quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Inverno da Nossa Desesperança

39.


“Essa montanha vai nos devorar a todos” pensava o sargento Nilson olhando num misto de encanto e terror para a neve que começava a cair. Não era mais aquela coisa fininha do dia anterior. Agora eram flocos gordos, uma imensa cortina branca se acomodando silenciosa sobre a terra, cobrindo-a sem pressa. “Deu no rádio para nos preparamos, vai ser o inverno mais brabo do século” disse o alemão Wogel. “Balela” resmungou Nilson, sentindo que não controlava seu mau-humor, quando viu a figura se movendo no meio da neve que caía. Apontou a arma e esperou até ele estar bem perto e reconheceu aquele paulista meio maluco, o Pereira, que saíra sozinho no meio da noite sem avisar ninguém. Pereira se jogou ao lado dele, recebeu com gula a xícara de café e bebeu um gole. “Achei o capitão” disse. “Arrastei ele pra um lugar seguro. Preciso de uma padiola para trazer ele para cá.” Assim, o Pereira guiou dois padioleiros até onde estava o capitão Bueno, e acompanhou seu resgate até vê-lo se colocado num jipe e levado para o Hospital de Campanha.  Pedrinho viu quando o capitão Bueno entrou carregado numa maca na grande tenda, e viu quando foi cercado por médicos e enfermeiras. Viu os rostos preocupados, ouviu os sussurros, esse está bem mal, coitado, tem o pulmão furado pelas costelas. Mas os olhos e os ouvidos de Pedrinho buscavam outra coisa bem diferente. Buscavam a enfermeira Virginia, tão etérea e loura e elegante, que sorria para ele de modo enigmático toda vez que se aproximava. Naquele segundo dia no hospital o praça Pedro Diax começou a sofrer de um mal que não conhecia, e que se manifestava cada vez que a enfermeira Virginia entrava na tenda. Ela andava sempre ágil e leve, séria e afável, e só ria mesmo quando as enfermeiras Dulce e Zoé se aproximavam dela e cochichavam esses segredinhos de mulher que as faz explodir em risadas. Cada vez que Virginia ria Pedrinho corava, porque o riso dela lhe despertava uma urgência sexual que ele não controlava, e em um momento da manhã, quando ela trouxe as duas pílulas que tinha de engolir, percebeu que ela notava o indecente volume embaixo do cobertor. Seus olhos se encontraram e ambos coraram ao mesmo tempo,  e Pedrinho teve vontade de puxar a coberta para cima da cabeça, mas a voz de Virginia saiu firme e natural: “Suas pílulas, soldado.” Esperou que ele as engolisse, quase se afogou em sua angústia, e depois se afastou, altaneira, sacudindo as ancas de modo quase imperceptível, para maior desgraça exatamente do jeito que Pedrinho mais gostava.  A 200 metros dali as preocupações do comandante em chefe eram de outra ordem. Estava em reunião com os generais comandantes Cordeiro de Farias e Zenóbio da Costa e com o chefe do estado-maior, major Brayner, agora promovido a coronel, e o tema de suas preocupações eram as humilhantes e rancorosas medidas que o general Crittenberg estava tomando contra a FEB. “Não vou aceitar de modo algum sermos relegados para a retaguarda, como se fôssemos um bando de covardes” dizia Mascarenhas. “Já solicitei uma reunião com o Mark Clark e vou dizer tudo que tenho de dizer. Não podemos ser os culpados de todos os fracassos. Eles vão ter de usar a tão louvada capacidade de auto crítica, e não ficar jogando a culpa unilateralmente contra nós.” “O Mark Clark já respondeu?” “Ainda não. Mas vamos agir. Vamos nos preparar para subir mais uma vez essa montanha. Vamos exigir as armas e o fardamento acertados nos acordos entre os dois países. Vamos intensificar os exercícios e estudar mais e mais a geografia da região. Se esse inverno for como dizem vamos todos ficar imobilizados. Eu tenho uma missão para o senhor, coronel Brayner, no Brasil.” Nesse momento, o sargento Nilson foi abordado por outro sargento. “Terceiro-sargento Bóris, da Central de Tiro. Você é o sargento Nilson?” “Ele mesmo.” “Tenho ordem para que me guie até um ponto onde possa fazer medições para tiro.” “Medições, é?”  “É. Sou engenheiro, sargento, e vou fazer cálculos de tiro. Sou o que chamam de controlador vertical.” Quevedo, que estava ali perto, deu um assobio um tanto debochado de admiração. “Puxa vida. Era isso que estava faltando para a gente ganhar a guerra. Um controlador vertical.” Deram risadas ao redor, mas Nilson não gostou. “Quevedo, é você quem vai acompanhar o sargento Bóris na missão. Escolhe dois imbecis igual a ti e escoltem o sargento até um ponto que ele ache satisfatório.” “Com essa neve toda, sargento?” “Agora, cabo Quevedo.” “Sim, senhor, mas essa neve está se transformando em tempestade, nós não recebemos instrução de como se comportar em tempestade de neve.” “Você aprende rápido, Quevedo, isso não é problema.” E assim, com um suspiro, Quevedo, promovido a cabo depois que arrastara Pedrinho pela gola de volta ás linhas, chamou o alemão Wogel e o gago Atílio, “dois perfeitos imbecis como o sargento mandou” e começaram a subir a montanha completamente branca, seguidos pelo terceiro-sargento Bóris e um praça negro de nome Adroaldo. Depois de 15 minutos de subida, Bóris pediu para parar um pouco. Estava sem fôlego. Sentou numa rocha e olhou ao redor. Tudo completamente branco, e a neve caindo compacta. “Vamos ficar imobilizados se a neve não parar.” “Não vai parar, sargento, é o que dizem.” “Se isso for verdade, do jeito como estamos preparados, este é o inverno de nossa desesperança.” O gago Atílio olhou para o terceiro sargento Bóris. “O-o-o que f-f-foi s-s-sar-gento?” “Nada, praça.” “F-f-falou aí um n-n-negócio estranho.” “Citei William Shakespeare, meu amigo. Henrique III.” O cabo Quevedo preparou seu sorriso mais mordaz, apanhou um cigarro e estendeu-o para Bóris. “Foi o que eu falei. O sargento Bóris é um reforço de peso. Agora, sim, vamos ganhar esta guerra.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário