No visor do
binóculo do general Mascarenhas os homens subindo a montanha eram apenas vultos
escuros. A chuva gelada tinha parado e no lugar dela ocupara as montanhas uma
cerração fechada, cinzenta, que dissolvia tudo. No entanto eles estavam lá, via
os vultos. Ás vezes a cerração abria uma brecha e lá estavam eles, subindo,
lentamente, penosamente, coração na boca, cheios de paura, mas sem parar. Lá vão eles, o general os vê, encharcados, transidos, respirando mal, dois
mil moços brasileiros, o sargento Nilson, o capitão Bueno, o Alemão João, o
gago Atílio, Francisco, Miguelim, Antônio, Ivo, Saulo, Tavares, Lucas,
Pedrinho, Tiago, o negro Bandeira, vão abaixados porque obuses explodem ao
redor, o negro Bandeira se levanta de repente e berra: “É mais pra cá, alemão
batata!” O general não ouve o grito nem as risadas que ele desperta em meio ás
explosões, mas já conhecia a piada e sempre se surpreendia com a capacidade de
sua gente ironizar inimigo e desgraça e a própria morte. Mas seu chefe de
Estado Maior não tinha senso de humor e murmura em seu ouvido, com gravidade:
“As ordens de batalha não foram cumpridas à risca, general. A artilharia
americana se precipitou na abertura de fogo e começou a atirar as 6h00 em
ponto, quando o combinado era meia hora mais tarde. Em consequência, o terceiro
Batalhão, comandado pelo major Franklin, começou a avançar assim que ouviu a
artilharia americana e agora está isolado lá no alto.” “E o segundo?” “O
segundo Batalhão, do major Sizeno, foi atrapalhado por uma série de contra
ordens, primeiro diziam que Belvedere era nosso, depois que era dos alemães e
assim atrasou a partida, mas agora vai avançando dentro das possibilidades,
porque o fogo alemão se concentrou nele já que o terceiro está praticamente
cercado.” “Começamos mal, Brayner, muito mal.” Zenóbio se aproximou, lívido.
“Meus homens estão expostos lá em cima e onde está nossa artilharia?” Com o
telefone colado ao ouvido o general Cordeiro o olhou calmamente: “Estou fazendo
o possível, Zenóbio, mas não temos visibilidade.” “O que? O que você está me
dizendo?” “Que não temos visibilidade. Que não posso mandar a artilharia atirar as cegas. Vou massacrar nossos próprios soldados. Você
não está vendo a cerração fechando tudo?” “Eu preciso de cobertura lá em cima,
o terceiro está caindo numa ratoeira.” “O segundo está impedido de avançar
porque a concentração do fogo do Belvedere está todo concentrada nele” disse
Brayner. “Nossos dois batalhões estão em apuros, general. O pior em que já
estivemos até agora.” Era meio em dia em ponto quando a cerração começou
preguiçosamente a se desfazer, e um grupo de pracinhas se amontoou em um canto
e buscou avidamente as rações nas mochilas. É bom comer com essa música” disse
Quevedo, “abre o apetite.” O capitão Bueno rastejava no barro e pensou meu
Deus, estou chegando no tal corredor da morte. Ali estavam as casamatas dos
alemães. A menos de quinze metros. Pereira, seu ordenança, tirou uma granada da
mochila e apontou a casamata para o capitão Bueno. Piscou o olho para o
capitão. O ordenança Pereira idolatrava o capitão Bueno. Se tinha um oficial
que merecesse respeito era o capitão Bueno. Estendeu a granada para o capitão
Bueno. Faltava um minuto para a uma hora da tarde. O capitão Bueno apanhou a
granada, olhou para o céu, viu uma nesga azul. “Vai nevar” sussurrou alguém, “o
Paolo me disse que hoje com certeza vai nevar.” O Paolo era um italiano de dois
metros de altura, chefe dos guerrilheiros de Gaggio Montano. Ele sabia o que
dizia. O capitão Bueno jogou a granada
na casamata e ergueu ligeiramente o corpo e viu a explosão e o alemão se
dobrando sobre a metralhadora que soltou sua carga bem na direção do capitão
Bueno. Á uma hora da tarde a bala rasgou a coxa de Pedrinho, quando ele dizia
para Quevedo que na terra dele caçavam baleias no mês de julho, quando era
pleno inverno. O praça Pedrinho tinha dito que lá em Imbituba caçavam baleias
com arpões, enormes e negros arpões bem afiados, que entravam na carne das
baleias e tingiam o mar de vermelho. Ele contava isso com um certo desespero,
como se fosse culpado e como se a dor das baleias o acompanhasse ali, naquele lugar
cheio de explosões e gritos inumanos. Todos os invernos as baleias chegavam e
os homens as esperavam em seus barcos compridos, afiando os arpões e olhando o
mar com ansiedade de caçador. Pedrinho se contorceu de dor e não gritou, mas
fez sinal para o Alemão pedindo um torniquete, no momento em que a bala se
aproximava do peito do capitão Bueno e este pensava que tinha tudo para
finalmente nevar. Á uma da tarde a bala da metralhadora fincada na casamata
perfurou o pulmão do capitão Bueno e ele sentiu a dor como se tivesse sido
fisgado por um arpão de caçar baleias. Todo seu corpo estremeceu e o capitão
Bueno sentiu um pingo gelado no nariz, era o primeiro floco de neve daquele
inverno que começava. Sua mulher costumava dizer a neve é tão bonita, se Deus
quiser um dia eu vou conhecer a neve. Á uma da tarde a ordenança estendeu uma
xícara de café para o general Mascarenhas, quando o telefone tocou e Brayner
atendeu. “Bem, se não houver o apoio da aviação, e isso está sendo confirmado, estamos
definitivamente ferrados.” Brayner disse as palavras entre dentes, com uma mal
disfarçada ferocidade, que surpreendeu Mascarenhas. O general comandante já
estava por dizer para seu chefe do Estado Maior contenha seu pessimismo
Brayner, quando viu o grupo entrando galpão a dentro (Posto de Observação a
dentro, corrigiu mentalmente) e na frente do grupo, com ares de dono da casa,
vinha o general Crittenberg e, ao lado dele, quem diria, o Ministro da
Aeronáutica, um dos homens de confiança de Getúlio, o doutor Salgado Filho em
pessoa. Era uma grande comitiva e apresentava certa pompa de pintura
renascentista, com as capas encharcadas brilhantes da água da chuva e da
neblina, e não tinham pudor de esconder o ar curioso, quase festivo: havia nos
olhares deslumbramento com a proximidade do combate e todos procuravam afetar
familiaridade com as explosões assustadoras e os estremecimentos das paredes, a
fuligem que caía do teto e os rostos pálidos e cansados dos oficiais que
estavam ali desde as duas horas da manhã.
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