quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Pânico no Hospital de Campanha

25.

“Não aconteceu um massacre porque o capitão Ramagem mandou o pessoal bater em retirada. Foi a única coisa que ele pode fazer para salvar seus homens.” O refeitório do hospital estava lotado, era hora do jantar e todos falavam em voz baixa. “Mas o que houve mesmo?” insistiu Elza, com seu olhar penetrante, “ouvi falar de que houve desleixo, tinham tomado as posições e não fizeram o mínimo para se precaver contra um contra-ataque.” O capitão Marcos estava sentado entre Virginia e Dulce, com Zoé e Elza no outro lado da mesa, á sua frente. “Eu não estava lá para saber exatamente o que houve, tenente Elza. Eu estava em meu quarto de hotel, com fogo na lareira e uma taça de vinho na mão. Falar vão falar muito e inventar uma série de medidas que deveriam ser tomadas, mas só os que estavam lá, debaixo da chuva e no meio do fogo, é que sabem exatamente o que aconteceu.” “O que eu sei” disse Elza “é que cabeças vão rolar. Depois do capitão Ramagem outras companhias o imitaram e bateram em retirada.” “Não foi uma retirada, tenente, os homens voltaram ás suas posições de origem.” “Qual a diferença?” perguntou Verônica. “Retirada é abandonar tudo e...” Marcos interrompeu a fala porque alguém batia palmas com força na entrada do refeitório. “Atencion, please, atencion, please!” Era um major americano, e havia certa pressa na sua voz. “Todos os oficiais em reunião urgente no PC. Os demais comecem a preparação para evacuar o hospital imediatamente.” “O que está acontecendo?” perguntou Zoé, olhos assustados. “Vamos evacuar imediatamente” disse Elza, que falava um excelente inglês.  “Porque não sei, ele não disse.” Com pressa, mas com um sincronismo perfeito, as longas mesas foram ficando vazias. “Acho que vão nos bombardear” gemeu Zoé. “Posso fazer alguma coisa?” perguntou Marcos para a tenente Elza. “Pode voltar para sua lareira no seu quarto de hotel, capitão, aqui atendemos mais de mil pacientes e não precisamos de ninguém para atrapalhar.” Marcos não esperava a dureza da resposta, mas conseguiu sorrir, fez uma breve continência. “Vamos tornar a conversar, tenente, olho no olho.” Afastou-se depois de abanar para as suas três amigas, que se paralisaram estupefatas. “Comecem a preparar para evacuar” disse Elza para as três enfermeiras, “eu vou ao PC saber o que está havendo.” Dulce, Zoé e Virginia correram para a enfermaria dos brasileiros. O hospital abrigava mais de mil pacientes, a maioria deles americanos, e com os médicos, enfermeiras e pessoal de apoio a sua população somava mais de 3 mil pessoas. Por uma das alamedas dos hospitais aproximava-se um comboio de caminhões enormes, as luzes acesas, buzinando sem parar para abrir caminho. “O que está acontecendo?” exclamavam as pessoas. Eram caminhões anfíbios, usados pelas tropas para atravessar rios. “Levem os pacientes para os caminhões!” gritavam vozes. Algumas luzes se apagaram e ouviram-se as vozes de susto. Elza apareceu de repente. “Meninas, vamos trabalhar com pressa mas sem correria! Não quero ver ninguém histérica!” “O que está havendo afinal?” gritou Dulce, “o que eles disseram?” “Os alemães explodiram a represa nas montanhas, abriram as comportas do caminho e o rio está descendo em direção a nós, vem levando tudo pelo caminho, precisamos sair daqui senão também vamos ser levados.” “Nossa Senhora!” “O rio já arrasou várias aldeias, disseram que vai levar pelo menos duas horas para chegar até nós, mas temos que colocar nossos pacientes nesses caminhões e salvar tudo que pudermos de medicamentos e roupas e tudo que for útil. Mexam-se, suas vacas grã-finas!”  Elza estava há dois meses na guerra, tinha padecido nas mãos das instrutoras americanas e aprendera com muitas lágrimas escondidas á noite na barraca que aquele era um negócio duro, onde o trabalho delas era neutralizar a dor, motivo daquele jogo sinistro, e não podia dar moleza nem ser sentimental ou sofreria ainda mais e os que dependiam dos seus serviços também. Adotar a postura de durona foi apenas uma espécie de maquiagem na sua personalidade, pois sabia que já era assim desde criança, e agora precisava mais do que nunca desse atributo. Os caminhões anfíbios foram se enchendo de feridos, mutilados e doentes. Havia uma grande enfermaria só com casos graves de soldados com distúrbios psicológicos. Alguns desses se recusavam a entrar nos caminhões. A retirada organizada ás vezes estremecia com surtos breves de tumultos e empurrões, mas pouco a pouco os caminhões foram se enchendo e começaram a se afastar. Tudo era levado para um prédio em construção distante quatro quilômetros dali, num lugar alto, onde as águas não chegariam. Pouco a pouco, sobre o rumor do hospital em retirada, sobre o ronco dos motores dos caminhões e dos jipes e das vozes e dos lamentos, começou a se ouvir um surdo e assustador coro de fantasmas, uma espécie de ladainha de mortos, uma sinfonia que por um instante paralisou a todos e dirigiu os olhares para o mesmo ponto. As águas do rio Arno chegavam. Com uma força e uma rapidez que ninguém ali esperava, as águas escuras avançavam com avidez, levando de roldão barracas, camas, cadeiras, armários, explodindo contra os veículos, derrubando pessoas e arrastando-as, gerando um medo e um pânico que ainda não conheciam.  Elza e suas três enfermeiras se enfiaram dentro de um jipe onde já estavam quatro soldados. As águas bateram neles com força, o jipe sacudiu e estremeceu, mas resistiu e as águas foram passando. “A correnteza está perdendo a força” disse o cabo na direção do jipe. “Me disseram que lá na encosta da montanha ela arrastou casas e caminhões, graças a Deus o hospital está bem longe.” Passavam boiando sapatos, panelas, bolsas, guarda-chuvas. Todos estavam encharcados e agora tomados de violento frio. “Não vamos ficar paradas” comandou Elza. “Vamos recuperar tudo que for possível. A documentação do hospital ficou lá dentro e nós vamos voltar lá e salvar o que for possível salvar.” As quatro enfermeiras saltaram do jipe. A água chegou até acima de seus joelhos, sentiram nas coxas a força e o ímpeto que queria arrastá-las, mas elas enfrentaram a correnteza e avançaram tropeçando, de mãos dadas, em direção a sua enfermaria.

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