quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Um Certo Sargento Max

37.


Enquanto um certo sargento Max e um tal cabo Leite e os soldados Manoel e Lima Barbosa se arrastam na lama tentando se convencer que não são idiotas e que o capitão Bueno merece seu sacrifício o general Mascarenhas examina contra luz o perfil árido do general Crittenberg. O general Mascarenhas percebe que começa a se encher de um rancor pouco razoável contra o americano. Com Brayner, Zenóbio e Cordeiro de Farias tinha feito um levantamento minucioso das ações do dia, e dos motivos que levaram á retirada. Do ponto de vista da lógica militar a retirada era a única opção cabível. Crittenberg recebeu as alegações sem mudar a expressão, que apresentava um sutil esgar de desprezo. E quando falou foi para dizer: “A única coisa de que os senhores me convenceram é de que o soldado brasileiro não tem capacidade ofensiva.” “Não posso concordar com isso, general” disse rapidamente Mascarenhas. “Foi lamentável o desempenho dos brasileiros. Comprometeram todo nosso esquema. Por culpa de vocês vamos passar o inverno do lado de cá dos Apeninos, enquanto nas outras frentes os exércitos avançam rumo a Berlim.” “Continuo discordando, general Crittenberg.  Isso não é verdade em hipótese alguma.” “Essa é a lamentável verdade, general. Missão de ataque não é para os senhores. O seu exército não tem capacidade ofensiva. Foi um erro do general Mark Clark dar-lhes uma responsabilidade dessas. Os seus soldados são fracos, não tem saúde, não sabem combater. Seus oficiais não tem liderança, são relapsos, entregam tudo aos sargentos. E o resultado de tanto desleixo se vê na frente de batalha.” “Definitivamente não aceito suas palavras, general. Já demostramos que nossos aliados não cumpriram nem o começo de sua missão, deixando-nos flanqueados desde a partida. O comando insistiu em manter a operação mesmo depois de a Força Aérea informar que não tinha condições de decolar.” “São desculpas, general. O senhor sabe muito bem que suas tropas debandaram em presença do inimigo alguns dias atrás.” “Minhas tropas, não, general. Foi uma companhia, totalmente flanqueada, sem apoio aéreo, que marchou para campo aberto nessas condições e hoje isso se repetiu. E essa tropa de que o senhor fala, o senhor deve saber que era uma tropa fresca, recém chegada, sem experiência de combate, sem nenhuma adaptação ao campo de batalha, com armamentos deficientes, uniformes inadequados para o terreno, que ficou exposta ao fogo inimigo e retraiu um tanto desordenadamente. Não aceito o termo debandada em nenhuma condição. E os oficiais envolvidos no episódio foram afastados e o oficial comandante está sendo investigado e, se realmente tiver responsabilidade, será julgado em corte marcial.” “Esses são problemas de vocês. Quanto a mim, vou solicitar ao Alto Comando para retirá-los de suas posições atuais, general. Daqui para a frente a FEB só receberá missões na retaguarda.” Os quatro brasileiros sentiram o golpe, Brayner conseguiu articular: “Permissão para falar.” Mas Crittenberg tinha feito uma rápida continência e se afastou pisando forte, seguido pelos seus ordenanças, no momento exato em que o capitão Bueno despertava do seu torpor e ouvia passos, bem pertinho. Uma patrulha, pensou, talvez sejam brasileiros, talvez venham me resgatar. O capitão Bueno se contorceu em meio a dores para poder olhar e o que viu o deixou ainda mais enregelado: um alemão se deslocava de uma casamata para outra, em sua direção. Quando passava por um corpo, cutucava-o com a ponta da metralhadora, empurrava-o com o coturno. Descobriu um soldado ainda vivo, retirou a pistola do coldre e disparou na nuca. O tiro deu um susto no sargento Max, que rastejava seguido pelos três companheiros, a 500 metros dali. Ficaram imóveis, tentando saber o que tinha acontecido, mas ainda estavam muito longe e viram apenas um alemão se aproximando do corpo caído do capitão Bueno, ficar contemplando-o alguns instantes, e depois se abaixar. O capitão Bueno sentiu a respiração e o cheiro do alemão curvado sobre ele. Trancou completamente a respiração. Percebeu que ele mexia no seu coldre, percebeu que ele apanhava sua pistola, depois ficava em pé. Agora vem o tiro. Depois de alguns instantes, o alemão se afastou em direção a outro corpo. O tiro não veio. Ainda caía aquela saraiva gelada, agora com menos intensidade. Max olhou o alemão se afastar e disse: “É impossível chegar onde o capitão está. A região é totalmente deles. Não temos a menor chance. Vamos esperar pela noite.” E começou a rastejar de volta, quando os dois generais brasileiros, Mascarenhas e Cordeiro de Farias, olhavam de binóculo para a grande montanha. “Um velho ditado árabe diz que sob ataque uma montanha fica duas vezes mais alta e mais forte.” Mascarenhas olhou para Cordeiro, tentou desvendar no tom de sua voz seu verdadeiro estado de ânimo, mas Cordeiro era esquivo de nascença. “Como está o Zenóbio?” “Arrasado. Ele sabe que a culpa é dele.” “A culpa é minha, Cordeiro. Eu autorizei, eu aceitei os termos do ataque.” “É dele porque ele incentivou a decisão. É culpa da arrogância, da ânsia de glória.” “Sabia que ele estava cego, queria que ele abrisse os olhos, e ainda havia esse rumor de que o Salgado Filho trazia minha demissão do comando. Eu me deixei levar, e quem pagou foram aqueles rapazes mortos. Eu fraquejei foi quando admiti a hipótese de atacar sem apoio aéreo. Deveria ter enfrentado o americano nesse momento.” “Eles nos mentiram.” “Eles não param de nos mentir, Cordeiro, mas que vão nos afastar da frente de batalha é verdade. Eles precisam de um culpado.” “Eles não podem fazer isso.” “Podem.” Baixou o binóculo e olhou para Cordeiro de Farias. “Não será uma humilhação para o Zenóbio. Ou para mim. Será para o nosso exército, para nosso país. Amanhã vou tomar um avião para o Rio de Janeiro. Vou pedir minha demissão. Vou cortar  isto pela raiz.”  O sargento Max olhava para a crista da montanha, que começava agora a ser tomada pela sombra. Durante a tarde a tênue nevasca tinha parado, as nuvens escuras sumiram e o céu brilhava azul, até que o sol sumiu atrás do pico mais alto. A sombra se espalhou sobre os homens estendidos no chão, observando a terra-de-ninguém. O sargento Max disse: “Essa montanha tem um espírito. Se ele nos agarra, adeus.” “Como é sargento?” “Nada. Vamos começar a avançar. Precisamos tirar de lá o capitão Bueno.” E o sargento Max e seus três voluntários começaram em silêncio a rastejar na direção dos corpos caídos, lá adiante, todos imóveis e cobertos daquela farinha branca e gelada que descera do céu.

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