Mascarenhas,
Zenóbio, Cordeiro de Farias e os oficiais do Estado-Maior, comandados pelo
major Brayner, trocaram ideias diante dos mapas por mais de uma hora. “Tomando
os vilarejos de Abetaia e Fálfare, que ficam bem próximos do topo do Monte
Castelo, pelo lado esquerdo, poderemos suprir a falta de cobertura que
esperávamos do Belvedere,” disse Zenóbio, mastigando seu charuto. “Essa missão cabe a Terceira Companhia do
Onze de São João del Rey, a Companhia do capitão... do capitão...” “Capitão
Hézio” disse Brayner. “Isso. Me falaram bem desse rapaz.” “O capitão Hézio é um
oficial correto. Ele não vai falhar.” “Espero que não. O Onze já nos criou um
constrangimento internacional.” “Desculpe, Zenóbio, mas não vamos discutir o
Onze nesses termos” disse Mascarenhas, “o melhor é entendermos com clareza esse
quebra-cabeça, porque agora sim estão todos de olho em nós, aliados e
inimigos.” “É um quebra-cabeça simples, comandante. Vamos mandar o Primeiro
Regimento de Infantaria ter a honra de tomar a iniciativa do ataque, num
escalão avançado. O 1º- RI vai estar desfalcado do seu Primeiro Batalhão e da
Companhia de Obuses, que ainda não se recompuseram inteiramente dos danos. Na
reserva, o Terceiro do 11º- Regimento de Infantaria e na cobertura de flanco teremos
a volta á ação do Onze de São João del Rey, menos a Companhia do capitão Hézio,
que vai executar a missão especial, especialíssima, de limpar a região de
Abetaia e Fálfare.” Zenóbio soprou a fumaça para o ar e esperou. Ninguém
parecia convencido. Zenóbio percorreu os olhares. “Naturalmente conto com a
aviação, a nossa aviação, para bombardear o topo do morro enquanto subimos.”
“Não há garantias de aviação, Zenóbio.” “Isso eu sei, mas se o comando do V não
abortar a missão não importa se temos ou não aviação, ou munição ou seja lá o
que for. Teremos que subir na marra e da melhor maneira que a gente puder. Não
pensem que eu não sei onde estão nos metendo. Vamos tentar algo improvável que
é pegar os alemães de surpresa, para isso vamos determinar de que não haverá preparação
de artilharia, ouviu, general Cordeiro? e nem um sinal para marcar o início da
operação. As seis horas da manhã, cada pelotão, cada batalhão começa a subida,
em silêncio, sem demorar um minuto, sem esperar ordens. E isso é tudo.” “Muito
bem, senhores, para seus postos, e que Deus nos ajude.” O capitão Hézio escutou
atentamente as ordens do seu comandante, o major Jacy. “Como está o ânimo,
capitão?” “Forte.” “Muito bem, vamos tomar um café antes da subida. Depois, só
se for cortesia do inimigo.” Há dois dias o capitão Hézio tinha conhecimento da
missão, embora de maneira não oficial. Fora notificado para começar a se
preparar interiormente (“espiritualmente, disse o Zenóbio” comentou o major
Jacy com um risinho) e procurar conhecer os caminhos da região de Abetaia,
vilarejo com quinze ou vinte casas todas esburacadas pelos bombardeios. Na
verdade, todos achavam que o ataque seria abortado. Continuava chovendo sem
parar, os caminhos pareciam riachos despencando lá das alturas e era quase
impossível ficar em pé, tão escorregadia estava a lama. O major Jacy procurava
esconder o nervosismo da melhor maneira que podia, servindo cafezinho para seus
oficiais e contando novidades que tinha recebido do Rio de Janeiro. O
campeonato carioca seria decidido nesse domingo, num clássico Flamengo x Vasco.
O capitão Hézio deu de cara com o
capitão Uzeda, junto á mesa do cafezinho. “Então?” disse Uzeda. “Estamos
voltando para o Castelo. Vou fazer a cobertura do flanco esquerdo.” “Do flanco
esquerdo? Aquilo lá é um inferno, Hézio, abre o olho. Como está a moral da
turma?” O capitão Hézio deu um sorriso triste. “Agora é que vamos saber. Depois
da tropelia do dia 2 ficamos acantonados em Granaglione. Foram bons dias por
lá. Fomos bem recebidos pela população, vi soldados comendo nas cozinhas dos
moradores, sendo tratados como liberatori.
A auto-estima melhorou um bocado, mas, agora, na hora da onça beber água, é que
vamos ver mesmo como é que eles estão. Tenho o coração na mão, Uzeda.” “Não é
para menos, todos estamos assim. Vai ser fogo.” Bebeu seu café, deu um tapinha
nas costas de Hézio e saiu para a chuva fina e a escuridão. “Um italiano me
disse que se a chuva parar pode começar a nevar” disse o major Jacy. “Nunca vi
neve na minha vida” disse Hézio. Jacy consultou o relógio. “Está chegando a
hora, senhores, vamos para nossas posições, os caminhões já estão carregados
com as tropas, vamos partir.” Apertaram as mãos, Hézio ainda deu uma olhada
para o interior da barraca onde havia calor de corpos e dos fogões com café e sanduíches.
Para sair dali era importante não pensar no que os esperava. Um novo desastre?
Ou a reabilitação, que era o desejo de todos, dos oficiais mais graduados ao
pracinha mais jovem. A humilhação do dia 2 atingira a todos, e agora, dez dias
depois, era dada a segunda oportunidade.
Subiram nos caminhões, vozes davam ordens ríspidas, alguém deu uma
gargalhada ali perto e o comboio começou a se mover na madrugada escura. “Para
onde vamos, sargento?” perguntou Pedrinho para Nilson. “Para a base da partida,
vamos nos integrar ao Onze, são cinco horas, as seis em ponto começamos o
ataque.” “O Onze agora é o Laurindo”
disse o Alemão. “Esqueçam essas palhaçadas, não riam do que não conhecem.”
“Mas, sargento...” “Cala a boca e pensa no que tu vai fazer quando chegar lá em
cima.” Os caminhões pararam, começaram a saltar para fora dele, começaram a
formar uma fila longa na beira da trilha, a chuva caía sem parar, fina e gelada
nas suas costas e nos capacetes, e eles começaram a subida, afundando as
galochas na lama macia, escorregando, praguejando, olhando para cima e tudo o
que viam lá em cima era a escuridão, a escuridão densa e doentia, de vez em
quando estilhaçada por raios silenciosos. Apertavam os fuzis com os dedos
gelados, respiravam fundo fazendo sair fumaça das narinas, procuravam se
equilibrar para não levar um tombo e passo após passo os pracinhas mais uma vez
foram subindo a montanha.
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