quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Isto é só um começo, moçada!

22.

“Quem é esse tenente?” perguntou Mascarenhas de Moraes, com a xícara de café bem quente na mão. “Ainda não sabemos ao certo, comandante” respondeu Brayner “mas é bem moço.” “Todos os tenentes são moços, Brayner, mas nem todos fazem loucuras.” “Abençoada loucura” disse Brayner. “Não me retruque, Brayner. Leia o relatório.” “O nome dele é Mário Cabral de Vasconcelos, 2º- tenente da 2ª- Companhia do 6º- Regimento de Infantaria, general. Ele e seu pelotão assumiram a vanguarda da manobra depois de galgarem 1.200 metros sob fogo contínuo, como se fossem uma tropa de montanha, especializada e adestrada, e sabemos que nunca subiram nada mais alto do que 500 metros. Deram um susto nos alemães. A surpresa foi total. Tomamos Monte Prano e com isso ficamos senhores de toda a região, agora somos nós que dominamos lá no alto e temos visibilidade de todas as estradas em torno. Até o momento contabilizamos 32 prisioneiros, e recolhemos todo material bélico abandonado.” “Muito bem. E baixas?” Brayner pareceu hesitar. “Nada confirmado, comandante, mas há informes de três mortos por granada, três praças, os nomes estão sendo verificados para confirmação.” “Quero os nomes o mais rápido possível” disse Mascarenhas. Arrastou a cadeira, levantou-se, olhou o mapa na parede atrás dele. Monte Prano. Procurou com o dedo. Não achou. Ninguém nunca vai achar nada com esse nome. Mortos. Mortos em Monte Prano. Todos jovens. Quase garotos. Escrever cartas para os pais. Mandar despojos. Medalhas. Pequenas coisas inúteis para alguma cidadezinha perdida no interior do Brasil, ao pé de alguma montanha ou na beira de um rio... “General.” Voltou a si. Não é bom um general divagar. Principalmente se é um general comandante de uma expedição de guerra. “O senhor parece longe.” “Eu estava longe, Brayner, mas não estou mais.” “Precisamos terminar  a documentação para a reunião com os americanos.” “Sim, Brayner.” “Os americanos estão nos levando na conversa, comandante. Prometeram carabinas 0.30 e chegaram fuzis Springfield, mais velhos que minha avó. Nem sinal dos Colt 45 para os oficiais. Vieram metralhadoras de mão, também antigas, muito usadas. Isso dificulta a instrução da tropa. Nos caixões não vem sequer uma nota explicando o conteúdo, e quando diz uma coisa tem outra. O 2º- Escalão está chegando aí, e ainda não temos...” “Eu sei, Brayner. Eu sei que eles estão chegando, mas vamos fazer o quê? Nos queixar para quem? Só se for a Nosso Senhor Jesus Cristo...” “Nosso orgulho, general...” Mascarenhas endureceu o olhar. “Orgulho, Brayner? A primeira coisa que eu esqueci quando aceitei esta missão foi o orgulho.” “Sim, senhor.” “E se você quer ser um chefe de Estado-Maior competente também vai esquecer o orgulho. Veja esses caixotes: artigos de inverno, capacetes, perneiras, capotes, jaquetas, japonas, cobertores, pijamas, roupões de hospital... tudo americano! Cigarros, chocolates, chicletes. Do general comandante até o último soldado recebem essas porcarias. Orgulho? Eu já faço força para não parecer um mercenário. Essa é a guerra que nos tocou, major Brayner. Ela é bem mais difícil do que parece.” “Sim, senhor.” “Vamos ter orgulho quando esta guerra acabar. Orgulho dos nossos rapazes, das missões que cumprimos sem queixas. Não podemos ter auto comiseração, não podemos mostrar sinais de fraqueza. Esta guerra, pelo pouco que pudemos ver, é a mais monstruosa invenção da raça humana até hoje. Mas nós podemos tirar daqui nossa parcela de dignidade.” “Sim, senhor, comandante.” “Vamos subir essa estrada agora, depois que eu beber este café que já esfriou. Quero ir lá em cima ver nossos praças e nossos oficiais.” O caminho que a tropa levou seis dias para percorrer o Alto Comando da FEB percorreu em cinco horas. Mascarenhas chegou lá no alto no meio da tarde, sentindo no rosto o vento frio. As marcas dos combates estavam por tudo. Crateras, árvores espedaçadas e calcinadas, rostos de camponeses perplexos e crianças assustadas nas pequenas janelas das casas rústicas. Uma tropa de burros passava na estrada, obrigando o jipe de Mascarenhas a dar passagem. “Para que tanto burro, Brayner?” “Foram cedidos para nós pelos guerrilheiros, comandante. Metade deles foi tirado dos alemães. São mais de 20 muares por pelotão, os condutores são guerrilheiros da região ou membros de uma tropa de alpinos italianos. Sem os muares é praticamente impossível fazer o reabastecimento e remuniciamento da nossa gente. Agora nada vai nos faltar aqui em cima.” Numa curva da estrada, rente ao abismo, havia um olmo com sinais de que fora atingido por uma bomba ou canhoneio. Dele se despegava uma fumaça negra, mas o que fez o cabo Adão frear sem aviso foi o insólito fruto que pendia do seu galho principal. O corpo ficou balançando a poucos metros do jipe, os pés sujos do enforcado parados no ar, logo acima deles. “O que é isso?” rosnou Mascarenhas com repulsa. “Era um colaborador dos nazistas, comandante” explicou o major Duílio, que ciceroneava o grupo do comandante em chefe. “Foi justiçado pelos moradores e pelos guerrilheiros.” “Não quero saber dessa justiça na nossa área, major. Mande tirar esse corpo dali e enterrar decentemente.” O major chamou um sargento que passava e transmitiu-lhe a ordem. Pouco depois Pedrinho, o gago Atílio, Alemão e Quevedo estavam embaixo do enforcado, pensando um jeito de tirá-lo dali. “Precisamos duma escada” disse o Alemão “vamos pedir numa dessas casas aí.”  Mascarenhas observou um instante o grupo de pracinhas em torno à árvore, lidando para descer o enforcado. “Isso é trabalho para os alemães que a gente aprisionou” disse Quevedo “nós não temos que enterrar ninguém.” “Isso é o que tu pensa, mandrião” disse o sargento Nilson se aproximando. Um pássaro deu um grito agudo e fez um largo voo em torno ao abismo. Todos pararam para olhar, e depois ficaram um instante olhando a sucessão de cadeias montanhosas que se estendia sem fim, até tornar-se uma coisa cinza e nebulosa no horizonte. “Vamos ter que atravessar tudo isso?” perguntou o Alemão. “É claro, istepô.” E olhando para os soldados com um sorriso feroz. “Isto é só o começo, moçada.” Quevedo tirou o capacete, coçou o cabelo sujo, sentou numa pedra. “Então, se é assim, o distinto pendurado aí que me desculpe, sargento, mas vou fumar um cigarrinho porque temos muito tempo.” O sargento Nilson teve um impulso de autoridade, mas ponderou, sorriu e também sentou numa pedra. Os outros o foram imitando e logo ficaram os quatro soldados sentados lado a lado, fumando, contemplando a imensidão a se desdobrar diante deles, o enforcado atrás, levemente agitado pelo vento frio da cordilheira. 

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