quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A Neve é tão Bonita

33.

No visor do binóculo do general Mascarenhas os homens subindo a montanha eram apenas vultos escuros. A chuva gelada tinha parado e no lugar dela ocupara as montanhas uma cerração fechada, cinzenta, que dissolvia tudo. No entanto eles estavam lá, via os vultos. Ás vezes a cerração abria uma brecha e lá estavam eles, subindo, lentamente, penosamente, coração na boca, cheios de paura, mas sem parar. Lá vão eles, o general os vê,  encharcados, transidos, respirando mal, dois mil moços brasileiros, o sargento Nilson, o capitão Bueno, o Alemão João, o gago Atílio, Francisco, Miguelim, Antônio, Ivo, Saulo, Tavares, Lucas, Pedrinho, Tiago, o negro Bandeira, vão abaixados porque obuses explodem ao redor, o negro Bandeira se levanta de repente e berra: “É mais pra cá, alemão batata!” O general não ouve o grito nem as risadas que ele desperta em meio ás explosões, mas já conhecia a piada e sempre se surpreendia com a capacidade de sua gente ironizar inimigo e desgraça e a própria morte. Mas seu chefe de Estado Maior não tinha senso de humor e murmura em seu ouvido, com gravidade: “As ordens de batalha não foram cumpridas à risca, general. A artilharia americana se precipitou na abertura de fogo e começou a atirar as 6h00 em ponto, quando o combinado era meia hora mais tarde. Em consequência, o terceiro Batalhão, comandado pelo major Franklin, começou a avançar assim que ouviu a artilharia americana e agora está isolado lá no alto.” “E o segundo?” “O segundo Batalhão, do major Sizeno, foi atrapalhado por uma série de contra ordens, primeiro diziam que Belvedere era nosso, depois que era dos alemães e assim atrasou a partida, mas agora vai avançando dentro das possibilidades, porque o fogo alemão se concentrou nele já que o terceiro está praticamente cercado.” “Começamos mal, Brayner, muito mal.” Zenóbio se aproximou, lívido. “Meus homens estão expostos lá em cima e onde está nossa artilharia?” Com o telefone colado ao ouvido o general Cordeiro o olhou calmamente: “Estou fazendo o possível, Zenóbio, mas não temos visibilidade.” “O que? O que você está me dizendo?” “Que não temos visibilidade. Que não posso mandar a artilharia atirar as cegas. Vou massacrar nossos próprios soldados. Você não está vendo a cerração fechando tudo?” “Eu preciso de cobertura lá em cima, o terceiro está caindo numa ratoeira.” “O segundo está impedido de avançar porque a concentração do fogo do Belvedere está todo concentrada nele” disse Brayner. “Nossos dois batalhões estão em apuros, general. O pior em que já estivemos até agora.” Era meio em dia em ponto quando a cerração começou preguiçosamente a se desfazer, e um grupo de pracinhas se amontoou em um canto e buscou avidamente as rações nas mochilas. É bom comer com essa música” disse Quevedo, “abre o apetite.” O capitão Bueno rastejava no barro e pensou meu Deus, estou chegando no tal corredor da morte. Ali estavam as casamatas dos alemães. A menos de quinze metros. Pereira, seu ordenança, tirou uma granada da mochila e apontou a casamata para o capitão Bueno. Piscou o olho para o capitão. O ordenança Pereira idolatrava o capitão Bueno. Se tinha um oficial que merecesse respeito era o capitão Bueno. Estendeu a granada para o capitão Bueno. Faltava um minuto para a uma hora da tarde. O capitão Bueno apanhou a granada, olhou para o céu, viu uma nesga azul. “Vai nevar” sussurrou alguém, “o Paolo me disse que hoje com certeza vai nevar.” O Paolo era um italiano de dois metros de altura, chefe dos guerrilheiros de Gaggio Montano. Ele sabia o que dizia.  O capitão Bueno jogou a granada na casamata e ergueu ligeiramente o corpo e viu a explosão e o alemão se dobrando sobre a metralhadora que soltou sua carga bem na direção do capitão Bueno. Á uma hora da tarde a bala rasgou a coxa de Pedrinho, quando ele dizia para Quevedo que na terra dele caçavam baleias no mês de julho, quando era pleno inverno. O praça Pedrinho tinha dito que lá em Imbituba caçavam baleias com arpões, enormes e negros arpões bem afiados, que entravam na carne das baleias e tingiam o mar de vermelho. Ele contava isso com um certo desespero, como se fosse culpado e como se a dor das baleias o acompanhasse ali, naquele lugar cheio de explosões e gritos inumanos. Todos os invernos as baleias chegavam e os homens as esperavam em seus barcos compridos, afiando os arpões e olhando o mar com ansiedade de caçador. Pedrinho se contorceu de dor e não gritou, mas fez sinal para o Alemão pedindo um torniquete, no momento em que a bala se aproximava do peito do capitão Bueno e este pensava que tinha tudo para finalmente nevar. Á uma da tarde a bala da metralhadora fincada na casamata perfurou o pulmão do capitão Bueno e ele sentiu a dor como se tivesse sido fisgado por um arpão de caçar baleias. Todo seu corpo estremeceu e o capitão Bueno sentiu um pingo gelado no nariz, era o primeiro floco de neve daquele inverno que começava. Sua mulher costumava dizer a neve é tão bonita, se Deus quiser um dia eu vou conhecer a neve. Á uma da tarde a ordenança estendeu uma xícara de café para o general Mascarenhas, quando o telefone tocou e Brayner atendeu. “Bem, se não houver o apoio da aviação, e isso está sendo confirmado, estamos definitivamente ferrados.” Brayner disse as palavras entre dentes, com uma mal disfarçada ferocidade, que surpreendeu Mascarenhas. O general comandante já estava por dizer para seu chefe do Estado Maior contenha seu pessimismo Brayner, quando viu o grupo entrando galpão a dentro (Posto de Observação a dentro, corrigiu mentalmente) e na frente do grupo, com ares de dono da casa, vinha o general Crittenberg e, ao lado dele, quem diria, o Ministro da Aeronáutica, um dos homens de confiança de Getúlio, o doutor Salgado Filho em pessoa. Era uma grande comitiva e apresentava certa pompa de pintura renascentista, com as capas encharcadas brilhantes da água da chuva e da neblina, e não tinham pudor de esconder o ar curioso, quase festivo: havia nos olhares deslumbramento com a proximidade do combate e todos procuravam afetar familiaridade com as explosões assustadoras e os estremecimentos das paredes, a fuligem que caía do teto e os rostos pálidos e cansados dos oficiais que estavam ali desde as duas horas da manhã. 

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