quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Espírito da Montanha

38.


O capitão Bueno percebeu que a nevasca tinha parado porque uma estrela brilhava no céu, bem em cima dele. Depois viu outra estrela, depois outras. A visão das estrelas lhe deu um fugaz consolo, algo como a certeza de que o universo continuava sua rotina, indiferente á insanidade humana. Um gosto amargo na boca o fez cuspir, e cuspiu sangue. Uma golfada vermelha, manchando a terra agora branca. Lembrou que tinha sede. O bornal se fora em algum momento. Na densa escuridão que descera sentiu um breve surto de pânico ao entender que estava desorientado, mas imaginou que as linhas brasileiras ficavam á sua esquerda, e começou a se arrastar nessa direção. As dores aumentaram, notou que uma fraqueza se alastrava por todo seu corpo, apoiou os dois joelhos no chão e foi desabando lentamente até que rolou num pequeno barranco e foi abraçado pela água gelada de um arroio. O sargento Max, a 200 metros dele, rastejava com seus três voluntários. Escolhiam cuidadosos o terreno, cutucando os corpos estendidos. “Só vamos levar quem estiver vivo” dissera o sargento, “os mortos enterraremos depois.” Mas eles já tinham cutucado uns oito corpos e todos estavam rígidos e insensíveis. O sargento Max, que tinha sido chefe de polícia no Paraná, começou a sentir em suas costas o peso da maldita montanha. Entre os praças já corria a história de que o sargento Max não tinha medo de nada, mas a verdade é que o sargento tinha medo do espírito que habitava aquela montanha: Max sentia que era um espírito mau, esquivo, gelado e desafiava com perverso prazer aqueles brasileiros raquíticos a que o dominassem. O sargento Max tinha a suspeita, bem escondida, de que nunca dominariam a montanha. O espírito dela os engoliria um por um, ficariam perdidos como o capitão Bueno, e morreriam padecendo dores terríveis na mais completa solidão. Como era pesada a solidão daquela montanha! Deitado no chão, o sargento Max percorria com o olhar o terreno imerso na escuridão, e ouvia ruídos noturnos raros e desconhecidos. Ouvia sussurros e gemidos. Ouvia o vento que cortava seu rosto barbudo. Precisava encontrar o capitão Bueno. Precisava salvar alguns dos rapazes que ficaram para trás. Precisavam, todos eles, de alguma pequena vitória contra a montanha, qualquer uma e por menor que fosse, mas precisavam de uma vitória para os homens não se entregarem ao desespero completo. O desespero rondava, desde o mais graduado oficial até o pracinha recém desembarcado. Se o desespero se estabelecesse seria o fim. O major Brayner pensava que a decisão do comandante em chefe de viajar para o Rio de Janeiro e renunciar ao cargo era fruto do desespero completo, aliado aquela dignidade endurecida que Mascarenhas vestia como outro uniforme.  A madrugada se arrastou com café e cigarros, frases amargas e a resolução de que Mascarenhas esperaria os acontecimentos se encaixarem com mais firmeza para então tomar, se fosse o caso, uma decisão drástica.  O que o comando faria era buscar o general Mark Clark para uma conversa franca. “Vamos botar as cartas na mesa, general Mascarenhas. Não é possível que fiquem nos levando na conversa, nos ameaçando com a desonra, nos deixar na retaguarda, sem olhar para os fatos reais que determinaram esta derrota.” “Não vamos fugir dos nossos erros, major, mas não vamos admitir o fracasso como sendo coisa só nossa, quando tudo começou com os atrasos e equívocos dos americanos.” “Para mim o mais grave é que os alemães sabiam do ataque” disse Zenóbio. “Como eles sabiam, por quem eles sabiam é que me intriga.”  Mascarenhas olhou para os caminhões e jipes se organizando para transportar os feridos que chegavam.  Pedro Diax estava entre eles. Quevedo o tinha arrastado montanha abaixo, puxando-o pela gola da japona. Quando chegaram na base e foram acudidos pelos padioleiros, Pedrinho se agarrou ao braço de Quevedo. Pedrinho tremia. Os padioleiros o fizeram soltar e Quevedo viu lágrimas nos olhos do rapaz, desespero e incredulidade. Aquilo chocou Quevedo. Ele gostava da companhia de Pedrinho, sua calma sem empáfia, o jeito sereno com que amadurecia e assimilava os horrores que tinha de enfrentar. Foi colocado dentro dum jipe que arrancou em direção ao hospital. Foi descido numa padiola e levado com rapidez para dentro de uma grande tenda. Uma enfermeira se debruçou sobre ele. “Calma, soldado, nós vamos cuidar de você. O capitão já vem te examinar.”  Foi colocado sobre uma mesa dura. A enfermeira rasgou a calça dele na altura da coxa e olhou com ar crítico. “Vamos consertar isso.” Pedrinho olhou para ela: olhos azuis, o cabelo louro atrás da touca com a cruz vermelha. Um rosto bonito, de ascendência inglesa, ou de anjo. Conhecia essa enfermeira de algum lugar. Talvez daquela tarde de domingo no Rio de Janeiro, sim, sim, sim, quando com o gago Atílio e o alemão Wogler foram ao Estádio das Laranjeiras assistir Fluminense x Botafogo. Pedrinho olhou para ela com intensidade, a enfermeira sentiu o olhar e seus olhos se encontraram. Ela disse: “Sou Virginia” no exato momento em que o soldado Pereira, ordenança do capitão Bueno, viu a patrulha do sargento Max voltar á base. Os quatro homens chegaram e se jogaram no chão, exaustos e derrotados. Estavam nessa lida desde as 6 horas do dia anterior, praticamente 24 horas sem dormir nem descansar nem se alimentar razoavelmente.  O ordenança Pereira olhou para eles durante alguns momentos, depois apanhou sua metralhadora e enfiou no ombro. Encheu o bornal de granadas, tomou um gole de água do cantil e começou a se afastar. O ordenança Pereira ia desafiar o espírito da montanha. Não ia deixar seu capitão agonizando ou morto sozinho naquele breu.  Mal deu alguns passos sentiu o peso da maldição. A montanha parecia maior. O Monte Castelo parecia mais gelado, mais íngreme, mais escorregadio. Mas o ordenança Pereira fora criado numa fazenda em Pirapora. Não tinha medo do escuro nem da solidão.  Foi avançando abaixado, como rastreador, vencendo os obstáculos do caminho, decidido a voltar com o capitão Bueno. Ou não voltar.

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