36.
O soldado negro
rastejava com uma agilidade de atleta, não parecia que tinha escalado centenas
de metros escorregadios sob fogo cerrado e que com certeza seus músculos doíam
tensos e machucados. O soldado negro de quem o major Jacy e o coronel Almeida
sequer o nome sabiam avançava com um ímpeto e uma coragem sem exaltação que os
emocionou por um momento, até que quando ele já estava bem longe e era mais um
contorno do que uma figura humana começou a desabar a seu redor uma carga de
fogos e explosivos que levantavam terra e o obrigaram a jogar-se no barro e
ficar ali, quieto, esperando que o pior passasse. “O pior ainda nem começou,
meu amigo, posso sentir isso, e seria um idiota se não sentisse: o pior vai ser
essa reunião com o Crittenberg, ele parece um cabra difícil, durão.” “Ele é
durão, ministro” disse Brayner, para Salgado Filho, “ele é um osso duro de
roer, parece sofrer de síndrome de cowboy, e não sei se é nosso amigo.” “Bem,
eu sou seu amigo, major, e posso lhe garantir que não estou aqui como espião ou
fiscal do governo. Simplesmente sou o ministro da aeronáutica, é natural que eu
esteja aqui. Percebo que fatos poucos agradáveis estão ocorrendo e que os
senhores estão procurando desviar do meu conhecimento, o que eu entendo. Mas
discordo dessa atitude. Em hipótese alguma eu me solidarizaria com quem quer
que fosse, contra os senhores, oficiais brasileiros. Sei quem os senhores são,
e eu, aqui, sou um brasileiro a mais, para defendermos, em conjunto, o nome e
os interesses do Brasil” “Obrigado, ministro. Na guerra, sabemos agora, nem
sempre as coisas acontecem como são planejadas. Há dias menos felizes. Hoje é
um dia assim, aconteceram fatos imprevistos que modificaram nossas
expectativas. Mas não vamos afundar no pessimismo. Um dos meus trabalhos é por
a razão acima de todos os sentimentos.” “Bem, vou voltar a Porreta Terme. Deixo
os senhores para preparar a reunião com o cowboy. Mas tornaremos a falar antes
de eu voltar para o Brasil.” Não vou voltar para o Brasil, não vou voltar para
o Brasil, agora eu sei, as balas não atingiram meu estômago, foi o pulmão
direito e agora sei que arrebentaram um bom número de costelas e agora sei que
mal posso respirar e estou quase em estado de choque mas com uma lucidez que me
assusta, o pior foi que o alemão não atirou em mim, ele já estava morto, foi um
acidente, ele caiu morto sobre a metralhadora e ela disparou na minha direção,
não acertou a barriga, acertou mais acima e perfurou o pulmão, olhou o relógio,
o mostrador estava coberto pelo sangue, fechou os olhos e escutou o silêncio
daquela farinha branca gelada caindo sobre seu rosto e ouviu então vozes trata-se de consolidar o saliente existente
na direção de Bolonha, dizia uma das vozes e fazer ações limitadas em seus
flancos, tentando melhorar as posições e outra voz se infiltrou e se tornou
mais clara e era o Pereira que como o habitual falava sem parar com seu sotaque
de caipira paulista eles podem praticar tiro ao alvo em quem estiver lá embaixo,
capitão, é uma diversão. O senhor sabe que alemão gosta de caçada. Então os
americanos montaram uma máquina de fumaça para manter a região mais baixa
permanentemente nublada, tem uma em cada cabeceira da ponte, eles bolaram isso
para encobrir a ponte de Sila, a ponte de Sila é vital para nós, sem a ponte de
Sila a frente brasileira fica sem suprimentos. Os alemães bombardeiam a ponte
todos os dias, nas horas mais diferentes, a engenharia já reconstruiu a ponte
umas cinco vezes desde que eu estou aqui. Quando chego perto da ponte eu
acelero, todo mundo passa com o pé no fundo pela ponte, porque mesmo coberta de
fumaça os alemães ouvem o barulho dos motores e mandam bala. Quem trabalha na
operação fumaça é o Magro, da dupla o Gordo e o Magro.” “Essa não.” “Pura
verdade. Tá todo mundo indo lá dar uma olhada nele, mas ele não gosta. Não dá
uma risadinha. Ele nunca dá risadinha, nem nos filmes, só faz chorar. Ele é
assim.” “Eu sei.” “Mas quando eu fui lá e fiz sinal de positivo com o polegar,
assim ó, ele achou engraçado e tirou o capacete e coçou o cabelo como faz nos
filmes e fez cara de choro e aí eu me animei e peguei uma rapadura que tinha
chegado lá de Pirapora e dei pra ele e ele pegou, cheirou, deu uma mordidinha e
fez sinal de positivo, depois meteu a mão no bolso da túnica e tirou uma barra
de chocolate e me deu.” O soldado negro sentiu o impacto da bala em sua perna
quando calculava que estava a apenas 20 metros do corpo caído do capitão Bueno,
e instantaneamente pensou outra vez estava quase salvo, estava salvo e então um
obus explodiu bem ao lado dele e com o impacto o corpo do soldado negro de quem
o major Jacy e o coronel Almeida sequer o nome sabiam partiu-se em três pedaços
sanguinolentos. O major Jacy e o coronel Almeida trocaram um olhar estarrecido.
Acabara de acontecer algo que os assombraria para o resto de suas vidas e eles
sabiam. Enquanto estavam ali paralisados, sem reação, o sargento Max disse:
“Quero voluntários.” Os soldados que tinham parado para acompanhar a tentativa
do soldado negro, olharam com temor para ele porque o sargento Max já estava granjeando
a fama de temerário, capaz de algumas façanhas de arrepiar os mais valentes.
“Voluntários para que?” perguntou Almeida. “Não vou deixar meu capitão caído na
terra de ninguém. Quero três voluntários.” Apesar de os pracinhas repetirem
entre si várias vezes por dia para nunca se apresentarem voluntários para nada,
absolutamente nada, o cabo Leite e os soldados Manoel Filho e Barbosa Lima se
apresentaram ao sargento Max. E depois de checar as armas e largar as
pesadas mochilas, os quatro homens subiram o barranco e começaram a rastejar em
direção ao corpo caído do capitão Bueno.
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