quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Natal de 44

40.


O fogo na lareira aquecia a sala toda, os rostos estavam corados e a grapa começava a soltar as línguas. A neve caía sem parar lá fora. Para os homens ali reunidos isso  dava um sabor nostálgico para aquele evento. Eram todos católicos. A neve em dezembro era um símbolo cultural patético  e deprimente, mas a mesa montada para a celebração de Natal no hotel onde funcionava o QG da FEB estava festiva. No centro, o comandante em chefe, general Mascarenhas de Moraes, e de cada lado dele os generais Zenóbio e Cordeiro de Farias. Diversos oficiais completavam a mesa, em torno de quinze, e havia um convidado especial, o major Vernon Walters, o oficial de ligação e intérprete, que tanto participara das tensas conversas com Crittenberg. Vernon se debruçou sobre Mascarenhas e sussurrou: “Folgo em ver que os oficiais de seu Estado Maior não farão as mesmas queixas do visconde de Taunay contra o conde d´Eu, na guerra do Paraguai, general.” “E que queixa foi essa, major?” “A de que não participava da mesa do conde, sendo seu ordenança imediato. E isso que Taunay tinha título de nobreza.”  Cordeiro entrou na conversa. “O conde d´Eu era conhecido por ser um oficial pedante, major.” “E eu sou conhecido por ser um oficial pelo duro de São Gabriel” disse Mascarenhas. Ele sabia que Vernon e Cordeiro de Farias eram profundos conhecedores de História Militar, e gostava de ouvir suas trocas de ideias e discussões sobre fatos do passado.  Zenóbio e Brayner, lado a lado, trocavam confidências em voz baixa. “Recebemos a munição, Brayner. Finalmente nossos amigos americanos se lembraram de nós.” “Amigos, general?” “Ué, aliados não são amigos?” “Não necessariamente. Tenho minhas dúvidas, general. É preciso verificar o estado dessa munição.” Mascarenhas ouviu um resto da frase e pareceu se lembrar de algo. “Major Vernon” disse, “o segundo e o terceiro escalão estão a um mês na Área de Instrução e o material para equipar as unidades ainda não chegou. O que eu devo fazer, major, na sua opinião? Enviar um comando para conseguir esse material?”  Vernon sorriu sem graça. “O próprio general Mark Clark me informou ontem que já ordenou a entrega do material, general.” “Major Vernon” disse Cordeiro de Farias “sinto me meter nesse assunto, mas meia hora atrás eu li o relatório de campanha e descobri que esse equipamento está a disposição desde que o segundo escalão chegou.” “Há um entrave na entrega dos materiais fundamentais para o adestramento da tropa que chega a ser suspeito, major.” “Compreendo sua frustação, general. Vou insistir com o general Mark Clark.” “Obrigado, major. Agora, senhores, não quero mais ninguém fazendo perguntas indiscretas ao major Vernon. Ele é nosso convidado e o estamos deixando constrangido. É noite de Natal, vamos afastar os maus presságios.”  Mau presságio é o que o sargento Nilson sentiu quando viu alguém rastejando na neve e se aproximando do buraco onde estava. Engatilhou a arma mas quem apareceu na sua frente foi o cabo Quevedo. “Tá de serviço, sargento?” Nilson olhou para ele desconfiado. “Por que? E o que você faz aqui?” “Nas noites de Natal baixa em mim o Papai Noel. Tá de serviço ou não?” “Tô sempre de serviço, cabo.” “Então, infelizmente, não vou poder lhe passar este elixir dos deuses, que os italianos chamam de graspa. Sinto muito, sargento.” E já ia se afastando quando o sargento o apanhou pelo coturno. “Espera aí, mandrião. Deixa essa garrafinha aqui.” Quevedo alcançou o cantil para ele. “Um gole só, sargento, a distribuição é racionada.”  Nilson bebeu um gole fundo. “Não fica bem um sargento beber em serviço” disse Quevedo. Estava fazendo mais de 15 graus abaixo de zero, a neve não parava de cair e ali naquele buraco estreito, o fox-hole como se acostumaram a chamar, se apertavam além do sargento Nilson os praças João Wogel e o gago Atílio. A graspa passou de mão em mão, voltou para Quevedo. “Missão cumprida, vou indo para a próxima chaminé.” E viram-no rastejar na neve em direção ao próximo buraco. Todos estavam de branco. Agora que os grandes movimentos de tropa estavam cancelados pela dureza do inverno e a rotina da guerra se restringira a ações de patrulha, havia outra desvantagem em relação aos alemães. Eles usavam fardamento inteiramente branco, o que os tornava invisíveis e aptos para ataques de surpresa. Os brasileiros logo se deram conta da enorme desvantagem. Os prometidos uniformes de inverno não chegavam e foi preciso mais uma vez improvisar. Tudo que era possível transformar em um camisolão branco para enfiar por cima da farda verde-negra foi mandado para as unidades da linha de frente. Então vieram aventais de médicos, enfermeiras, cozinheiros, barbeiros, e vieram lençóis, fronhas, tudo que era branco e podia ser transformado nos camisolões que os soldados que saíam em patrulha ou montavam guarda nos fox-holes enfiavam por cima do uniforme. Eram com esses remendos improvisados que os pracinhas faziam sua camuflagem para se igualar aos alemães na nova modalidade de guerra que começavam a enfrentar. Quevedo chegou noutro fox-hole. A grapa correu de mão em mão. “Ei, Quevedo, pensei que tu ia trazer uma italiana pra nós.” “Essa grapa é italiana, pra ti é mais do que suficiente.” “Ei, Quevedo, conheci um americano que quer me vender um jipe. Quer que eu te apresente?” “Quero. Eu tenho comprador. Quem é o americano?” “Um cara da Decima Divisão de Montanha, um baita dum gringo, diz que o jipe tem os quatro pneus novos.” “Deve ser mentira, mas me apresenta pro cara que eu tenho comprador. Agora me devolve o cantil que eu vou seguir em frente.” Quevedo apanhou o cantil, tomou um gole, viu que acabara, derramou as últimas gotas na palma da mão, apanhou outro cantil, pendurou-o no ombro e seguiu sob a nevasca, arrastando-se em direção ao próximo buraco.

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