42.
O segundo
sargento Bóris era comunista de carteirinha. Isso causava certa estranheza
entre os praças. Eles sabiam que havia muitos comunistas no esquadrão, até
mesmo alguns oficiais, mas o segundo sargento Bóris tinha aquele jeito de padre
e nenhum medo de dizer que era comunista, mesmo para o sargento Nilson, que
ficava vermelho de brabo cada vez que ouvia isso. Se tinha coisa de que o
sargento Nilson não gostava era de comunista. Depois que pegaram o segundo sargento
Bóris falando com um dos comandantes da resistência italiana, “todos
comunistas” segundo o sargento Nilson, no mais coloquial e fluente italiano, a
estranheza em torno dele aumentou. O segundo sargento Bóris trazia em sua
mochila livros e mais livros. O cabo Quevedo gostava de colocar a mão sob a
mochila do segundo sargento Bóris, avaliar seu peso e sacudir a cabeça. Logo se
descobriu que o segundo sargento Bóris, além de engenheiro, sabia falar vários
idiomas (ali estava ele falando com os partigiani
como se fosse em português) e não parava de rabiscar coisas misteriosas numa
caderneta de capa preta. Isso não era de estranhar porque havia uma quantidade
enorme de praças, sargentos e oficiais que rabiscavam secretamente seus
diários. O sargento Nilson andou resmungando alguma coisa como “esses espiões
comunistas filhos duma égua” mas o fato é que a postura do segundo sargento
Bóris era inatacável. Era o mais profissional, o mais atento, o mais disponível
para a ação e o trabalho. Passava a maior parte do tempo cochichando nos cantos
com os guerrilheiros italianos, é verdade, e não gostava de se abrir. Então,
numa daquelas noites geladas, (a neve não parava) ele disse: “Os aliados
entregaram os partigiani.” O quê?
Como? Estavam na cozinha de uma das últimas
casas da rua principal de Gaggio Montano, de olho na sopa que fervia, cercados
pela numerosa família de agricultores. “Vocês não viram que pararam de lançar
suprimentos para os guerrilheiros? Há quanto tempo não passa um avião e não
larga um paraquedas com víveres e armas ou munição? Desde que o general Alexander
discursou na rádio, agradecendo a ajuda deles mas dizendo que o inverno ia ser
muito forte e era melhor dispersarem. Isso mesmo. Dispersarem. Mas dispersar
para onde? Para suas aldeias, suas casas e colocar o
risco de suas famílias serem massacradas?” A voz de Bóris era suave e
controlada, mas os donos da casa perceberam que os outros soldados se
inquietavam, que seus olhos se concentravam no sargento que falava. “O que os
guerrilheiros vão fazer com as pessoas que estão com eles, pilotos abatidos que
recolheram, prisioneiros que conseguiram escapar, agentes de ligação, como vão esconder
e manter o arsenal se não puderem sobreviver nas montanhas? Sabem o que estavam
me dizendo ainda hoje? Que já saiu na ordem do dia do comando alemão na Itália
e das forças fascistas que os aliados vão dar um desafogo na Linha Gótica. Que
agora eles não vão se preocupar mais com americanos e brasileiros, mas somente com
os guerrilheiros italianos. A fala de Alexander foi como um sinal para os
alemães, entenderam? Vai começar a temporada de caça de guerrilheiro em grande
escala. Por obra e graça do grande comandante dos aliados.” Havia um silêncio
incômodo na pequena cozinha. O gago Atílio começou a sentir mais forte o calor
que emanava do fogão a lenha. “Mas não é a primeira vez que eles fazem isso.
Eles me contaram uma coisa de estarrecer. Em maio deste ano, quando do avanço
dos americanos a partir de Anzio, e com a necessidade de transpor os montes
Aurunci, uma tropa de marroquinos, em torno de 600 homens, comandados por
oficiais franceses, recebeu ordem de avançar sem parar pela região, muito
difícil e escarpada. Para estimular os mouros foi distribuído um folheto em
árabe, pelo próprio comando da tropa, onde dizia que do outro lado daquelas
montanhas encontrava-se um vale de belezas extraordinárias, com mulheres
sensuais, pomares e vinho. Quando eles chegassem lá, tudo, mulheres, comida,
bebida, tudo seria deles durante 50 horas. De 17 a 25 de maio o horror se instalou
na região. Os marroquinos estupraram centenas de mulheres, de jovens, de
crianças, torturaram os homens, mataram com extrema crueldade o pároco da vila
de Esperia. Só nessa vila de Esperia 700 mulheres foram violentadas e a maioria
delas foi contaminada pela sífilis. Mark Clark soube e chamou a atenção do
comando do Corpo Expedicionário Francês, mas já era tarde e não havia mais o
que fazer, e afinal, os marroquinos receberam ordens dos seus oficiais.” A dona
da casa começou a servir a sopa fumegante em pratos de alumínio e os foi
passando de mão em mão. Comeram em silêncio, olhando pela janela a neve cair
sem parar na noite escura, enquanto o coronel Brayner olhava pela janela do
avião que aterrissava no Rio de Janeiro a esplêndida manhã de sol. Brayner
tinha tomado pílulas para dormir durante a viagem e sua sinistra calma voltara,
agora que estava desperto e antecipava na pele o calor da cidade. Ninguém o
esperava no aeroporto, a viagem era secreta. Apanhou um taxi e rumou para casa,
pensando na mulher, no susto que ela ia levar, antevia o esforço que ela faria
para não chorar e se mostrar valente. Esses pensamentos o emocionavam enquanto
via aquela cidade que amava ir passando, enquanto via o perfil dos morros, o
reflexo do mar cintilando, jovens de bicicletas nas praças e o trânsito alegre
e caótico. Ali não havia guerra. Estranhamente ali não havia guerra nem frio
nem solidão nem desespero nem medo. O que calava bem fundo dentro dele, porém,
era aquela calma de antes da tempestade, banal e verdadeira tanto na literatura
quanto na vida. No dia seguinte ele iria estar frente a frente com o Ditador,
com aquele homem estranho que ele não conseguia compreender, e de quem
dependeria o destino dos seus companheiros de guerra. Era a pior missão que já
recebera e ele teria que saber falar com Getúlio. A FEB dependia desse
encontro. Fechou os olhos e ficou imaginando a cidade, ficou imaginando os
olhos de Maria quando ela o visse descer do taxi diante da pequena casa branca na
Vila Militar.
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