30.
Antes de começar
a reunião com o Estado-Maior o general Mascarenhas de Moraes se recolheu por
instantes à cozinha da casa mais próxima, que estava abandonada, como todas as
outras do vilarejo na subida da montanha. Ali era onde costumava se reunir com
dois ou três oficiais de confiança e discutir os planejamentos das ações. No momento, tudo o que queria era estar
alguns momentos a sós. Ainda repercutiam em seus ouvidos as palavras ásperas de
Crittenberger, meia hora atrás, traduzidas pelo oficial de ligação, o major
Vernon Walters: “Esta é nossa última chance antes do inverno” disse
Crittenberger, “ de cruzarmos os Apeninos.
A sua divisão terá mais uma oportunidade para redimir-se dos insucessos
dos dias 24 e 25, general Moraes.” O diálogo entre os dois foi numa sala aquecida
com lareira, no Hotel Continental em Porreta Terme, quartel general da FEB. “Redimir-se?
O senhor me desculpe, mas nesses termos não posso aceitar a crítica. O
insucesso não foi só da minha divisão, como o senhor diz, general Crittenberger.”
“Não?” “Não, senhor. Foi do conjunto da operação. Ela não funcionou como um
todo.” “Como não funcionou? Pode me explicar isso?” “O apoio da Divisão
Blindada, a sua Divisão Blindada, general, não aconteceu. E a aviação, onde
andava? Ficamos isolados, general, e
diante de um inimigo fortificado.” “Pois desta vez o planejamento é seu. Poderá
usar sua artilharia e sua aviação como achar melhor.” “General, nós não somos uma tropa de
montanha. Inda estamos esperando uniformes para operar naquele terreno. Também
não recebemos todas as armas prometidas. Precisamos de mais tempo para
preparação.” “General, a ordem foi dada. Dentro de cinco horas vamos atacar
mais uma vez.” E Mascarenhas lembra com mal estar o americano se dirigindo para
a porta, parando e olhando-o com dureza: “Nas próximas dez horas queremos
cruzar a Linha Gótica e iniciar a marcha para Berlim. Com os brasileiros ou sem
os brasileiros.” Saiu, bateu a porta e assim estavam as coisas, Mascarenhas
diante de uma janela que dava para a escuridão da madrugada, uma caneca de café
frio na mão. Sentiu a presença nas suas costas, mas não se virou. Sabia que era
Brayner. “Estamos esperando pelo senhor, general.” “Já vou, Brayner, já vou.”
Despejou o café na pia. “É uma pena que esfriou. Temos que ser econômicos.”
“Sim, senhor.” “Eu o vejo taciturno, major.” “O estado das coisas me preocupa,
general.” “Tudo nesta guerra me preocupa, Brayner. Fale.” Brayner fica calado,
olhando pela janela para a noite escura, como ele fizera a pouco. “Você está
sofrendo por mim, Brayner. Isso me deixa lisonjeado.” Se aproxima dele e busca seu olhar. “Mas você
acha que eu estou sendo covarde.” “Não, mestre, nunca.” “Ou estão acha que eles
me humilham e eu não reajo. Eu não reclamo o suficiente das condições que eles
nos impõem. Brayner, raciocine comigo: para quem eu vou me queixar? Para Deus?
Estamos na guerra, Brayner, E não escolhemos o jeito que esta guerra é. Podia
ser uma guerra simples, como as nossas lá em casa, mas não é. Nossos chefes são
de outros países e sabemos que eles nos menosprezam. Eu posso alegar, está no
meu direito como soldado profissional, que não aceito essas condições para
entrar em ação. Minhas razões seriam bem aceitas, preciso defender os meus
homens. E desconfio que é isso que esperam de mim, daquele general velho e
baixinho com cara de tonto.” Brayner apanhou um cigarro, pediu licença com um
gesto, colocou-o nos lábios. “Agora me diga, Brayner: você quer que eu faça
isso?” Brayner ficou com o isqueiro aceso bem próximo do cigarro. “Você acha
que eu devo recusar a missão porque não temos a plenitude dos meios, major
Brayner?” “Não, senhor.” Você conhece alguém que queira que eu aborte o ataque,
Brayner?” “Não, senhor.” “Os praças, Brayner. O que você acha que eles pensam?
Você acha que eles vão gostar de ir para a retaguarda e ficar ouvindo para o
resto de suas vidas que não lutaram porque não tinham boas condições para isso?
Não. Não vamos nos subestimar, Brayner. Não vamos acreditar no que a Quinta Coluna
diz de nós. Nós sabemos quem somos. Vamos fazer mais sacrifícios, meu amigo...
vamos fazer mais sacrifícios, mas vamos tomar esse morro. Agora, para a reunião.” Saíram da cozinha pela
porta que dava para o pátio, respiraram o ar cada vez mais frio. Dirigiram-se
ao Posto de Comando, onde o esperavam os oficiais do Estado Maior e os generais
Zenóbio da Costa e Cordeiro de Farias. O Posto de Comando fora improvisado num
galpão, que também funcionava como estrebaria no inverno. A um canto vários
burros dormitavam junto a três vacas, aquecendo-se mutuamente. Havia uma mesa
improvisada com pranchões de madeira e um posto de rádio, com os operadores a
postos. Aquele galpão fora escolhido porque dali, com a grande porta aberta,
podia-se, quando o sol iluminasse a região, ver perfeitamente o objetivo.
Cercado de nuvens e de raios e trovões que continuavam a estalar , o Monte
Castelo parecia um grande monstro imperturbável, ignorando a inimigo e suas
preocupações. “Senhores, mais uma vez recebemos a missão de tomar o Monte
Castelo. Desta vez o comando do V Exército confiou em nós e nos deu plena
autonomia para planejarmos a investida. Se vencermos, acho que poderemos passar
o Natal em casa. O próprio general Mark Clark virá ao clarear do dia para nos
dar as ordens finais de batalha.” “Que
venha” disse rispidamente Cordeiro de Farias, “ele sabe muito bem que não
tomaremos Monte Castelo.” Todos os rostos mostraram surpresa. “Por que o senhor diz isso, general Cordeiro?”
perguntou Mascarenhas com imensa cautela. “Porque acabamos de receber a
notícia, comandante, de que os americanos foram desalojados do Monte
Belvedere.” “O que? Quem deu a notícia?
Quando foi isso?” “A notícia acaba de chegar, comandante. Foi do próprio comando
aliado que veio a informação. Mas eles mantiveram a ordem, e foram bem claros:
vamos atacar quando clarear o dia.” “Perderam Belvedere?” “Positivo, senhor.”
Os homens ao redor da mesa ficaram calados, olhando para o comandante. “Bem”
disse Mascarenhas, pausadamente “sem a cobertura do Belvedere, o Castelo é
inexpugnável. Mesmo assim eles mantiveram a ordem?” “Sim, senhor.” “Então,
senhores, vamos pensar como proceder para um ataque frontal funcionar sem a
proteção do flanco esquerdo.” “É suicídio.” disse Cordeiro de Farias. Zenóbio
deu um tapa na mesa. “O comando desta operação é meu, e eu penso que se
tivermos um bom apoio de artilharia, um
apoio maciço e contínuo da artilharia para nos dar cobertura e um ataque aéreo
simultâneo nas posições deles, a infantaria sobe, ah, eu juro pelo meu saco roxo
que sobe. Senhores, eu li num livro (não
faça essa cara, major Brayner) li num livro, um romance, Beau Geste, onde um
personagem diz: existem muitos soldados e poucas batalhas. Senhores, nós temos
a nossa batalha, isso é um acontecimento sublime. Nós somos privilegiados.”
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