quinta-feira, 17 de outubro de 2013

“Vamos Voltar Quantas Vezes For Preciso"

29.

Os vultos foram chegando no escuro, abaixados, bem devagarinho, em silêncio. Pedrinho olhou para eles com espanto. “Quem são vocês?” “Somos o Onze de São João del Rey. Nosso batalhão veio substituir o Sampaio.” “O Sampaio somos nós.” “Então aqui estamos.” “Ora, ora, já era tempo, parceiro.” “Onde estão os alemães?” Pedrinho examinou o rosto do pracinha que fez a pergunta. Era quase um menino, e parecia com medo. “Onde estão? Bem pertinho.” “Bem pertinho? Onde?” “Logo ali. Duzentos metros no máximo.” O pracinha se abaixou instintivamente. “Duzentos metros? Estamos ao alcance das balas.” Quevedo deu um risinho maldoso. “Mas dadonde vocês vieram, pelo amor de Deus. Estão ao alcance é das baionetas deles.” Quevedo passou o dedo indicador no pescoço e deu um assobio que arrepiou o pracinha. “Alemão gosta de degolar, nisso ele é meio parecido com castelhano.” O pracinha olhou com desconfiança para Quevedo, e o gago Atílio e o Alemão. “Acabamos de chegar” disse o pracinha, “somos do segundo escalão.” Pedrinho examinou o soldado e seu olhar de desamparo, sua absoluta fragilidade no meio da lama e da chuva e do escuro e de desconhecidos sarcásticos e pensou com um misto de orgulho e susto: somos veteranos. Estamos nesta guerra maldita há setenta dias e somos veteranos. Um oficial que não conheciam apareceu ao lado deles. Todos fizeram continência. “Onde está o capitão Uzeda?” “Aqui.” Uzeda rastejou para o lado do recém-chegado. Fizeram continência. O oficial se apresentou. “Capitão Almeida, do Onze de São João. Viemos substituir vocês.” ”Já entendi.” “Mas há uma coisa que eu não entendi, capitão.” “O que é?” “Vou ser franco. Esta é nossa primeira missão, saímos do navio há menos de um mês, sem preparo, sem instrução e já nos jogam no fogo.” “As coisas aqui são mais ou menos assim, Almeida, é melhor ir se acostumando.” Nesse instante uma luz intensa se abateu sobre eles e se enxergaram bem próximos e nítidos, e o que viram foi rostos pálidos e barbudos, olheiras de sono, vincos de cansaço nos rostos jovens e tensos. A claridade vinha de uma very-ligth, uma granada de iluminação jogada pelos alemães. E eles não perderam tempo.  Iniciaram o fogo, uma barragem intensa de morteiros, granadas de mão e bazucas, acompanhadas pelo som alucinado das metralhadoras. Os soldados recém-chegados pareciam á beira do pânico, tapando a cabeça com as mãos, se abaixando o mais que podiam na lama fofa. O mais jovem tirou o capacete e enfiou o rosto dentro dele. A intensidade dos bombardeios e o modo como estavam sendo operados denunciava que os alemães estavam na iminência de um ataque. “Não faz sentido” disse Almeida, “eles não tem porque nos atacar, estão no alto, em posição melhor.” “Eles viram vocês chegando” disse Uzeda, “e acharam que vamos atacar. Estão só dando um recado, tentando desorganizar o ataque antes da partida. Eles não são loucos. Venha comigo, capitão, vou lhe mostrar nossas linha.” A escuridão tinha voltado e os dois oficiais sumiram dentro dela. O sargento Nilson se aproximou. “Vamos começar a descer, bem quietos e sem pressa.” Pedrinho olhou para o praça que tinha os olhos arregalados de pavor. “Como é teu nome?” “Paraguassu.” “O meu é Pedro. Olha aqui, Paraguassu,  só uma coisa: não tira nunca o capacete. Você vai precisar dele mais do que pensa.”Uma semana depois Uzeda encontrou o capitão Almeida no rancho dos oficiais, de madrugada. Havia quase uma centena de oficiais e o burburinho de uma conversa sonolenta. Uzeda estendeu uma xícara de café para Almeida. “Como vão as coisas?” O capitão Almeida deu um sorriso amargo. “Há boatos de corte marcial.” “Já ouvi.” “E o que estamos fazendo aqui, a esta hora?” “Já vamos saber, mas parece que é outro ataque.” “Meu Deus” gemeu Almeida. E enrubesceu. “Vou lhe contar o que aconteceu lá.” “Não precisa.” “Acho que vai haver uma corte marcial, você estava lá e eu quero contar antes de ouvir alguma versão tendenciosa. Aliás, versões tendenciosas não vão faltar para o resto dos tempos.” Uzeda fez um gesto de deixa pra lá,  mas Almeida endureceu a voz. “Em primeiro lugar não era nem para a gente estar naquele lugar, mas fazendo exercícios, se preparando. Uma loucura mandar um batalhão cru, sem a menor experiência, subir uma montanha na noite escura, num terreno minado e escorregadio para substituir outro batalhão esgotado e desmobilizado como vocês estavam. Quando vocês foram embora passei o resto da noite e todo o dia percorrendo as linhas e encorajando os homens, mas ao anoitecer aconteceu um alarma falso no flanco esquerdo, o capitão da Primeira Companhia entrou em pânico e desceu correndo, com a tropa atrás dele, mas foram interceptados pelo major Jacy e por mim, e demos ordem de voltar para as posições, mas o capitão da Primeira estava tendo um colapso nervoso, e se rebelou, não quis obedecer ás ordens. Voltar? ele berrou, o major está alucinado, não sabe o que faz, e o major Jacy tirou o revolver do coldre e disse vai voltar sim capitão imediatamente, vamos todos voltar quantas vezes for preciso, e o major Jacy, o doce, o suave major Jacy ergueu a arma e apontou para o meio da testa do capitão, que se ajoelhou e começou a chorar. Até eu fiquei com pena dele, depois foi diagnosticado estado ansioso, sentimento de inferioridade, vários oficiais se aproximaram para apoiar, os praças foram parando e se reorganizando, mais oficiais acudiram e fomos levando os homens de volta para as posições. E isso foi tudo, mas foi um inferno. Pregaram no nosso batalhão a pecha de covarde. Viramos chacota, Uzeda, estão nos chamando de Laurindo.” “Laurindo?” “Conhece o samba? Laurindo desce o morro. Quando passa um dos nossos alguém cantarola Laurindo desce o morro. É um inferno. Já deu briga por causa disso e vai acabar dando em morte.”  Perceberam um movimento na multidão de oficiais dando passagem. Mascarenhas, Zenóbio e Cordeiro de Farias entraram na barraca acompanhados pelo Estado Maior inteiro. Todos tinham os rostos graves. Vai ser uma reunião tensa, pensou Uzeda. “A vontade, senhores” disse Brayner, “vamos dar início ao nosso trabalho. Estamos aqui para planejar e discutir novo ataque ao Monte Castelo.”  Ninguém se entreolhou nem comentou nada, mas todos sabiam que um calafrio percorreu cada homem dentro da barraca. Instintivamente, Uzeda e Almeida olharam, pela abertura, para a direção da montanha desgraçada, enorme, ameaçadora e escura, onde estalavam relâmpagos.

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