittenberg” disse o general Mascarenhas
pausadamente e num tom de voz contido “de fato, uma sequência de fatores
negativos, inesperados e de alguma maneira ainda não explicados, está influindo
para que o moral de certa parte da tropa se sinta abalada, e acredito que com
tendência para piorar.” Nesse instante a figura enorme de Zenóbio entrou no
recinto, trazendo ainda no uniforme o cheiro e a sensação física da batalha que
estava comandando. “De minha parte, general Mascarenhas e meus senhores, posso
afirmar que o moral de minha infantaria não sofreu qualquer arranhão. Peço
permissão para discordar quanto a sua afirmação, comandante, de que não se
cumpriu a missão por fracasso moral da infantaria. Outros fatores podem e devem
ser encontrados, menos este.” O general Cordeiro
de Farias acabara também de entrar, exalando frio do seu capote molhado, dirigiu-se
á mesa de café e se serviu. “De minha parte, senhores, também posso garantir de que o moral da
artilharia está intacto. Aconteceu muita coisa que necessita ser explicada
antes de se falar em perda de moral.” Os três generais brasileiros se
entreolharam, surpresos com eles mesmos. O general americano apontou com o dedo
seu relógio de pulso. “Muito bem. Vamos nos reunir as 17 horas, no QG avançado
do IV Corpo, em Taviano, para retomar a discussão deste assunto. Com licença.”
Saiu pomposamente, talvez mais do que o necessário. Os americanos tinham
generais teatrais e espalhafatosos como Patton e Mac Arthur, entretanto
Crittenberg era controlado e os brasileiros sentiram que estavam na borda de um
abismo. Os americanos não queriam dividir fracassos. O ministro Salgado Filho
se aproximou de Cordeiro de Farias e apertou sua mão, no momento em que o
capitão Bueno olhava ao redor tentando descobrir onde estava. Ele desconhecia o
que estava acontecendo com o ataque principal. Onde estariam os dois pelotões
de primeiro escalão que tinham obrigação de lhe dar apoio? Onde estaria ferido?
A dor ainda era apenas uma ameaça e só o de que tinha certeza era que respirava
mal, algo acontecera com seu pulmão esquerdo. Lembrava que o rádio de mão fora
inutilizado pelo deslocamento de ar causado por uma explosão logo que chegaram
naquele corredor, o corredor como dissera aquele soldado atrevido, o corredor
da morte, e é onde estava, no tal corredor da morte, sem comunicação, cabos
telefônicos partidos, vários corpos caídos ali perto, e a sensação de algo
molhado na barriga, levou a mão trêmula até ali, olhou para ela, sangue, a vida
ia se escoando devagarinho daquele buraco em sua barriga e em volta o silêncio
e essa farinha bem fininha que cai do céu e faz cócegas em seu nariz e vai
deixando tudo delicadamente alvo, sua mulher ia gostar de ver. E ali no
observatório a 600 metros do corpo imóvel do capitão Bueno, precariamente
protegidos, o major Jacy e o coronel Almeida apontam o binóculo e vão contando
os corpos, cinco, seis, oito, dez, doze... “Que desastre, Almeida, o que deu
errado?” “Muita coisa, major, mas eu acho que o sexto corpo á direita é do
capitão Bueno.” “Sim, é ele mesmo.” “Eu tive a impressão que ele está se
mexendo.” “Me parece imóvel, completamente imóvel.” “Eu vi sua mão se mexer.”
“Então está vivo. Não podemos deixar ele lá. Vai congelar. Está caindo essa
saraiva, ele vai congelar se não for resgatado.” O major comandante e o coronel
rastejaram na lama para fora do abrigo e se aproximaram da trilha por onde
descia cautelosa a longa fila de pracinhas, abatidos, receosos, esperando os
obuses que tinham temporariamente cessado. O major Jacy fez um gesto para o
soldado mais próximo, ele se aproximou. Era negro e forte, com ombros largos de
estivador. “Soldado” disse o major Jacy “teu capitão está caído ali na
terra-de-ninguém, está vivo, dá uma olhada.” O soldado se surpreendeu , mas
apanhou o binóculo e olhou com vagar. “Sim” disse ele, “é o capitão Bueno.”
“Ele está se mexendo?” “Me parece que não, major.” “Eu vi ele se mexer,
soldado” disse o coronel Almeida, “eu sei que ele está vivo.” O soldado negro
baixou o binóculo e olhou para os dois oficiais, com desconfiança. “Soldado”
disse o major “tens coragem de voltar á terra-de-ninguém e puxar o capitão para
uma vala onde possa ser resgatado mais tarde?” O soldado sorriu sem jeito.
“Coragem eu tenho, major, só não sei se consigo.” “Mas você quer tentar?” O
soldado coçou o rosto, mostrou os dentes brancos, alargando o sorriso. “Bom,
acho que mal não faz.” “Vou providenciar cobertura” disse Almeida, “vou mandar
fogo cerrado pra cima deles, enquanto você se aproxima.” “Sim, senhor.” “Então,
vai. E boa sorte.” O soldado negro fez uma continência vacilante, olhou para o
corpo do capitão Bueno lá longe, caído entre vários corpos, com aquela coisa
fininha, fria e leve derramando sobre ele e suspirou
fundo. Merda, pensou, merda, merda e merda. Estava quase salvo, quase salvo,
quase salvo. Estava voltando para a base. Estava salvo. O soldado negro sentiu
o tapa do coronel no seu ombro, vai, e mergulhou na direção da terra de
ninguém, abaixado, rastejando, procurando as reentrâncias do terreno, as valas
e os barrancos. “Como é o nome dele, Almeida?” “Não perguntei.” Olharam para o
soldado que se afastava cada vez mais, na direção do corpo caído do capitão
Bueno.
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