quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Um Dragão Mora Lá Em Cima

27.

Os pracinhas subiam com esforço, tentando ignorar a chuva fina nas costas e a massa de neblina que dificultava a visão, quando Mascarenhas instalou-se no Posto de Comando do 6º- RI, para observar a operação. Estava acompanhado de Cordeiro de Farias e de um oficial de operações do IV Corpo. Todos munidos de binóculos, telefones e rádios, planilhas e códigos secretos. Os generais Mascarenhas e Cordeiro estavam evidentemente tensos. A presença do oficial americano não os ajudava em nada para relaxar. Brayner falava simultaneamente ao telefone e por rádio. Zenóbio estava lá adiante, comandando a largada dos pelotões, observando os grupos subindo a montanha. Pelo binóculo ele via os pracinhas escorregando, se agarrando, aguentando a chuva fininha caindo nas costas. Mascarenhas atendeu o telefone. “General, aqui é Zenóbio.” “Fala, Zenóbio.” “O avanço continua sem interrupções.” “Que Deus os abençoe. Traga uma vitória, Zenóbio.” Essa frase o preocupou. Pensou que fora injusto. Estava dando uma responsabilidade para Zenóbio que na realidade não era dele. A operação fora planejada e conduzida pelo comando americano. Os brasileiros não foram consultados e não deram uma palavra á respeito da missão que receberam. Brayner e os oficiais do Estado Maior estavam apreensivos e irritados. Não recebiam dos aliados um tratamento digno e sabiam disso. “Onde eles estão?” perguntou Mascarenhas. “Na cota 750, general.” Exatamente na cota 750, e nesse mesmo instante, Pedrinho, o gago Atílio, Alemão e Quevedo se jogaram atrás de um renque de pedras redondas, lisas pela chuva, onde a água escorregava. Estavam exaustos, precisavam duma pausa. Eles subiam na esteira dos tanques americanos, usando-os como escudo. Quevedo consultou o relógio. Dez da manhã. “Estamos subindo esta lomba há mais de quatro horas e de barriga vazia” disse. “Sabem no que estou pensando? Não é numa picanha mal passada, nem numa costela gorda. É coisa bem mais modesta. Tô pensando numa caneca de café bem quente, com açúcar mascavo e uma bolacha daquelas comprada em Libres.” “Deus me livre” disse Pedrinho, “eu penso é num pastel de banana, como só minha mãe sabia fazer e a gente levava para a feira depois da missa, nos domingos.” Olharam os tanques americanos passando ao lado deles, patinando na lama, escorregando, mas avançando com lentidão. “Esses bichos me dão medo” disse o Alemão. “Espero que ele dê mais medo nos teus parentes que estão nos esperando lá em cima” disse Quevedo. “Meus parentes não moram lá em cima” disse o Alemão, “lá em cima mora uma princesa loira, com uns cabelos que vem até o meio das costas.” “Um dragão mora lá em cima e vai engolir vocês todos, seus mandriões, se não levantarem e começarem a andar” berrou o sargento Nilson, passando por eles. Nesse instante acontece uma explosão em baixo de um tanque americano, a dez metros de onde estavam. As lagartas do tanque rebentaram e saltaram em pedaços. O tanque ficou imobilizado. E como se fosse um movimento orquestrado, os canhões de 88 mm dos tanques alemães começaram a despejar fogo na posição em que estavam. O grupo se encolheu atrás das pedras. “Já estava demorando pra começar o baile!” disse Quevedo. “Atrás dos tanques, atrás dos tanques!” ordenou Nilson. Todos correram para a proteção ordenada, enquanto as explosões aumentavam. Mas os tanques não se moviam. O capitão Uzeda apareceu ao lado de Nilson. “O que há, sargento? Por que estão parados?” “Alguma coisa impede o avanço dos tanques americanos, capitão.” “Minas, sargento. Vou falar com eles.” Nilson viu o capitão Uzeda subir num tanque e falar com um tenente americano.  Pouco depois pulou para o solo, aproximou-se de Nilson de cara amarrada. “Ele disse que não vão prosseguir, o terreno é minado.” “E nós, o que vamos fazer, capitão?” “Estamos perto do cume, mais duzentos metros e estamos lá, vamos tentar dar a volta nos tanques alemães e subir até lá em cima, que vamos ter a proteção dos americanos da 370 de Infantaria, a Divisão dos negros. Eles também devem estar chegando.” “Muito bem, capitão.” E Nilson reuniu-se ao seu Grupo de Combate. “Vamos tentar escapar aos tanques alemães e chegar lá em cima, macacada! Vamos!” Com o capitão Uzeda a frente, a tropa brasileira foi se afastando dos tanques americanos que lhes davam proteção e se deslocando em direção ao cimo do Monte Castelo, enquanto o fogo das armas aumentava cada vez mais de intensidade.  Pedrinho sentiu que alguma coisa grande começava a acontecer. “Vamos tomar o Monte Castelo, vamos ser os primeiros a chegar lá em cima!” Havia uma energia eletrizante que se propagava com o olhar, uma ferocidade alegre que lhes dava força, e havia aquele capitão de bigode fininho que olhava bem dentro do olho de cada um quando falava e isso fazia todos esquecerem a barriga pedindo comida, as pernas pedindo descanso, só havia o ritmo da subida e os pulmões chegando ao limite da capacidade. E de repente estavam numa esplanada. Com um sentimento de esplendor viram as casamatas alemães na beirada dos precipícios, os canhões molhados, as metralhadoras sobre os sacos de cimento, os capacetes alemães reluzentes de chuva e neblina. Atacaram com fúria, jogando as granadas e ocupando as primeiras casamatas. Os alemães, surpresos e atarantados, saíam com as mãos para cima ou corriam metendo-se no bosque de árvores ralas e machucadas pelos bombardeios. O grupo avançou tomado pelo frenesi da vitória, gritando e jogando granadas. Depois, foi uma longa pausa, onde olharam para os lados. “Cadê os americanos?” perguntou o sargento Nilson, “era para estarem aqui antes de nós.” O capitão Uzeda olhou perplexo para todos os lados, até escutar um rumor surdo de tanques avançando. “Aí vem eles” disse. Os tanques surgiram em formação de três, com os canhões de 88 mm apontados para os brasileiros, e não eram tanques americanos. Eram alemães. E começaram a despejar fogo, uma barragem ensurdecedora e mortal. Os brasileiros se jogaram no chão ou se enfiaram nas casamatas. O capitão Uzeda ainda lançou um olhar de esperança ao redor, mas não havia sinal dos americanos. “Deus do céu, os malditos nos abandonaram” exclamou  com um sentimento de rancor crescendo no peito. “Vamos nos retirar enquanto dá! Em ordem e acelerado!”

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