quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A Neve Não Para

42.

O segundo sargento Bóris era comunista de carteirinha. Isso causava certa estranheza entre os praças. Eles sabiam que havia muitos comunistas no esquadrão, até mesmo alguns oficiais, mas o segundo sargento Bóris tinha aquele jeito de padre e nenhum medo de dizer que era comunista, mesmo para o sargento Nilson, que ficava vermelho de brabo cada vez que ouvia isso. Se tinha coisa de que o sargento Nilson não gostava era de comunista. Depois que pegaram o segundo sargento Bóris falando com um dos comandantes da resistência italiana, “todos comunistas” segundo o sargento Nilson, no mais coloquial e fluente italiano, a estranheza em torno dele aumentou. O segundo sargento Bóris trazia em sua mochila livros e mais livros. O cabo Quevedo gostava de colocar a mão sob a mochila do segundo sargento Bóris, avaliar seu peso e sacudir a cabeça. Logo se descobriu que o segundo sargento Bóris, além de engenheiro, sabia falar vários idiomas (ali estava ele falando com os partigiani como se fosse em português) e não parava de rabiscar coisas misteriosas numa caderneta de capa preta. Isso não era de estranhar porque havia uma quantidade enorme de praças, sargentos e oficiais que rabiscavam secretamente seus diários. O sargento Nilson andou resmungando alguma coisa como “esses espiões comunistas filhos duma égua” mas o fato é que a postura do segundo sargento Bóris era inatacável. Era o mais profissional, o mais atento, o mais disponível para a ação e o trabalho. Passava a maior parte do tempo cochichando nos cantos com os guerrilheiros italianos, é verdade, e não gostava de se abrir. Então, numa daquelas noites geladas, (a neve não parava) ele disse: “Os aliados entregaram os partigiani.” O quê? Como?  Estavam na cozinha de uma das últimas casas da rua principal de Gaggio Montano, de olho na sopa que fervia, cercados pela numerosa família de agricultores. “Vocês não viram que pararam de lançar suprimentos para os guerrilheiros? Há quanto tempo não passa um avião e não larga um paraquedas com víveres e armas ou munição? Desde que o general Alexander discursou na rádio, agradecendo a ajuda deles mas dizendo que o inverno ia ser muito forte e era melhor dispersarem. Isso mesmo. Dispersarem. Mas dispersar para onde? Para suas aldeias, suas casas e colocar o risco de suas famílias serem massacradas?” A voz de Bóris era suave e controlada, mas os donos da casa perceberam que os outros soldados se inquietavam, que seus olhos se concentravam no sargento que falava. “O que os guerrilheiros vão fazer com as pessoas que estão com eles, pilotos abatidos que recolheram, prisioneiros que conseguiram escapar, agentes de ligação, como vão esconder e manter o arsenal se não puderem sobreviver nas montanhas? Sabem o que estavam me dizendo ainda hoje? Que já saiu na ordem do dia do comando alemão na Itália e das forças fascistas que os aliados vão dar um desafogo na Linha Gótica. Que agora eles não vão se preocupar mais com americanos e brasileiros, mas somente com os guerrilheiros italianos. A fala de Alexander foi como um sinal para os alemães, entenderam? Vai começar a temporada de caça de guerrilheiro em grande escala. Por obra e graça do grande comandante dos aliados.” Havia um silêncio incômodo na pequena cozinha. O gago Atílio começou a sentir mais forte o calor que emanava do fogão a lenha. “Mas não é a primeira vez que eles fazem isso. Eles me contaram uma coisa de estarrecer. Em maio deste ano, quando do avanço dos americanos a partir de Anzio, e com a necessidade de transpor os montes Aurunci, uma tropa de marroquinos, em torno de 600 homens, comandados por oficiais franceses, recebeu ordem de avançar sem parar pela região, muito difícil e escarpada. Para estimular os mouros foi distribuído um folheto em árabe, pelo próprio comando da tropa, onde dizia que do outro lado daquelas montanhas encontrava-se um vale de belezas extraordinárias, com mulheres sensuais, pomares e vinho. Quando eles chegassem lá, tudo, mulheres, comida, bebida, tudo seria deles durante 50 horas. De 17 a 25 de maio o horror se instalou na região. Os marroquinos estupraram centenas de mulheres, de jovens, de crianças, torturaram os homens, mataram com extrema crueldade o pároco da vila de Esperia. Só nessa vila de Esperia 700 mulheres foram violentadas e a maioria delas foi contaminada pela sífilis. Mark Clark soube e chamou a atenção do comando do Corpo Expedicionário Francês, mas já era tarde e não havia mais o que fazer, e afinal, os marroquinos receberam ordens dos seus oficiais.” A dona da casa começou a servir a sopa fumegante em pratos de alumínio e os foi passando de mão em mão. Comeram em silêncio, olhando pela janela a neve cair sem parar na noite escura, enquanto o coronel Brayner olhava pela janela do avião que aterrissava no Rio de Janeiro a esplêndida manhã de sol. Brayner tinha tomado pílulas para dormir durante a viagem e sua sinistra calma voltara, agora que estava desperto e antecipava na pele o calor da cidade. Ninguém o esperava no aeroporto, a viagem era secreta. Apanhou um taxi e rumou para casa, pensando na mulher, no susto que ela ia levar, antevia o esforço que ela faria para não chorar e se mostrar valente. Esses pensamentos o emocionavam enquanto via aquela cidade que amava ir passando, enquanto via o perfil dos morros, o reflexo do mar cintilando, jovens de bicicletas nas praças e o trânsito alegre e caótico. Ali não havia guerra. Estranhamente ali não havia guerra nem frio nem solidão nem desespero nem medo. O que calava bem fundo dentro dele, porém, era aquela calma de antes da tempestade, banal e verdadeira tanto na literatura quanto na vida. No dia seguinte ele iria estar frente a frente com o Ditador, com aquele homem estranho que ele não conseguia compreender, e de quem dependeria o destino dos seus companheiros de guerra. Era a pior missão que já recebera e ele teria que saber falar com Getúlio. A FEB dependia desse encontro. Fechou os olhos e ficou imaginando a cidade, ficou imaginando os olhos de Maria quando ela o visse descer do taxi diante da pequena casa branca na Vila Militar. 

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