“Não aconteceu
um massacre porque o capitão Ramagem mandou o pessoal bater em retirada. Foi a
única coisa que ele pode fazer para salvar seus homens.” O refeitório do
hospital estava lotado, era hora do jantar e todos falavam em voz baixa. “Mas o
que houve mesmo?” insistiu Elza, com seu olhar penetrante, “ouvi falar de que
houve desleixo, tinham tomado as posições e não fizeram o mínimo para se
precaver contra um contra-ataque.” O capitão Marcos estava sentado entre
Virginia e Dulce, com Zoé e Elza no outro lado da mesa, á sua frente. “Eu não
estava lá para saber exatamente o que houve, tenente Elza. Eu estava em meu
quarto de hotel, com fogo na lareira e uma taça de vinho na mão. Falar vão
falar muito e inventar uma série de medidas que deveriam ser tomadas, mas só os
que estavam lá, debaixo da chuva e no meio do fogo, é que sabem exatamente o
que aconteceu.” “O que eu sei” disse Elza “é que cabeças vão rolar. Depois do
capitão Ramagem outras companhias o imitaram e bateram em retirada.” “Não foi
uma retirada, tenente, os homens voltaram ás suas posições de origem.” “Qual a
diferença?” perguntou Verônica. “Retirada é abandonar tudo e...” Marcos
interrompeu a fala porque alguém batia palmas com força na entrada do refeitório.
“Atencion, please, atencion, please!” Era um major americano, e havia certa
pressa na sua voz. “Todos os oficiais em reunião urgente no PC. Os demais
comecem a preparação para evacuar o hospital imediatamente.” “O que está
acontecendo?” perguntou Zoé, olhos assustados. “Vamos evacuar imediatamente”
disse Elza, que falava um excelente inglês. “Porque não sei, ele não disse.” Com pressa,
mas com um sincronismo perfeito, as longas mesas foram ficando vazias. “Acho
que vão nos bombardear” gemeu Zoé. “Posso fazer alguma coisa?” perguntou Marcos
para a tenente Elza. “Pode voltar para sua lareira no seu quarto de hotel,
capitão, aqui atendemos mais de mil pacientes e não precisamos de ninguém para
atrapalhar.” Marcos não esperava a dureza da resposta, mas conseguiu sorrir,
fez uma breve continência. “Vamos tornar a conversar, tenente, olho no olho.”
Afastou-se depois de abanar para as suas três amigas, que se paralisaram
estupefatas. “Comecem a preparar para evacuar” disse Elza para as três
enfermeiras, “eu vou ao PC saber o que está havendo.” Dulce, Zoé e Virginia
correram para a enfermaria dos brasileiros. O hospital abrigava mais de mil
pacientes, a maioria deles americanos, e com os médicos, enfermeiras e pessoal
de apoio a sua população somava mais de 3 mil pessoas. Por uma das alamedas dos
hospitais aproximava-se um comboio de caminhões enormes, as luzes acesas,
buzinando sem parar para abrir caminho. “O que está acontecendo?” exclamavam as
pessoas. Eram caminhões anfíbios, usados pelas tropas para atravessar rios.
“Levem os pacientes para os caminhões!” gritavam vozes. Algumas luzes se
apagaram e ouviram-se as vozes de susto. Elza apareceu de repente. “Meninas,
vamos trabalhar com pressa mas sem correria! Não quero ver ninguém histérica!”
“O que está havendo afinal?” gritou Dulce, “o que eles disseram?” “Os alemães
explodiram a represa nas montanhas, abriram as comportas do caminho e o rio
está descendo em direção a nós, vem levando tudo pelo caminho, precisamos sair
daqui senão também vamos ser levados.” “Nossa Senhora!” “O rio já arrasou
várias aldeias, disseram que vai levar pelo menos duas horas para chegar até
nós, mas temos que colocar nossos pacientes nesses caminhões e salvar tudo que
pudermos de medicamentos e roupas e tudo que for útil. Mexam-se, suas vacas
grã-finas!” Elza estava há dois meses na
guerra, tinha padecido nas mãos das instrutoras americanas e aprendera com
muitas lágrimas escondidas á noite na barraca que aquele era um negócio duro,
onde o trabalho delas era neutralizar a dor, motivo daquele jogo sinistro, e
não podia dar moleza nem ser sentimental ou sofreria ainda mais e os que
dependiam dos seus serviços também. Adotar a postura de durona foi apenas uma
espécie de maquiagem na sua personalidade, pois sabia que já era assim desde
criança, e agora precisava mais do que nunca desse atributo. Os caminhões
anfíbios foram se enchendo de feridos, mutilados e doentes. Havia uma grande
enfermaria só com casos graves de soldados com distúrbios psicológicos. Alguns
desses se recusavam a entrar nos caminhões. A retirada organizada ás vezes
estremecia com surtos breves de tumultos e empurrões, mas pouco a pouco os
caminhões foram se enchendo e começaram a se afastar. Tudo era levado para um
prédio em construção distante quatro quilômetros dali, num lugar alto, onde as
águas não chegariam. Pouco a pouco, sobre o rumor do hospital em retirada,
sobre o ronco dos motores dos caminhões e dos jipes e das vozes e dos lamentos,
começou a se ouvir um surdo e assustador coro de fantasmas, uma espécie de
ladainha de mortos, uma sinfonia que por um instante paralisou a todos e dirigiu
os olhares para o mesmo ponto. As águas do rio Arno chegavam. Com uma força e
uma rapidez que ninguém ali esperava, as águas escuras avançavam com avidez,
levando de roldão barracas, camas, cadeiras, armários, explodindo contra os
veículos, derrubando pessoas e arrastando-as, gerando um medo e um pânico que
ainda não conheciam. Elza e suas três
enfermeiras se enfiaram dentro de um jipe onde já estavam quatro soldados. As águas
bateram neles com força, o jipe sacudiu e estremeceu, mas resistiu e as águas
foram passando. “A correnteza está perdendo a força” disse o cabo na direção do
jipe. “Me disseram que lá na encosta da montanha ela arrastou casas e
caminhões, graças a Deus o hospital está bem longe.” Passavam boiando sapatos,
panelas, bolsas, guarda-chuvas. Todos estavam encharcados e agora tomados de
violento frio. “Não vamos ficar paradas” comandou Elza. “Vamos recuperar tudo
que for possível. A documentação do hospital ficou lá dentro e nós vamos voltar
lá e salvar o que for possível salvar.” As quatro enfermeiras saltaram do jipe.
A água chegou até acima de seus joelhos, sentiram nas coxas a força e o ímpeto
que queria arrastá-las, mas elas enfrentaram a correnteza e avançaram
tropeçando, de mãos dadas, em direção a sua enfermaria.
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